segunda-feira, 29 de maio de 2023

Paz

Ilustração: Leya Mira Brander


Ele estava no quintal — a fazer o que fazem os meninos enquanto, lentamente, transformam-se em homens — quando ouviu alguém bater palmas e chamar ao portão. A mãe recolhia roupas do varal e lhe fez um gesto com a cabeça, como se dissesse, Vai ver quem é, e ele, obediente, foi atender correndo. Não precisava correr, mas é que só sabia ser daquele jeito; seus dias eram todos um ir apressado às coisas, para descobrir logo o mundo que continham.
Diante do portão, viu um homem, à espera, o sol a contorná-lo como uma moldura. E, antes que pudesse dizer algo, o homem perguntou, Seu pai está em casa?, ao que ele respondeu, Não, o pai estava trabalhando. E a sua mãe?, continuou o homem. Estava cuidando das roupas, o menino disse, Mas, se o senhor quiser, eu posso chamar ela... O homem disse, Não precisa, tirou do bolso um envelope branco, Entregue a ela, por favor, e se foi.
O menino voltou ao quintal, deu o envelope à mãe, que deixou as roupas de lado e o abriu. Os lábios tremeram, uma sombra atravessou seus olhos. O que foi, mãe?, ele perguntou. Nada, ela respondeu e voltou à sua tarefa; mas ele sabia que agora, ali, havia uma dor. O dia não era mais o mesmo dia. O mundo, de repente, de outro jeito. A mãe recolheu do varal uma calça do pai, uma camisa, outra calça — era o simples ato de pressionar o prendedor e puxar a roupa como noutras tardes, mas dessa vez ele podia perceber uma tensão nos dedos dela. Aprendera a captar essas mudanças, só não sabia como agir depois que ocorriam.
Então, sem poder alterar a ordem das coisas, ele e a mãe ficaram no quintal, cada um, ainda que próximo ao outro, a zelar pela sua existência — e sendo ele um menino, só lhe restava voltar a seu passatempo, mesmo sentindo que tudo, agora, era mais forte: o sol acima de sua cabeça; o silêncio, aéreo, ao redor.
A mãe levou as roupas para dentro de casa. Ele permaneceu no quintal — e nos ladrilhos de um espaço imaginário —, a se esquecer uns minutos dela, num leve alheamento debaixo das nuvens. Mas logo sentiu sede e correu à cozinha.
Lá, a realidade o esperava. A mãe, sentada num banquinho, cabeça entre as mãos, chorava. Ao vê-lo, secou os olhos às pressas e disfarçou, Acho que estou ficando gripada. Levantou-se e, indo para a sala, disse, Não fica muito no sol, está quente demais… Ele abriu a torneira do filtro e observou o jato d’água encher o copo. Bebeu devagar, dessa vez, como a vida. Não se sentia água, capaz de se amoldar às coisas. O mundo em ação, o tempo todo. E ele imóvel, sofrendo pela mãe.
O que estava acontecendo? Não sabia. Paralisara tudo em sua mente. Só para pensar nela. A verdade dentro do envelope branco. Queria ajudá-la. E foi atrás dela, sem nada, sem uma solução, temendo agredi-la com a sua presença. No sofá, braços encolhidos, ela mirava o céu — azul e indiferente — além da janela. O menino sentou-se ao seu lado, deitou a cabeça em seu colo. Era daquilo, talvez, que ela precisava. Um afago. Mas ela era a mãe e, acostumada a se dar, começou a acariciar os cabelos do filho. Ele fechou os olhos. Pensou em lhe contar algo, para distraí-la. Mas qualquer palavra diria menos do que ele sentia. Pôs-se, então, a monitorar a respiração dela, o sobe e desce de seu ventre. Mãe. Abriu os olhos: ela sorria.
Aquele sorriso era uma traição. No fundo, a mãe não queria sorrir; escura, fazia-se água clara só para acalmá-lo. Do seu jeito enevoado de ver, o menino entendia o que ela dizia com os dedos, mais para si própria do que para ele, Não se preocupe, tudo vai se resolver, e, já que era assim, perdoou-a, abrindo também um sorriso — embora contido.
Permaneceram ali algum tempo, somente os dois, descuidados do destino, à espera de que um fato, entre tantos, se desprendesse do novelo das possibilidades e os movesse. A mãe perguntou, Está tudo bem, querido?, como se fosse ele quem estivesse angustiado; Está, respondeu com a cabeça.
Aquele momento de calmaria se quebrou logo, como uma onda, a mãe erguendo-o suavemente disse, Vou fechar as janelas, e se levantou, deixando-o no sofá, as pernas esticadas, ninguém aguenta os pernilongos depois… Com as pálpebras coladas, ele seguia os sons dela pela casa: os passos nos quartos, o estalido das travas nas janelas, as argolas das cortinas correndo nos trilhos. Depois, o silêncio espesso. Por um instante, o menino a perdeu, como se, de repente, a mãe tivesse desaparecido. Mas um suspiro quase inaudível veio do corredor — e ele a recuperou.
