O
argumento ia bem. Escrever nunca foi trabalho para mim. Sempre fora
assim, desde quando me lembrava: ligar o rádio numa estação de
música clássica, acender um cigarro ou charuto, abrir a garrafa. A
máquina fazia o resto. Eu só precisava estar ali. Todo o processo
me permitia seguir em frente quando a vida oferecia tão pouco,
quando a própria vida era um espetáculo de horror. Sempre havia a
máquina para me acalmar, conversar comigo, me entreter, salvar meu
rabo. Basicamente, era por isso que eu escrevia: para salvar meu
rabo, salvar meu rabo do asilo de doidos, das ruas, de mim mesmo.
Uma
de minhas mulheres passadas berrara pra mim:
– Você
bebe pra fugir da realidade!
– É
claro, minha cara – eu lhe respondera.
Usava
a garrafa e a máquina. Gostava de ter um pássaro em cada mão, ao
diabo com o mato.
De
qualquer modo, o argumento ia bem. Ao contrário do romance, do conto
ou do poema, quando eu folgava uma ou duas noites de tempos em
tempos, trabalhava nele toda noite. E aí, acabou.
Telefonei
para Jon:
– Bem,
não sei o que temos aqui, mas está acabado.
– Sensacional!
Eu iria pegar, mas estamos dando um almoço aqui. Comidas, bebidas,
convidados. François é o chef. Pode trazer o argumento de
carro?
– Eu
gostaria, mas tenho medo de rodar por aí.
– Oh,
merda, Hank, ninguém vai roubar esse fusca velho.
– Jon,
eu acabo de comprar um novo BMW.
– Quê?
– Anteontem.
Meu consultor de impostos diz que é dedutível do imposto de renda.
– Dedutível
do imposto? Não acho possível...
– Foi
o que ele me disse. Me disse que na América a gente tem de gastar o
dinheiro, senão tomam. Agora não podem tomar o meu: eu não tenho
nenhum.
– Mas
eu preciso ver o argumento! Com alguma coisa pra mostrar aos
produtores, posso começar a me mexer.
– Tudo
bem, sabe o Ralph’s Market, perto do gueto?
– Sei.
– Vou
parar no estacionamento e telefonar pra você de lá. Depois você
vem me buscar, certo?
– Ótimo,
vou fazer isso...
Sarah
e eu esperávamos junto a nosso negro BMW 320i, quando Jon encostou.
Entramos e fomos para o gueto.
– Que
vão seus leitores e os críticos dizer quando descobrirem sobre o
BMW?
– Como
sempre, esses porras vão ter de me julgar pelo que eu escrevo.
– Nem
sempre fazem isso.
– Isso
é problema deles.
– Trouxe
o argumento com você?
– Está
bem aqui – disse Sarah.
– Minha
secretária.
– Ele
escreveu de uma vez – disse Sarah.
– Sou
um gênio 320i – eu disse.
Rodávamos
para a casa de Jon. Vários automóveis estacionavam na frente. Ainda
era dia. Talvez uma e meia da tarde. Atravessamos a casa até o
quintal.
O
almoço já rolava há algum tempo. Garrafas vazias sobre mesas de
madeira. Fatias de melancia chupadas pela metade pareciam tristes ao
sol. As moscas pousavam nelas, depois partiam. Os convidados pareciam
estar ali há pelo menos umas três horas. Era uma dessas festas
dispersas: grupos de três ou quatro aqui, ignorando grupos de três
ou quatro ali. Havia uma mistura de tipos europeus e de Hollywood,
mais alguns outros. Os outros não tinham tipo especial, apenas
estavam ali, e decididos a ficar. Eu sentia ódio no ar, mas não
sabia o que fazer. Jon sabia: abriu algumas novas garrafas de vinho.
Aproximamo-nos
de François. Ele atuava na grelha. Estava morto de bêbado e
totalmente deprimido. Virava pedaços de galinha no espeto. Os
pedaços já estavam assados, ficando pretos, mas ele ainda os
girava.
