sexta-feira, 16 de junho de 2023

Hollywood | 18


O argumento ia bem. Escrever nunca foi trabalho para mim. Sempre fora assim, desde quando me lembrava: ligar o rádio numa estação de música clássica, acender um cigarro ou charuto, abrir a garrafa. A máquina fazia o resto. Eu só precisava estar ali. Todo o processo me permitia seguir em frente quando a vida oferecia tão pouco, quando a própria vida era um espetáculo de horror. Sempre havia a máquina para me acalmar, conversar comigo, me entreter, salvar meu rabo. Basicamente, era por isso que eu escrevia: para salvar meu rabo, salvar meu rabo do asilo de doidos, das ruas, de mim mesmo.
Uma de minhas mulheres passadas berrara pra mim:
Você bebe pra fugir da realidade!
É claro, minha cara – eu lhe respondera.
Usava a garrafa e a máquina. Gostava de ter um pássaro em cada mão, ao diabo com o mato.
De qualquer modo, o argumento ia bem. Ao contrário do romance, do conto ou do poema, quando eu folgava uma ou duas noites de tempos em tempos, trabalhava nele toda noite. E aí, acabou.
Telefonei para Jon:
Bem, não sei o que temos aqui, mas está acabado.
Sensacional! Eu iria pegar, mas estamos dando um almoço aqui. Comidas, bebidas, convidados. François é o chef. Pode trazer o argumento de carro?
Eu gostaria, mas tenho medo de rodar por aí.
Oh, merda, Hank, ninguém vai roubar esse fusca velho.
Jon, eu acabo de comprar um novo BMW.
Quê?
Anteontem. Meu consultor de impostos diz que é dedutível do imposto de renda.
Dedutível do imposto? Não acho possível...
Foi o que ele me disse. Me disse que na América a gente tem de gastar o dinheiro, senão tomam. Agora não podem tomar o meu: eu não tenho nenhum.
Mas eu preciso ver o argumento! Com alguma coisa pra mostrar aos produtores, posso começar a me mexer.
Tudo bem, sabe o Ralph’s Market, perto do gueto?
Sei.
Vou parar no estacionamento e telefonar pra você de lá. Depois você vem me buscar, certo?
Ótimo, vou fazer isso...

Sarah e eu esperávamos junto a nosso negro BMW 320i, quando Jon encostou. Entramos e fomos para o gueto.
Que vão seus leitores e os críticos dizer quando descobrirem sobre o BMW?
Como sempre, esses porras vão ter de me julgar pelo que eu escrevo.
Nem sempre fazem isso.
Isso é problema deles.
Trouxe o argumento com você?
Está bem aqui – disse Sarah.
Minha secretária.
Ele escreveu de uma vez – disse Sarah.
Sou um gênio 320i – eu disse.
Rodávamos para a casa de Jon. Vários automóveis estacionavam na frente. Ainda era dia. Talvez uma e meia da tarde. Atravessamos a casa até o quintal.
O almoço já rolava há algum tempo. Garrafas vazias sobre mesas de madeira. Fatias de melancia chupadas pela metade pareciam tristes ao sol. As moscas pousavam nelas, depois partiam. Os convidados pareciam estar ali há pelo menos umas três horas. Era uma dessas festas dispersas: grupos de três ou quatro aqui, ignorando grupos de três ou quatro ali. Havia uma mistura de tipos europeus e de Hollywood, mais alguns outros. Os outros não tinham tipo especial, apenas estavam ali, e decididos a ficar. Eu sentia ódio no ar, mas não sabia o que fazer. Jon sabia: abriu algumas novas garrafas de vinho.
Aproximamo-nos de François. Ele atuava na grelha. Estava morto de bêbado e totalmente deprimido. Virava pedaços de galinha no espeto. Os pedaços já estavam assados, ficando pretos, mas ele ainda os girava.
François tinha uma aparência terrível. Usava uma dessas grandes toucas brancas de chef, só que era evidente que já caíra muitas vezes de sua cabeça e tinha manchas de lama. Ele nos viu.
AH! ESTAVA ESPERANDO POR VOCÊS! ESTÃO ATRASADOS! QUE HOUVE? EU NÃO ENTENDO!
Desculpe, François, tivemos de estacionar no Ralph’s.
GUARDEI UM POUCO DE FRANGO PRA VOCÊS! COMAM UNS PEDAÇOS DE FRANGO!
Pegou dois pratos de papelão e jogou um pedaço de frango em cada um.
Obrigado, François.
Sarah e eu encontramos uma mesa e nos sentamos. Jon sentou-se conosco.
François está perturbado. Acha que eu matei uma das galinhas dele. Jamais houve uma galinha com tantas pernas, peitos e asas. Contei as galinhas repetidas vezes com ele. A conta está certa. Mas ele bebe e acha que eu matei uma das galinhas. Eu comprei os pedaços no Ralph’s.
François é muito sensível – disse Sarah.
E como – disse Jon. – E pra piorar tudo, como se orgulha de nos proteger contra roubos. Armou araminhos e alarmes por toda parte. Toda espécie de alarme maluco. Muito sensíveis. Eu dei um peido uma vez e um deles disparou.
Ora, vamos, Jon...
Não, é verdade. Assim, pra piorar ainda mais, outro dia François saiu pra ligar o carro. O motor pegou. Ele pôs em marcha ré, e não aconteceu nada. Achou que a marcha ré tinha pifado. Saltou do carro e descobriu que estavam faltando as duas rodas de trás...
Incrível...
Aconteceu. A ré do carro estava apoiada num monte de pedras, e faltavam as rodas...
Deixaram as da frente?
Deixaram.
Onde se arranjam novas rodas e pneus? – perguntou Sarah.
A gente comprou de volta dos safados.
O quê?! – eu perguntei. – Podemos tomar outro drinque?
Jon serviu.
Eles bateram na porta. Perguntaram: “Querem suas rodas? Nós estamos com suas rodas”. Mandei eles entrarem. “EU VOU MATAR VOCÊS!”, gritou François. Mandei ele ficar quieto. Tomamos vinho com eles e barganhamos o preço. Foi preciso muita barganha e muito vinho, mas finalmente chegamos a um acordo, e eles trouxeram as rodas e jogaram no chão. Foi isso aí.
Quanto custou a vocês?
Trinta e três dólares. Pareceu um bom negócio por duas rodas e dois pneus.
Nada mal – eu disse.
Bem, na verdade chegou a 38. Tivemos de pagar mais cinco pra eles prometerem não tornar a roubar as rodas.
Mas e se outros roubarem?
Eles disseram que os cinco garantiam que ninguém jamais tocaria nas rodas. Mas explicaram que isso só se aplicava às rodas, e não a qualquer outra parte do carro.
Fizeram outros acordos?
Não, e eles foram embora. Mas notamos que nosso rádio tinha desaparecido. Ficamos de olho neles o tempo todo, e o rádio mesmo assim desapareceu. Não tenho ideia de como fizeram isso. É um rádio tamanho padrão. Como puderam esconder ele? Como saíram com ele pela porta? Eu não compreendo. É uma coisa de admirar.
É.
Jon levantou-se. Tinha o argumento.
Preciso esconder isso agora. Tenho um lugar muito especial. E eu te agradeço por teu trabalho nisso, Hank.
Não foi nada. Grana mole.
Jon se afastou com o argumento. Baixei os olhos para o meu frango.
Nossa, não posso comer isso... está queimado, quase uma pedra.
Também não posso comer o meu...
Tem uma lata de lixo junto da cerca ali. Vamos tentar nos livrar desse troço...
Fomos até a lata de lixo. Ao longo de toda a cerca viam-se aqueles olhinhos olhando em carinhas pretas.
Ei, me dá um pedaço de frango!
Me dá uma asa, seu filho da puta...
Eu me aproximei da cerca.
Este troço está queimado... não se pode comer...
Uma mãozinha esticou-se e o pedaço de frango desapareceu. Outra mão disparou e o pedaço de frango de Sarah também se foi.
Os dois carinhas saíram a correr, gritando, seguidos por um bando de outros garotos, que também gritavam.
Tem horas que odeio ser branca – disse Sarah.
Tem guetos brancos também. E negros ricos.
Não se compara.
Não, mas eu não sei o que fazer.
Comece por algum lugar…
Não tenho colhões. Estou muito preocupado com meu próprio rabo branco. Vamos nos juntar a esse alegre grupo aí e pegar mais umas bebidas.
É sua resposta pra tudo: beber.
Não, essa é minha resposta pra nada.