A tarde se esvaía. Até mesmo dentro de si, ele percebia a iminência do escuro, a noite que chegava, lenta e pontual. Continuou de olhos fechados, com o seu conhecimento. Os ouvidos em alerta. O chiado do chuveiro, a água escorrendo rumo ao ralo. Sentia uma sonolência prazerosa — e a ela se entregou, plenamente, como se quisesse, assim, secar as suas suspeitas.
Quando acordou, a mãe estava na cozinha. Nem precisou lembrá-lo da hora do banho. Ele foi por si. Lavou-se demoradamente. Voltou à sala, recendendo a sabonete, os cabelos úmidos, o pijama de verão. Ligou a tevê e ficou a zapear, até sintonizar na A Pantera Cor-de-Rosa. Obrigou-se a prestar atenção, poupando-se de pensar nas coisas pesadas; a vida, ali, àquela hora, era um rascunho à espera de algo maior, como se houvesse um tempo por vir em que ela pudesse, face a face, lhe dizer, Agora, é pra valer! Mas a penumbra crescia na sala e ele viu, sobre a tevê, o envelope branco. Reentristeceu.
Foi à cozinha ver o que a mãe fazia. Colocava as panelas sobre o fogão para esquentar a comida quando o pai chegasse. O menino foi à porta dos fundos espiar o mundo dos outros, para além do muro.
E, como se iniciando uma conversa, a vida retornasse ao seu normal, a mãe perguntou, Lavou bem os cabelos?, e ele, Lavei, e, ela, Lavou, mas não penteou, e sorriu, O que você está vendo na tevê?; A Pantera Cor-de-Rosa; Está no intervalo?; Está; Você gosta da Pantera, não é?; Gosto. A mãe, sentindo-o distante, continuou: O que foi, filho? está com fome?; Um pouco; Seu pai logo chega!, e mal pronunciou essa frase, eis que ouviram o barulho do portão e, em seguida, o pai entrou em casa.
O menino foi ao encontro do pai para confirmar, com todos os seus sentidos, se era ele mesmo. Se por um lado o tranquilizou receber um abraço, Oi, filho, tudo bem?, por outro, aumentou a sua aflição — o pai foi à cozinha falar com a mãe, não ia demorar para o assunto vir à tona. Era melhor que os fatos se mostrassem logo, na sua inteireza. O menino não podia ser feliz enquanto nele continuasse, tão forte, a desconfiança. Ele precisava da verdade.
Sentou-se no sofá, diante da tevê. O pai e a mãe trocaram umas palavras previsíveis. Ele não ligava para a Pantera Cor-de-Rosa, os ouvidos colados na conversa dos dois, em busca de algum sentido novo, como se houvesse — agarrada às palavras — uma chave com a qual pudesse abrir a sua percepção e compreender tudo, sem que precisassem mentir.
A mãe sussurrou algo e o silêncio ecoou. O pai voltou à sala e apanhou o envelope branco sobre a tevê. O menino se moveu no sofá, fingindo interesse pelo desenho animado. A conversa recomeçou na cozinha. As vozes se alternaram, mais altas. Ele não conseguiu decifrar nada do que diziam, pareciam espadas rilhando uma na outra, ora a da mãe, ora a do pai. Depois, escutou umas palavras novas, “prestação”, “financiamento”, “hipoteca”, em meio a outras conhecidas, mas ditas num tom que ele nunca ouvira, carregadas de maior poder. O volume das vozes subiu mais. E, de repente, já não se revezavam, sobrepunham-se em luta franca, essa tentando calar aquela, ambas se encorpando, rumo a gritos.
O menino saltou do sofá, abriu a porta da casa, foi lá fora. A Lua crescente. As luzes acesas da cidade. Um carro passou ao longe. E ele ficou ali por um tempo: fixo e decorativo, só sentindo a sua vida, incapaz de mudar a si e o seu redor.
Voltou à sala e, daí em diante, o que se lembrava eram apenas cenas em sfumato. O pai e mãe à mesa do jantar: ele, cabeça baixa, movendo a comida no prato de lá para cá, a postura de um derrotado; ela comendo sem fome, igualmente sem vitória nas mãos. Depois, o pai fazia contas na calculadora, a mãe lavava a louça na pia.
O menino capturava a vida em hora instável. Foi dormir. No quarto quente, só sombras. Sob a porta, podia ver a fita de luz que vinha da sala. O sono, sempre tão fácil, não chegava. Rolou na cama, de um lado a outro, por muito, muito tempo. Até que uma névoa negra, pesada, cobriu aquele branco que não saía de seu pensamento.

João Anzanello Carrascoza, in Aquela água toda

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