François
tinha uma aparência terrível. Usava uma dessas grandes toucas
brancas de chef, só que era evidente que já caíra muitas vezes de
sua cabeça e tinha manchas de lama. Ele nos viu.
– AH!
ESTAVA ESPERANDO POR VOCÊS! ESTÃO ATRASADOS! QUE HOUVE? EU NÃO
ENTENDO!
– Desculpe,
François, tivemos de estacionar no Ralph’s.
– GUARDEI
UM POUCO DE FRANGO PRA VOCÊS! COMAM UNS PEDAÇOS DE FRANGO!
Pegou
dois pratos de papelão e jogou um pedaço de frango em cada um.
– Obrigado,
François.
Sarah
e eu encontramos uma mesa e nos sentamos. Jon sentou-se conosco.
– François
está perturbado. Acha que eu matei uma das galinhas dele. Jamais
houve uma galinha com tantas pernas, peitos e asas. Contei as
galinhas repetidas vezes com ele. A conta está certa. Mas ele bebe e
acha que eu matei uma das galinhas. Eu comprei os pedaços no
Ralph’s.
– François
é muito sensível – disse Sarah.
– E
como – disse Jon. – E pra piorar tudo, como se orgulha de nos
proteger contra roubos. Armou araminhos e alarmes por toda parte.
Toda espécie de alarme maluco. Muito sensíveis. Eu dei um peido uma
vez e um deles disparou.
– Ora,
vamos, Jon...
– Não,
é verdade. Assim, pra piorar ainda mais, outro dia François saiu
pra ligar o carro. O motor pegou. Ele pôs em marcha ré, e não
aconteceu nada. Achou que a marcha ré tinha pifado. Saltou do carro
e descobriu que estavam faltando as duas rodas de trás...
– Incrível...
– Aconteceu.
A ré do carro estava apoiada num monte de pedras, e faltavam as
rodas...
– Deixaram
as da frente?
– Deixaram.
– Onde
se arranjam novas rodas e pneus? – perguntou Sarah.
– A
gente comprou de volta dos safados.
– O
quê?! – eu perguntei. – Podemos tomar outro drinque?
Jon
serviu.
– Eles
bateram na porta. Perguntaram: “Querem suas rodas? Nós estamos com
suas rodas”. Mandei eles entrarem. “EU VOU MATAR VOCÊS!”,
gritou François. Mandei ele ficar quieto. Tomamos vinho com eles e
barganhamos o preço. Foi preciso muita barganha e muito vinho, mas
finalmente chegamos a um acordo, e eles trouxeram as rodas e jogaram
no chão. Foi isso aí.
– Quanto
custou a vocês?
– Trinta
e três dólares. Pareceu um bom negócio por duas rodas e dois
pneus.
– Nada
mal – eu disse.
– Bem,
na verdade chegou a 38. Tivemos de pagar mais cinco pra eles
prometerem não tornar a roubar as rodas.
– Mas
e se outros roubarem?
– Eles
disseram que os cinco garantiam que ninguém jamais tocaria nas
rodas. Mas explicaram que isso só se aplicava às rodas, e não a
qualquer outra parte do carro.
– Fizeram
outros acordos?
– Não,
e eles foram embora. Mas notamos que nosso rádio tinha desaparecido.
Ficamos de olho neles o tempo todo, e o rádio mesmo assim
desapareceu. Não tenho ideia de como fizeram isso. É um rádio
tamanho padrão. Como puderam esconder ele? Como saíram com ele pela
porta? Eu não compreendo. É uma coisa de admirar.
– É.
Jon
levantou-se. Tinha o argumento.
– Preciso
esconder isso agora. Tenho um lugar muito especial. E eu te agradeço
por teu trabalho nisso, Hank.
– Não
foi nada. Grana mole.
Jon
se afastou com o argumento. Baixei os olhos para o meu frango.
– Nossa,
não posso comer isso... está queimado, quase uma pedra.
– Também
não posso comer o meu...
– Tem
uma lata de lixo junto da cerca ali. Vamos tentar nos livrar desse
troço...
