Nessa
noite, sem Jon escutando lá embaixo, o argumento começou a andar.
Eu escrevia sobre um jovem que queria escrever e beber, mas a maior
parte de seu sucesso era com a garrafa. O jovem fora eu. Embora
aquele não fosse um tempo infeliz, tinha sido, em grande parte, um
tempo de vazio e espera. Enquanto eu batia, os personagens de um
certo bar me voltavam à memória. Eu tornava a ver cada rosto, os
corpos, ouvia as vozes. Ali estava um bar que tinha um certo encanto
mortal. Eu me concentrei nisso, revivi as brigas de bar com o garçom.
Eu não era bom de briga. Para começar, tinha as mãos pequenas
demais e vivia mal alimentado, muito mal alimentado. Mas tinha uma
certa garra e encaixava um soco muito bem. Meu principal problema
numa briga era que não conseguia me enfurecer de verdade, mesmo
quando minha vida parecia estar em jogo. Era tudo teatro comigo.
Importava e não. Brigar com o garçom era algo que tinha de ser
feito e agradava aos fregueses, que eram um grupinho muito unido. Eu
era o de fora. Tem alguma coisa positiva na bebida – aquelas brigas
todas teriam me matado se eu tivesse sóbrio, mas, bêbado, era como
se o corpo virasse borracha e a cabeça cimento. Pulsos torcidos,
lábios inchados e rótulas machucadas eram mais ou menos tudo que eu
sofria no dia seguinte. E também galos na cabeça, das quedas. Como
isso podia virar um argumento, eu não sabia. Só sabia que era a
única parte da minha vida sobre a qual não escrevera muito.
Acredito que era são naquela época, tão são quanto qualquer
outro. E sabia que havia toda uma civilização de almas penadas que
viviam entrando e saindo de bares, diariamente, noturnamente e para
sempre, até a morte. Nunca lera sobre essa civilização, e por isso
decidi escrever sobre ela, como a lembrava. A boa máquina velha
matraqueava.
No
dia seguinte, lá pelo meio-dia, o telefone tocou. Era Jon.
– Encontrei
uma casa. François está comigo. É linda, tem duas cozinhas, e o
aluguel é de graça, realmente de graça...
– Onde
está?
– Estamos
no gueto de Venice. Avenida Brooks. Só tem negros. As ruas são
guerra e destruição. Lindo!
– Oh!
– Você
deve vir ver a casa!
– Quando?
– Hoje!
– Eu
não sei.
– Oh,
você não ia querer perder isto! Tem gente morando debaixo da nossa
casa. A gente ouve eles lá embaixo, falando e tocando o rádio. Tem
gangues por toda parte! Alguém construiu um grande hotel aqui. Mas
ninguém pagou o aluguel. Fecharam o lugar com tábuas, cortaram a
eletricidade, a água, o gás. Mas as pessoas ainda moram aqui. É
UMA ZONA DE GUERRA! A polícia não vem aqui, parece um estado
separado, com suas próprias leis. Eu adoro! Você tem de nos
visitar!
– Como
chego aí?
Jon
me deu as indicações, e desligou.
Procurei
Sarah.
– Escuta,
preciso ir ver Jon e François.
– Ei,
eu vou também!
– Não,
não pode. Fica no gueto de Venice.
– Oh,
o gueto! Eu não perderia isso por nada neste mundo!
– Escuta,
me faz um favor, tá? Por favor, não venha!
– Que?
Acha que eu ia deixar você ir lá embaixo sozinho?
Peguei
minha lâmina, pus o dinheiro nos sapatos.
– Tá
legal – disse...
Entramos
dirigindo devagar no gueto de Venice. Não era verdade que só
tivesse negros. Havia alguns latinos nos arredores. Notei um grupo de
sete a oito mexicanos em volta, encostados num carro velho. Quase
todos usavam camiseta ou estavam nus da cintura para cima. Passei
dirigindo devagar, sem encarar ninguém, só absorvendo. Eles não
pareciam fazer muita coisa. Só esperavam. Prontos e à espera. Na
verdade, provavelmente estavam apenas entediados. Pareciam caras
legais. E não pareciam lá muito preocupados.