Era hora de desfazer o grupo. Mesmo naquele quintal arrebentado havia áreas de gueto, áreas Malibu e áreas Beverly Hills. Por exemplo, os mais bem vestidos, com roupas de griffes famosas, permaneciam juntos. Cada tipo reconhecia sua contraparte e não exibia tendências a se misturar. Fiquei surpreso de alguns deles se mostrarem dispostos a ir a um gueto negro em Venice. Talvez achassem a coisa chique. Claro, o que fazia a coisa toda cheirar mal era o fato de muitos dos ricos e famosos na verdade não passarem de putas estúpidas e estúpidos filhos da puta. Simplesmente haviam entrado em alguma mamata em alguma parte. Ou tinham enriquecido com a estupidez do grande público. Geralmente eram desprovidos de talento, de visão, de alma, pedaços de cocô ambulantes, mas para o público pareciam deuses, belos, reverenciados. O mau gosto cria muito mais milionários que o bom gosto. No fim, tudo se resumia a quem conseguia mais votos. Na terra das toupeiras uma toupeira era rei. Portanto, quem merecia alguma coisa? Ninguém merecia nada...
François sentava-se a uma mesa e fomos nos sentar com ele. Mas ele estava triste, completamente desligado daquilo tudo. Mal nos reconheceu. Um charuto molhado e partido pendia-lhe da boca, e ele fitava a sua bebida. Ainda trazia o imundo chapéu de chef. Sempre tivera um pouco de classe, mesmo nos piores momentos. Agora, tudo desaparecera. Era terrível.
POR QUE VOCÊS SE ATRASARAM? EU NÃO COMPREENDO! SEGUREI O ALMOÇO PRA ESPERAR POR VOCÊS! POR QUE SE ATRASARAM?
Escuta, amigo, por que não dorme pra curtir essa? Amanhã tudo parecerá melhor...
AMANHÃ SEMPRE PARECE A MESMA COISA! É ESSE O PROBLEMA!
Jon aproximou-se.
Deixa que eu cuido dele. Vai ficar bem. Venham, me deixa apresentar vocês a alguns convidados.
Não, a gente precisa ir...
Tão cedo?
É, estou preocupado com o 320i.
Levo vocês de carro...

Ainda estava lá. Entrei e acenei para Jon quando ele voltou para o gueto, a festa e o coitado do François.
Em breve alcançávamos a autoestrada.
Bem, você escreveu o argumento – disse Sarah. – Pelo menos tem isso.
Pelo menos...
Acha que algum dia se tornará um filme?
É sobre a vida de um bêbado. Quem liga pra vida de um bêbado?
Eu. Quem você gostaria que fizesse o papel principal?
François.
François?
É.
Temos alguma coisa pra beber em casa?
Meia caixa de gamay beaujolais.
Deve dar...
Acelerei mais para chegar a eles.

Charles Bukowski, in Hollywood

Nenhum comentário:

Postar um comentário