Começar
— o resto vem depois. Sábado e domingo fui a uma feira de livros
na praça perto de minha casa, uma porção de quiosques com enorme
quantidade de títulos, existem livros sobre qualquer assunto.
Aproveitei e passei esses dois dias andando de uma barraca para a
outra, lendo trechos de centenas de livros. Os encarregados desses
quiosques são como os camaradas dos sebos, não se incomodam se você
dá uma manuseada no volume. E havia pouca gente interessada.
Quero
escrever um livro. Não penso em outra coisa. Li uma entrevista de um
autor importante, não me lembro do nome, na qual ele dizia que
sentava na frente do computador para escrever sem saber o quê, e à
medida que escrevia, as ideias iam surgindo na sua cabeça, os
personagens, a história, tudo. Se você quer escrever, aconselhava
ele, comece — escrever é começar. Uma coisa simples, como todas
as verdades. E a gente começa um livro dando-lhe um título, sem ele
o livro não adquire o sopro inicial de vida necessário ao seu
desenvolvimento, um livro é como uma pessoa, tem que ter logo um
nome de batismo. Ontem comecei um livro, mas desisti. Fiquei horas na
frente do papel, olhando para o título, e não saiu mais nada.
Rasguei aquela folha e joguei no lixo. Hoje começo outro. Com título
diferente, é claro, o primeiro abortou. Escrever é começar.
A
VINGANÇA — “As pessoas que o conheciam não seriam capazes de
imaginar que ele pudesse realizar alguma coisa grandiosa. Era um
homem gordo e ninguém esperava que conseguisse aquela proeza
admirável. Como não havia heróis gordos no cinema, na televisão e
na História, eles também não podiam existir na vida real. Jesus
era magro, o Demônio também era magro. Um Casanova gordo? Só se
fosse um xeque. Sim, Buda era gordo, mas devia haver alguma
misteriosa razão sanscrítica para ele ser representado por uma
imagem pachorrenta, sempre sentada, enquanto os outros, os magros,
estão de pé ou a cavalo. Os gordos são vistos como pessoas tolas
que suam muito, que sobem escadas bufando exaustos, cuja nudez,
quando não é repulsiva, é cômica. Os caricaturistas adoram os
gordos. São ridicularizados, humilhados e ofendidos de todas as
maneiras. Além de gordo, ele era pobre. Sim, ele era um gordo
recalcado, se roendo de inveja e vergonha. Até que tramou a sua
vingança, uma façanha assombrosa que lavaria a sua alma e a de
todos os gordos do mundo.”
Uma
merda, esse começo. Não consigo inventar uma boa história. Tenho
um título e um começo, mas o resto? O começo até que é razoável,
cria um certo suspense ao falar de vingança, de uma façanha
assombrosa. O leitor certamente ficará interessado. Mas que façanha
assombrosa é essa? Jogar uma bomba num local cheio de gente? Isso
acontece todo dia em várias partes do mundo, o herói matando em
nome de Deus, mas não quero escrever uma história sobre a Fé, nem
sobre nenhum outro dogma religioso. O personagem é um grande
bandido? Bandido gordo não é raro, mas os bandidos realmente
importantes são magros. Tenho que mudar o começo. Primeiro, riscar
a façanha assombrosa. Outra coisa, um ato que lave a alma dos gordos
do mundo inteiro é impossível. Posso deixar o personagem tramando
uma vingança que lave a sua alma singular, um sujeito gordo pode
lavar a própria alma matando um magrela qualquer, mas isso é pouco.
O escritor não deve criar expectativas que não podem ser
preenchidas. Teve um desses caras cheios de livros publicados que,
numa entrevista, os escritores adoram dar entrevistas, pontificou: ao
escrever, livre-se da sua vidinha. Até que isso está bem bolado.
