Um
náufrago é resgatado de uma ilha deserta. Não consegue dizer
quanto tempo passou na ilha. Perdeu a noção do tempo. Pelo seu
aspecto ao ser encontrado — a barba quase no umbigo, as roupas
reduzidas a fiapos, a pele curtida pelo sol e o sal —, foram muitos
anos. Mas quantos? Ele não se lembra do naufrágio. Não se lembra
do nome do navio, do tipo do navio, do que fazia a bordo... Não se
lembra nem de onde é.
— Que
língua eu estou falando?
— Inglês.
Mas com sotaque.
— Sotaque
de onde?
— É
difícil dizer...
— Estranho.
Não me ocorre nenhuma outra língua além do inglês, embora eu
sinta que não é a minha língua materna. Talvez seja por causa de
Pamela...
— Pamela?
— A
mulher que eu fiz, de areia.
— Você
fez uma mulher de areia?
— Você
não sabe o que é a solidão numa ilha deserta.
Ele
precisava de companhia humana. No princípio, só precisava de sexo.
Fizera um buraco na areia. Mas, com o tempo, sentira que precisava de
mais do que apenas um buraco. Construiu um corpo de mulher em torno
do buraco. Seios, grandes seios. Quadris, uma cintura delgada, coxas
longas. Sempre gostara de coxas longas. Mas logo sentira que ainda
faltava algo. E fizera uma cabeça para sua mulher de areia. Um
rosto, com feições, nariz, boca. Um rosto bonito, cuidadosamente
esculpido, e que ele retocava constantemente, consertando os estragos
feitos pelos caranguejos e o vento. O rosto de uma mulher satisfeita.
O rosto de uma mulher que o amava, que mal podia esperar pelas noites
de paixão sob as estrelas, com ele. Mas...
— Mas
o quê?
— O
corpo desmentia o rosto. O corpo era estático e sem vida. Não se
mexia, não acompanhava o meu ardor, permanecia ausente e frio. O
corpo negava o brilho faiscante das conchas azuis que eram os olhos
de Pamela.
— Por
que “Pamela”?
— Porque
decidi que, fria daquela jeito, só podia ser inglesa. Eu tinha feito
uma inglesa! Deve ser por isso que conservei o meu inglês. Era a
língua com a qual eu fazia declarações de amor a Pamela e tentava
despertar no seu corpo a calidez que o rosto prometia. Ela não
reagia. Ela não me respondia. Ficava muda e distante. Também não
respondeu quando eu comecei a gritar com ela, e a xingá-la, e
acusá-la.
— Acusá-la
de quê?
— De
me trair. Pamela estava me enganando.
— A
mulher de areia estava enganando você?
— Estava!
— Com
quem?
— Não
tenho a menor ideia. Eu só não tinha dúvida de que, com o outro,
ou com os outros, ela se mexia. Uma loucura, eu sei. Mas eu tinha
pedido aquilo. Eu tinha criado o meu próprio tormento. Não se tem
companhia humana impunemente. Onde há um outro, há confusão, há
conflito, há desgosto. E há traição.
— O
que você fez?
— Um
dia, destruí a Pamela a pontapés. Só deixei o buraco no chão. Mas
no dia seguinte a reconstruí, os grandes seios, as longas coxas,
pedindo perdão, jurando que aquilo nunca mais aconteceria. E no dia
seguinte a destruí a pontapés outra vez.
— Grego.
— Hein?
— O
seu sotaque. Pode ser grego.
— Hmmm.
Grego. É possível. Me sinto muito antigo.
— Qual
é a última lembrança que você tem do mundo, antes de naufragar?
— Deixa
ver... Rita Pavone. Não tinha uma Rita Pavone?
Decidiram
não contar nada ao náufrago sobre o 11/9 e a Rita Pavone até ele
estar completamente recuperado. E o resgataram, apesar da sua
insistência em levar o buraco junto.
Luís Fernando Veríssimo, in Amor Veríssimo
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