sexta-feira, 2 de junho de 2023

O que é arte? | Capítulo I

Tolstói em Vestes Camponesas (1901), de Ilya Repin

Tome qualquer jornal de hoje, e em todos eles você encontrará um caderno sobre teatro e música. Em quase todas as edições você encontrará a descrição de uma ou outra exposição, ou de alguma pintura em particular, e em todas você encontrará notícias de novos livros de natureza artística — poesia, contos, romances.
Imediatamente após um espetáculo, é publicada uma descrição detalhada de como esta atriz ou aquele ator desempenharam este ou aquele papel em tal e tal drama, comédia ou ópera, e que talentos mostraram, e qual era o conteúdo desse novo drama, comédia ou ópera, e quais seus méritos e defeitos. Com o mesmo detalhamento e cuidado, descreverão como tal artista cantou tal peça, ou a tocou no piano ou no violino, e quais foram os defeitos e qualidade da peça e do desempenho do artista. Em toda cidade grande se encontrará, se não várias, pelo menos uma exposição de novas pinturas, cujos méritos e defeitos são analisados com a maior profundidade por críticos e conhecedores. Quase todo dia aparecem novos romances e poemas, editados separadamente ou em revistas, e os jornais consideram uma obrigação dar a seus leitores informações detalhadas sobre essas obras de arte.
Para dar suporte à arte na Rússia, onde se gasta em educação somente a centésima parte do que seria necessário gastar para oferecer a todo o povo a oportunidade de aprender, o governo fornece milhões em subsídios a academias, conservatórios e teatros. Na França, oito milhões são destinados à arte, e o mesmo ocorre na Alemanha e na Inglaterra. Em toda grande cidade se constroem prédios enormes para abrigar museus, academias, conservatórios, escolas dramáticas, e também apresentações e concertos. Centenas de milhares de trabalhadores — carpinteiros, pedreiros, pintores, marceneiros, aplicadores de papel de parede, alfaiates, cabeleireiros, joalheiros, fundidores de bronze, linotipistas — passam toda a sua vida na árdua tarefa de satisfazer às demandas da arte, de tal forma que dificilmente existirá outra atividade humana, exceto a militar, que consuma tanto esforço como essa.
Mas não se trata apenas de que tão enorme trabalho seja gasto nessa atividade — vidas humanas também são sacrificadas nela diretamente, como na guerra: desde tenra idade, centenas de milhares de pessoas dedicam sua vida a aprender como girar as pernas bem rápido (dançarinos); outros (músicos), a aprender como acionar teclas ou cordas bem rápido; outros ainda (pintores), a adquirir perícia com tintas e a retratar tudo que veem; um quarto grupo, a adquirir perícia em torcer cada frase de todas as maneiras possíveis e encontrar uma rima para cada palavra. E essas pessoas, com frequência muito bondosas, inteligentes, capazes de toda sorte de trabalho útil, crescem selvagens nessas ocupações excepcionais e estupefacientes, especialistas unilaterais e autocomplacentes, que só sabem como torcer suas pernas, língua ou dedos.
Mas isso, também, não é tudo. Eu me lembro de ter assistido certa vez ao ensaio de uma das novas óperas mais comuns, dessas que são produzidas em todos os teatros europeus e americanos.
Cheguei quando o primeiro ato já havia começado. Para entrar no auditório, tive que atravessar pelos fundos do teatro. Fui conduzido por corredores escuros e passagens subterrâneas do enorme edifício, passando por imensas máquinas para a troca de cenários e de luzes; na escuridão e na poeira vi pessoas trabalhando. Um homem, face cinzenta e magra, usando uma camisa suja e luvas sujas de operário, com cãibra nos dedos, obviamente cansado e aborrecido, passou por mim, repreendendo irritadamente outro homem por alguma coisa. Subindo por uma escada escura, saí nos bastidores. Por entre cenários empilhados, cortinas, algumas colunas, havia dezenas, se não centenas, de pessoas vestidas e maquiadas, paradas ou andando em círculos, os homens em trajes bem ajustados nas coxas e as mulheres, como de costume, com os corpos tão nus quanto possível. Todos eles eram cantores, membros dos coros feminino e masculino, ou bailarinos, aguardando a sua vez. Meu guia me levou pelo palco e, sobre uma tábua que servia de ponte, através da orquestra, onde estavam sentados cerca de cem músicos de todos os tipos, até as primeiras fileiras escuras. Sobre uma elevação entre duas lâmpadas com refletores, em uma poltrona com uma estante de partitura à sua frente, batuta na mão, sentava-se o diretor da parte musical, que conduzia a orquestra, os cantores e a produção geral da ópera.
