Para
onde vai o amor? De manhã preciso ir buscar um remédio para a minha
mãe, depois tenho pilates e às quinze em ponto preciso entregar
ideias para que o protagonista do filme fique menos caricato. Para
onde vai o amor? Quero aparecer na sua agência, subir as escadas
correndo porque essa pergunta precisa ser feita de peito ofegante.
Para onde vai o amor? Você tem a apresentação de uma concorrência.
E tem uma equipe, uma mesa, um lixo, um carro alto, um cabelo grande,
um sobrenome importante, um quadro caro, uma ex-namorada top model,
dezenas de garotinhas apaixonadas. Para onde vai o amor? Porque
quando deitamos no chão da sua sala e você me perguntou: “quanto
tempo você demora pra dizer que ama?”. Porque quando a gente
cantou: “you ask me will my love grow? ” com as janelas do carro
bem abertas. Porque quando você me mandou aquele e-mail dizendo que
dormiu “pela primeira vez bem, em anos” quando me conheceu.
Porque eu tinha uma escova de dentes aí e você tinha uma escova de
dentes aqui. Para onde vai o amor? O que você fez com o seu? Deu
descarga? O que eu faço com o meu? Daí eu te ligo, escondida no
jardim da produtora em que estou trabalhando. Choro horrores. E te
peço desculpas. “Sei que faz só um mês que estamos juntos, mas…”
Por que você ficou frio e sumiu e esqueceu e secou e matou e deletou
e resolveu e foi? E você diz que está trabalhando e eu me sinto
idiota. Me sinto esfolada viva pelo mundo. Me sinto enganada por
anjos. Me sinto inteira uma enganação. Porque a gente estava, sim,
se amando, mas você correu para levantar antes a bandeira do “se
fodeu, trouxa, o amor não existe”. Justo você que eu escolhi para
fugir comigo das feiuras do planeta. Porque você me emprestava a mão
vendo TV e queria fazer camarões fritos para mim e escondia as meias
suadas quando eu chegava antes do que você esperava. E você me
perguntava o tempo todo se eu percebia como era legal a gente. E
então, só para fazer parte da merda universal de toda a bosta da
vida, você se bandeou para o lado do impossível e se foi e me
deixou como louca, escondida no jardim da produtora, chorando, te
perguntando para onde foi o amor. E você riu e disse: “mas eu só
estou fazendo minhas coisas”. E eu me senti idiota e louca e chata,
e isso foi muito cruel ainda que seja tão normal. Normal não me
serve não encaixa não acalma. E eu achei que nós podíamos ter uma
bolha nossa para nos proteger do lugar-comum do mundo mediano adulto
das pessoas que riem e fazem suas coisas. E tudo ficou feio, até
você, que é lindo, ficou feio. E eu quis fazer cortes em mim. E
todo mundo me olhando, rindo, fazendo suas coisas. E daqui a pouco eu
rindo e fazendo minhas coisas. E no fundo, abafado, dolorido,
retraído, medicado, maduro, podre: onde está o amor? Onde ele vai
parar? Onde ele deixou de nascer? Onde ele morreu sem ser? Porque eu
sigo fazendo de conta que é isso. As pessoas seguem fazendo de conta
que é isso. E por dentro, mais em alguns, quase nada em outros,
ainda grita a pergunta. O mundo inteiro está embaixo agora do seu
lindo e refinado e chique e rico prédio empresarial de milionários.
Gritando nas janelas, batendo nas portas, te tirando da sua reunião:
o que você fez com o amor? Esse dinheiro todo, essa responsabilidade
toda, essas pessoas todas que você quer que te achem um homem. E o
amor, o que você fez com ele? Enfiou no cu? Botou na fragmentadora
de papel? Reaproveitou a folha para escrever atrás? Reciclou?
Remarcou para daqui a dois anos? Cancelou? Reagendou o amor? Demitiu
o amor? É o amor que vai te fazer ser isso tudo, e não isso tudo
que você usa para dar essas desculpas para o amor. Porque quando eu
sentei no cantinho da cama e você leu o livro de poemas da sua
infância. Porque quando você ficou nervoso porque queria me dizer
que naquele minuto não estava me amando porque você acha que amor é
isso além do que você pode. Amor é só o que você já estava
podendo. O que você fez com esse pouco que virou nada? Com o muito
que poderia virar? Eu aleijada, engessada, roxa, estropiada,
quebrada, estou na porta, te esperando, por favor, me ensina o que
fazer, vou fazer o mesmo com o meu. Vou mandar junto com o seu. Nosso
amor para o inferno, longe, explodido, nada. E a gente almoçando em
paz, falando sobre a temperatura do dia e as pessoas do mês e o
filme da semana. Bela merda, isso tudo, bela merda, você, bela
merda, eu, bela merda, todos os sobreviventes que riem e fazem suas
coisas e almoçam e falam de filmes. E por dentro o buraco gigante
preenchido por antidepressivos, ansiolíticos, cervejas, maconha,
viagens e mais reuniões. Para onde foi o amor? De pé seguimos para
nunca saber, para nunca responder, para nunca entender. Você
dormindo com seus cachinhos virados para o meu nariz, você fazendo a
piada dos ombrinhos mais altos e mais baixos para tirar sarro dos
homens artistas e burocráticos, você por um mês e tanto amor. E
agora nada e você nada e tudo nada. O amor no planeta das canetas
Bic que somem. O amor mais um como se pudesse ser mais um. O amor da
vida de um mês. Você com medo de ser mais um e você único e tanto
amor e tão pouco tempo. O que você fez com ele para eu nunca fazer
igual? Eu prefiro ser quem te espera na porta para entender. Eu
prefiro ser quem te espera na outra linha para entender. Eu prefiro
ser a louca do jardim enquanto o mundo ri e faz suas coisas. A ser
quem se tranca nessas salas infinitas suas para nunca entender ou
para fingir que não sente ou para não poder sentir ou para ser sem
tempo de sentir ou para ser esquecido e finalmente para não ser.
Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu
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