Aí
chegamos à turfa negra. De repente, ruas cheias de lixo: um pé
esquerdo de sapato, uma camisa laranja, uma bolsa velha... uma romã
podre... outro pé esquerdo de sapato... um blue jeans... um pneu...
Eu
tinha de dirigir por entre aquelas coisas. Dois negros de uns onze
anos nos fitavam de suas bicicletas. Ódio puro, perfeito. Eu sentia.
Os negros pobres tinham ódio. Os brancos pobres tinham ódio. Só
quando ganhavam dinheiro negros e brancos se integravam. Alguns
brancos amavam os negros. Muito poucos negros amavam os brancos, se é
que algum amava. Ainda estavam indo à forra. Talvez nunca fossem.
Numa sociedade capitalista, os perdedores são escravizados pelos
vencedores, e é preciso haver mais perdedores que vencedores. Que
pensava eu? Sabia que a política jamais resolveria isso, e não
sobrava muito tempo para entrar numa boa.
Dirigimos
até encontrar o endereço, estacionei o carro, saí e bati na porta.
Uma
portinhola abriu-se deslizando e lá estava um olho nos olhando.
– Ah,
Hank e Sarah!
A
porta abriu-se, fechou-se, e estávamos dentro.
Eu
me aproximei da janela e dei uma olhada.
– Que
está fazendo? – perguntou Jon.
– Só
quero dar uma olhada no carro de vez em quando...
– Oh,
sim, venha ver, vou te mostrar as duas cozinhas!
Claro
que havia duas cozinhas, um fogão em cada uma, uma geladeira em cada
uma, uma pia em cada uma.
– Eram
duas casas antes. Foram transformadas em uma.
– Legal
– disse Sarah. – Você pode cozinhar numa cozinha e François na
outra...
– No
momento, estamos vivendo basicamente de ovos. Temos galinhas, que
põem muitos ovos...
– Nossa,
Jon, tá tão ruim assim?
– Não,
na verdade, não. A gente calcula que vai ficar aqui por um longo
tempo. Precisamos de quase todo o nosso dinheiro pra vinho e
charutos. Como vai indo o argumento?
– Tenho
o prazer de comunicar que já temos umas boas páginas. Só que às
vezes me atrapalho com CÂMERA, ZOOM, PANORÂMICA... essa merda
toda...
– Não
se preocupe, eu cuido disso.
– Onde
está François? – perguntou Sarah.
– Ah,
está na outra sala... venham...
Entramos
e lá estava François rodando sua roletinha. Quando bebia, ficava
com o nariz muito vermelho, como um bêbado de desenho animado. E
também, quanto mais bebia, mais deprimido ficava. Chupava um toco de
charuto molhado. Conseguiu extrair algumas tristes baforadas. Ao
lado, via-se uma garrafa de vinho quase vazia.
– Merda
– disse – já estou com 60 mil dólares no buraco e bebendo esse
vinho barato do Jon, que ele diz ser coisa fina mas é pura bosta.
Paga um dólar e 35 centavos a garrafa. Meu estômago parece um balão
cheio de xixi! Estou com 60 mil dólares no buraco e sem nenhum
emprego em vista. Tenho de... me... matar...
– Vamos
lá, François – disse Jon – vamos mostrar as galinhas a nossos
amigos...
– As
galinhas! O-V-V-OS! A gente come O-V-V-OS o tempo todo! Só O-V-V-OS!
Pup, pup, pup! A galinha pup O-V-V-OS! O dia todo, a noite toda minha
função é salvar as galinhas dos negrinhos! Os negrinhos vivem
saltando a cerca e correndo pro galinheiro! Eu bato neles com uma
vara comprida, digo: “Seus filhos da puta, fiquem longe de minhas
galinhas que pup os O-V-V-OS! Não consigo pensar, não consigo
pensar em minha vida nem em minha morte, estou sempre correndo atrás
desses negrinhos com a vara comprida! Jon, preciso de mais vinho,
outro charuto!