Fomos
até a lata de lixo. Ao longo de toda a cerca viam-se aqueles
olhinhos olhando em carinhas pretas.
– Ei,
me dá um pedaço de frango!
– Me
dá uma asa, seu filho da puta...
Eu
me aproximei da cerca.
– Este
troço está queimado... não se pode comer...
Uma
mãozinha esticou-se e o pedaço de frango desapareceu. Outra mão
disparou e o pedaço de frango de Sarah também se foi.
Os
dois carinhas saíram a correr, gritando, seguidos por um bando de
outros garotos, que também gritavam.
– Tem
horas que odeio ser branca – disse Sarah.
– Tem
guetos brancos também. E negros ricos.
– Não
se compara.
– Não,
mas eu não sei o que fazer.
– Comece
por algum lugar…
– Não
tenho colhões. Estou muito preocupado com meu próprio rabo branco.
Vamos nos juntar a esse alegre grupo aí e pegar mais umas bebidas.
– É
sua resposta pra tudo: beber.
– Não,
essa é minha resposta pra nada.
Era
hora de desfazer o grupo. Mesmo naquele quintal arrebentado havia
áreas de gueto, áreas Malibu e áreas Beverly Hills. Por exemplo,
os mais bem vestidos, com roupas de griffes famosas, permaneciam
juntos. Cada tipo reconhecia sua contraparte e não exibia tendências
a se misturar. Fiquei surpreso de alguns deles se mostrarem dispostos
a ir a um gueto negro em Venice. Talvez achassem a coisa chique.
Claro, o que fazia a coisa toda cheirar mal era o fato de muitos dos
ricos e famosos na verdade não passarem de putas estúpidas e
estúpidos filhos da puta. Simplesmente haviam entrado em alguma
mamata em alguma parte. Ou tinham enriquecido com a estupidez do
grande público. Geralmente eram desprovidos de talento, de visão,
de alma, pedaços de cocô ambulantes, mas para o público pareciam
deuses, belos, reverenciados. O mau gosto cria muito mais milionários
que o bom gosto. No fim, tudo se resumia a quem conseguia mais votos.
Na terra das toupeiras uma toupeira era rei. Portanto, quem merecia
alguma coisa? Ninguém merecia nada...
François
sentava-se a uma mesa e fomos nos sentar com ele. Mas ele estava
triste, completamente desligado daquilo tudo. Mal nos reconheceu. Um
charuto molhado e partido pendia-lhe da boca, e ele fitava a sua
bebida. Ainda trazia o imundo chapéu de chef. Sempre tivera um pouco
de classe, mesmo nos piores momentos. Agora, tudo desaparecera. Era
terrível.
– POR
QUE VOCÊS SE ATRASARAM? EU NÃO COMPREENDO! SEGUREI O ALMOÇO PRA
ESPERAR POR VOCÊS! POR QUE SE ATRASARAM?
– Escuta,
amigo, por que não dorme pra curtir essa? Amanhã tudo parecerá
melhor...
– AMANHÃ
SEMPRE PARECE A MESMA COISA! É ESSE O PROBLEMA!
Jon
aproximou-se.
– Deixa
que eu cuido dele. Vai ficar bem. Venham, me deixa apresentar vocês
a alguns convidados.
– Não,
a gente precisa ir...
– Tão
cedo?
– É,
estou preocupado com o 320i.
– Levo
vocês de carro...
Ainda
estava lá. Entrei e acenei para Jon quando ele voltou para o gueto,
a festa e o coitado do François.
Em
breve alcançávamos a autoestrada.
– Bem,
você escreveu o argumento – disse Sarah. – Pelo menos tem isso.
– Pelo
menos...
– Acha
que algum dia se tornará um filme?
– É
sobre a vida de um bêbado. Quem liga pra vida de um bêbado?
– Eu.
Quem você gostaria que fizesse o papel principal?
– François.
– François?
– É.
– Temos
alguma coisa pra beber em casa?
– Meia
caixa de gamay beaujolais.
– Deve
dar...
Acelerei
mais para chegar a eles.
Charles Bukowski, in Hollywood
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