Livre-se da sua vidinha. Então meu personagem vai deixar de ser
gordo, ele é gordo porque eu sou gordo, vou livrar-me da minha
vidinha. Mas tenho que saber sobre o que eu escrevo, porra, não é
fácil a gente se livrar da nossa vidinha. Eu sei o que é ser gordo,
devo então fingir que sou magro e atribuir ao meu personagem magro
os meus ressentimentos de gordo? Provavelmente o leitor não
perceberá isso, que o personagem magro é na verdade um gordo
frustrado e humilhado. Bem, vou fazer esse sujeito magro matar
alguém, de preferência um político odiado, um tubarão das
finanças ou outro figurão qualquer, a morte de um sujeito poderoso
causa comoção e desperta simpatia para o assassino, até mesmo na
vida real. E o herói, que os leitores pensam ser magro, lava a sua
alma de gordo ao cometer esse ato mortal. O problema é que essa
história de atentado já foi muito usada, os humilhados do mundo
sempre cometeram atentados, contra príncipes, políticos, multidões,
causando guerras e comoções com esse gesto, mas alguém lembra o
nome deles? Quem foi mesmo que matou o arquiduque Ferdinand? Quem foi
mesmo que detonou aquela bomba que matou milhares naquela parte do
mundo? Não posso escrever coisas que o tempo apaga. Sinto-me num
beco sem saída, comecei mal. Está uma merda, esse começo. Mas são
estes os assuntos que interessam ao leitor, sexo, morte e dinheiro,
não posso me afastar disso. Vou fazer outro começo. Escrever é
começar.
O
HOMEM POR QUEM AS MULHERES ERAM LOUCAS — “Rodrigo era um homem
comum, nem bonito nem feio, nem alto nem baixo, mas não precisava
fazer coisa alguma para fazer as mulheres se apaixonarem por ele.
Qualquer uma que conversasse com Rodrigo por mais de meia hora
sentia-se inconscientemente excitada, um calor na pele, uma espécie
de euforia na mente. E o assunto podia ser qualquer um, sobre
crianças e empregadas, a tediosa e recorrente conversação
feminina, ou sobre política ou economia, caso uma mulher se
interessasse por isso. Em suma, qualquer coisa. Quanto mais tempo a
mulher ficasse ao lado do nosso herói, mais se encantaria com ele,
pois Rodrigo era um homem que amava intensamente o sexo feminino e as
mulheres sentiam isso, como um gás inebriante, um feitiço, um
sortilégio que as fascinava, seduzindo-as, contaminando-as,
instigando-as a se entregarem a ele. As mulheres descobrem
misteriosamente quando um homem é compulsivamente atraído pelo sexo
feminino e respondem como mariposas atraídas pela luz. No início
elas não entendiam o que estava acontecendo, mas, depois que se
afastavam, Rodrigo permanecia em suas mentes. À noite, sonhavam com
ele.”
Revejo
esse começo, o começo exige atenção especial. Não gosto do nome
do personagem, Rodrigo. É nome de novela de TV. E não posso
comparar a mulher a uma mariposa, esse nome tem conotações
negativas, as prostitutas eram chamadas, e ainda o são, de
mariposas, e quando falo que as mulheres só gostam de falar sobre
crianças e empregadas pareço um desses machistas que acham as
mulheres inferiores, e mesmo se elas fossem inferiores, como atestam
algumas opiniões filosóficas e científicas de peso, um escritor
não pode dizer isso, perde os leitores femininos, e as mulheres
podem não entender o que leem mas compram livros. E quando digo que
o herói seduzia as mulheres contaminando-as, estou usando uma
metáfora que pode parecer inadequada. Contaminar é contagiar,
provocar uma infecção, corromper, viciar, era isso mesmo que eu
queria dizer, mas todo cuidado é pouco com as metáforas. Mas esse
começo também está uma merda, não sei o que vai acontecer depois,
todas as ideias que galopam pelo meu pensamento deixam-me confuso.
Fico horas na máquina de escrever, rasgo mil folhas de papel, mas
não vou para a frente, fico atolado. Acho que vou comprar um
computador. Dizem que isso ajuda. Escrever é começar.
O
ARGENTÁRIO — “Era um banqueiro rico e poderoso, o dinheiro lhe
dava autoridade, abria-lhe portas, conseguia-lhe mulheres e mesuras,
e, quanto mais dinheiro possuía, maiores eram sua influência,
prestígio e poder junto a seus pares e sobre a legião de
subordinados que lhe prestava vassalagem. A ninguém interessava a
maneira pela qual obtivera seus vastos recursos financeiros, parte
deles certamente de maneira ilícita ou imoral, afinal ele era um
banqueiro. O dinheiro dá uma aura de respeitabilidade, além de um
irresistível charme, a ladrões, rufiões, putas, traficantes,
assassinos, assaltantes, pedófilos, estelionatários e corruptos em
geral.”