Deu
outra rodada na roleta.
Mais
más notícias. O sistema estava falhando.
– Sabe,
na França tem apenas um zero pra casa! Aqui na América tem um zero
e um duplo zero pra casa! PEGAM OS DOIS BAGOS DA GENTE! POR QUÊ?
Vamos lá, mostro a vocês as galinhas...
Saímos
para o quintal, e lá estavam as galinhas e o galinheiro. O próprio
François o fizera. Era bom nessas coisas. Tinha um verdadeiro
talento para isso. Só que não usara tela de galinheiro, mas barras.
E fechaduras em cada porta.
– Faço
a chamada toda noite. “Cécile, está aí?” “Cluc, cluc”, ela
responde. “Bernadette, está aí?” “Cluc, cluc”, ela
responde. E por aí vai. Uma noite, eu chamei “Nicole?” e ela não
clucou. Você acredita? Apesar de todas as barras e fechaduras, eles
pegaram Nicole! Tiraram ela daqui. Nicole se foi, se foi para sempre!
Jon, Jon, eu preciso de mais vinho!
Tornamos
a entrar e nos sentamos, e o novo vinho correu solto. Jon deu um novo
charuto a François.
– Se
eu tiver meu charuto quando preciso – disse François – posso
viver.
Bebemos
por algum tempo, e então Sarah perguntou:
– Escuta,
Jon, seu senhorio é negro?
– Oh,
sim...
– Ele
não te perguntou por que alugava uma casa aqui?
– Sim...
– E
que foi que você disse?
– Disse
que éramos cineastas e atores da França.
– E
ele?
Ele
disse: “Oh”.
– Mais
alguma coisa?
– Sim,
disse: “Bem, o rabo é seu!”.
Bebemos
um tempo falando bobagem.
De
vez em quando eu me levantava e ia à janela ver se o carro ainda
estava lá.
Enquanto
bebíamos, comecei a me sentir culpado pela coisa toda.
– Escuta,
Jon, deixa eu te devolver o dinheiro do argumento. Eu botei você
contra a parede. Isso é terrível...
– Não,
eu quero que você faça esse argumento. Ele vai se tornar um filme,
eu prometo...
– Tudo
bem, porra...
Bebemos
mais um pouco.
Então
Jon disse:
– Veja...
Por
um buraco na parede onde nos sentávamos via-se uma mão, uma mão
negra. Contorcia-se através do reboco quebrado, os dedos
fechando-se, movendo-se. Parecia um animalzinho escuro.
– DÊ
O FORA! – berrou François. – DÊ O FORA, ASSASSINO DE NICOLE!
VOCÊ DEIXOU UM BURACO ETERNO EM MEU CORAÇÃO! DÊ O FORA!
A
mão não deu o fora.
François
aproximou-se da parede e dela.
– Estou
mandando dar o fora. Só quero fumar meu charuto e beber meu vinho em
paz. Você perturba o visual! Não posso me sentir bem com você
tateando e me olhando com seus pobres dedos negros!
A
mão não deu o fora.
– TUDO
BEM, ENTÃO!
A
vara estava bem ali. Com um movimento demoníaco, François pegou-a e
começou a açoitar a parede com ela, repetidas vezes...
– ASSASSINO
DE GALINHA, VOCÊ FERIU MEU CORAÇÃO ETERNAMENTE!
O
som era ensurdecedor. Então François parou.
A
mão dera o fora.
François
sentou-se.
– Merda,
Jon, meu charuto apagou. Por que não compra charutos melhores, Jon?
– Escuta,
Jon – eu disse – a gente tem de ir indo...
– Ora,
vamos... por favor... a noite está só começando! Você não viu
nada ainda...
– A
gente precisa ir indo... Preciso trabalhar mais no argumento...
– Oh...
nesse caso...
Em
casa, subi e trabalhei no argumento, mas estranhamente, ou talvez
não, minha vida passada não parecia tão estranha, bárbara ou
louca quanto o que ocorria agora.
Charles Bukowski, in Hollywood
Nenhum comentário:
Postar um comentário