Quando cheguei, o ensaio já tinha começado, e uma procissão de indianos que trazia uma noiva para casar se apresentava no palco. Além dos homens e das mulheres indumentados, dois outros homens de casacos curtos estavam correndo espalhafatosamente pelo palco: um era o diretor da parte dramática, e o outro, que se movia com extraordinária leveza em seus calçados macios, era o mestre de danças, que recebia por mês uma quantia maior do que dez operários em um ano.
Esses três diretores estavam tentando ajustar o canto, a orquestra e a procissão. A procissão, como é usual, era feita em pares que carregavam alabardas de lata sobre os ombros. Todos eles começavam em um lugar e faziam uma volta, e outra volta, e então paravam. Por muito tempo, a procissão não dava certo: primeiro, os indianos com alabardas saíam muito atrasados, depois, muito adiantados, depois saíam na hora certa, mas se aglomeravam muito ao sair, depois não se aglomeravam, mas não ocupavam o lugar certo nos lados do palco, e a cada vez tudo parava e começava de novo. A procissão começava com um recitativo feito por um homem vestido como uma espécie de turco e que, abrindo a boca de forma estranha, cantava: “Eu acompanho a no-o-oiva.” Ele cantava e acenava com o braço — nu, é claro — que tirava sob o manto. E a procissão começava. Mas de saída a trompa fez algo errado no fim do recitativo e o regente, recuando como se tivesse acontecido algum desastre, golpeou a estante de música com a batuta. Tudo parou, e o regente, voltando-se para a orquestra, atacou o trompista insultando-o com os termos mais grosseiros, do tipo que cocheiros usam, por ter tocado uma nota errada. E mais uma vez tudo recomeçou. Os indianos com alabardas saíram de novo, pisando maciamente com seus estranhos calçados; novamente o cantor cantou: “Eu acompanho a no-o-oiva.” Mas desta vez os pares estavam muito juntos. Mais uma vez o golpe de batuta, os insultos e começou tudo de novo. Mais uma vez “Eu acompanho a no-o-oiva”, de novo o mesmo gesto com o braço nu que saía sob o manto, e os pares, mais uma vez pisando macio, alabardas ao ombro, alguns com rosto sério e triste, alguns trocando observações e sorrindo, tomaram seus lugares em um círculo e começaram a cantar. Tudo ia bem, parece, mas de novo a batuta golpeou e o regente, em voz sofredora e rancorosa, começou a repreender os homens e as mulheres do coro: sucede que eles não estavam levantando os braços de tempos em tempos enquanto cantavam, em sinal de animação. “Vocês todos morreram, ou o quê, vacas! Se não estão mortos, por que não se mexem?” Mais uma vez começa, mais uma vez “Eu acompanho a no-o-oiva”, mais uma vez as coristas cantaram com rosto triste, aqui e ali uma delas levantando um braço. Mas duas coristas trocaram observações — de novo um golpe mais veemente da batuta. “O quê, vocês vieram aqui para conversar? Vocês podem fazer fofoca em casa. Você aí, de calça vermelha, chegue mais perto. Olhe para mim. Desde o começo.” De novo, “Eu acompanho a no-o-oiva”. E assim continuou por uma, duas, três horas. No total, um ensaio assim dura seis horas contínuas. Os golpes de batuta, as repetições, os posicionamentos, as correções dos cantores, da orquestra, das procissões, da dança, tudo temperado com insultos irritados. Eu ouvi as palavras “asnos”, “cretinos”, “idiotas”, “porcos” bem umas quarenta vezes, endereçadas aos músicos e cantores, no curso de uma hora. E a infeliz pessoa, física e moralmente aleijada — flautista, trompista, cantor —, a quem o insulto é dirigido fica quieta e faz o que é exigido, repete “Eu acompanho a no-o-oiva” vinte vezes, canta a mesma e única frase vinte vezes de novo e marcha de novo por ali com sapatos amarelos e alabarda ao ombro. O regente sabe que essas pessoas são tão incapacitadas que já não servem para nada além de soprar uma trompa ou andar por aí com uma alabarda e sapatos amarelos, e ao mesmo tempo estão acostumadas a uma vida fácil e luxuosa e suportarão qualquer coisa para não serem privadas dela — e, assim sendo, ele calmamente se entrega à sua grosseria, ainda mais considerando que ele viu isso tudo em Paris e Viena e sabe que os melhores regentes se comportam assim, que essa é a tradição musical dos grandes artistas, que estão tão subjugados à sua magnitude que não têm tempo para cuidar dos sentimentos dos atores.