Esse
começo não está uma merda tão grande quanto os outros, mas tenho
algumas dúvidas. Misturar pedófilos e assassinos com putas,
estelionatários e corruptos é meio arbitrário, não obstante a
atração pelo dinheiro ter a mesma essência do pendor pela
depravação. Além disso, falar mal de banqueiros é um clichê, até
revistas chatas de economia fazem isso. Minha indecisão nada tem a
ver com o fato de que estou devendo dinheiro ao banco, mesmo sendo um
bom motivo para ir à forra dos juros escorchantes que me cobram. Não
sei por que atribuí um irresistível charme ao banqueiro. Um
banqueiro, mesmo que tenha um passado deslumbrante de fraudes,
tramoias e trapaças, como a maioria, a partir do momento em que a
máscara que usa é a de banqueiro e essa máscara vira a sua
verdadeira face, como todas as máscaras que não se tiram do rosto,
ele se torna um sujeito sem charme. Ladrões, assaltantes e
assassinos podem, sim, ter charme para os leitores. Estou usando um
computador, que comprei com dinheiro financiado por um banco, é
claro, não tenho dinheiro sobrando, mas parece que o computador não
está me ajudando tanto quanto eu pensava. Lendo novamente o
parágrafo que começa a história do banqueiro, não tenho dúvidas
de que está também uma droga. Vou abandonar esse começo, mas não
desisto, escrever é começar. Agora estou mais motivado.
OS
SERES HUMANOS NÃO MERECEM EXISTIR — “Gostava de matar baratas,
pisando-as com a sola do sapato, mas um dia, depois de matar uma
barata, o seu pensamento começou a vagar de maneira descontrolada e
inquietante. Queria ser um escritor, ainda que soubesse que cada vez
mais livros são publicados e menos livros são lidos, e que se
conseguisse publicar um livro a crítica não tomaria conhecimento do
seu trabalho, os críticos só se interessam pelos livros que vendem,
por best-sellers cretinos. Mas não ia desistir do seu propósito,
apesar da inquietação que se apoderou dele, do descontrole do seu
pensamento, nesse dia em que matou a barata. Um escritor necessita de
um certo domínio sobre seus pensamentos, deve possuir o poder de
dirigi-los no sentido que desejar, e se isso não for totalmente
possível o escritor não tem motivo para ficar preocupado, precisa
apenas dar um certo método às suas divagações, mesmo se essas
digressões o levem a se perguntar, por que mata apenas baratas? Por
que não mata uma pessoa?”
Gosto
deste novo começo. Não consigo acabar com as baratas que me
perseguem, dedetizo periodicamente a minha casa mas elas sobem do
apartamento de baixo, onde mora uma velha suja e petulante. Ontem ela
disse, sai da minha frente, gordo molenga, quando me encontrou na
escada. A velha desgraçada subia os degraus com mais rapidez do que
eu. Dei passagem a ela sentindo vontade de agarrar o seu magro
pescoço pelancudo e exterminar naquele momento a sua vida inútil.
Odeio baratas e antes as matava pisando nelas, mas hoje vou matá-las
com a minha mão, isso me dará uma satisfação especial, eu me
vingo assim do nojo e do medo que me causam. Corro atrás da primeira
barata que aparece na cozinha e achato-a com um golpe forte, sinto a
barata estalando e enchendo de gosma fedorenta a palma da minha mão,
que esfrego vitorioso no chão da cozinha. Meus pensamentos correm
como ferozes tigres famintos perseguindo gazelas assustadas numa
infindável pradaria. Não vou passar o resto dos meus dias matando
baratas. Desço ao andar de baixo. Quando a velha abre a porta eu
entro e a agarro pelo pescoço, esganando-a. Ainda não sei como
dizer o que sinto. Pego alguns objetos na casa para parecer que a
velha foi morta por um ladrão. Ao sair, deixo a porta aberta, um
vizinho qualquer vai descobrir o corpo. Ninguém suspeitará de mim.
Sou conhecido como um gordo manso e inofensivo.
Neste
momento estou desenvolvendo o começo da história que iniciei com o
título que lhe deu o sopro inicial de vida. No quiosque de livros da
praça li um poema no qual o autor (roubei dele o título da minha
história) diz que o mundo é doloroso, os seres humanos não merecem
existir e ele, poeta, suspeita que a crueldade da sua imaginação
está de certa forma conectada com seus impulsos criativos. Matar a
velha, não a crueldade, como disse o poeta, mas a força do meu ato
e não apenas da minha imaginação foi a impulsão que fará de mim
um verdadeiro escritor. Livre-se da sua vidinha? O escritor não pode
livrar-se da sua vida. Escrever é começar. Tenho, agora, o começo,
tenho o meio e o fim.
Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas
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