É difícil imaginar cena mais repulsiva. Eu já vi um trabalhador repreender outro por não suportar o peso colocado sobre ele quando descarregavam mercadorias, ou o ancião de uma aldeia, na preparação do feno, insultar um trabalhador por não fazer boa meda, e o trabalhador guardar obediente silêncio. Mas, embora não tenha sido algo agradável de ver, o desagrado foi suavizado pela consciência do fato de que uma tarefa importante estava sendo feita, que o erro pelo qual o superior repreendia o trabalhador poderia ter arruinado uma coisa necessária.
O que, então, estava sendo feito aqui, por que e para quem? Era bem possível que ele, o regente, também estivesse cansado, como aquele trabalhador; podia-se até ver que estava mesmo esgotado, mas quem lhe disse para sofrer? E, a propósito, de que estava sofrendo? A ópera que estavam ensaiando era do tipo mais comum, para aqueles que estão acostumados a elas, mas feita dos maiores absurdos que alguém pode imaginar: um rei indiano quer se casar, uma noiva lhe é trazida, ele se disfarça de menestrel, a noiva se apaixona pelo falso menestrel e se desespera, mas então se revela que este é o próprio rei e todo mundo fica muito satisfeito.
Que não haja nem nunca possa ter havido nenhum indiano assim, e que o que era retratado não guardasse qualquer semelhança não apenas com indianos, mas com coisa alguma deste mundo, exceto outras óperas — disso não pode haver dúvida. Que ninguém fale em recitativos nem expresse seus sentimentos em um quarteto, parado a uma distância definida e acenando com os braços, que em lugar nenhum, a não ser em um teatro, alguém ande daquele jeito, com alabardas de lata, de chinelos e aos pares, que ninguém jamais fique bravo daquele jeito, emocione-se daquele jeito, ria daquele jeito, chore daquele jeito, e que ninguém no mundo possa ser tocado por tal apresentação — disso também não pode haver dúvida.
Involuntariamente, uma questão vem à mente: para quem está sendo feito isso? Quem pode gostar disso? Se existem algumas árias bonitas na ópera, que sejam agradáveis de ouvir, elas podem ser apenas cantadas, sem aquelas roupas estúpidas, procissões, recitativos e acenos de braços. E quanto ao balé, em que mulheres seminuas fazem movimentos voluptuosos entrelaçando-se a várias guirlandas sensuais, trata-se de uma apresentação francamente depravada, de forma que simplesmente não se pode entender para quem é feita. Para um homem culto, é insuportável, cansativo; para um verdadeiro trabalhador, é totalmente incompreensível. Talvez seja agradável, e ainda assim mal e mal, para alguns artesãos depravados que captaram um espírito de fidalgo, e que querem dar testemunho de sua civilidade, ou então para jovens lacaios.
E toda essa vil estupidez é produzida não apenas sem nenhuma benevolente alegria, sem nenhuma simplicidade, mas com má vontade e abominável crueldade.
Diz-se que isso é feito por amor à arte e que a arte é uma coisa muito importante. Mas é verdade que isso seja arte, e que a arte seja uma coisa tão importante que tais sacrifícios lhe devem ser oferecidos? Essa questão é particularmente importante porque a arte, pelo bem da qual são oferecidos em sacrifício o trabalho e a própria vida de milhões de pessoas e, acima de tudo, o amor entre elas, está se tornando algo cada vez mais vago e indefinido na cabeça das pessoas.
A crítica, na qual os amantes da arte costumam encontrar apoio para seu julgamento, tornou-se ultimamente tão contraditória que, se excluíssemos do campo da arte tudo aquilo a que os críticos das várias escolas negam o direito de pertencer a ela, quase não sobraria arte nenhuma.
Tal como os teólogos das várias tendências, também os artistas com diferentes tendências excluem e destroem uns aos outros. Preste atenção aos artistas das escolas de hoje e você verá, em todos os ramos da arte, um grupo negando outros: na poesia, os antigos românticos negam os parnasianos e os decadentes; os parnasianos negam os românticos e os decadentes; os decadentes negam todos os seus predecessores e os simbolistas; os simbolistas negam todos os seus predecessores e os mages, enquanto os mages simplesmente negam todos os seus predecessores; no romance, naturalistas, psicologistas e naturistas negam uns aos outros. E o mesmo acontece no teatro, na pintura e na música. De forma que a arte, que consome enorme quantidade de trabalho e de vidas humanas, e desfaz o amor entre as pessoas, não apenas não é uma coisa firme e claramente definida, como é entendida de maneiras tão contraditórias por seus amantes que é difícil dizer o que é geralmente compreendido como arte e, especialmente, como arte boa e útil, em nome da qual os sacrifícios poderiam com justiça lhe ser oferecidos.

Leon Tolstói, in O que é arte?

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