Acordei
estendido de costas no jardim. Tem chovido, e minhas roupas estão
úmidas. Tem uma árvore neste espaço cimentado, suas raízes
rompendo o calçamento e cutucando as minhas costas. Percebo que
seguro algumas flores no punho. Alguém está em pé acima de mim,
bloqueando o sol.
– O
que está fazendo aqui, geezer? – O marroquino olha para mim
com um sorriso largo no rosto. Fala em árabe. – Dormiu aqui no
jardim, geezer? – Estende a mão para mim, absurdamente
forte para um homem tão velho, e firme nos pés, enquanto me puxa.
– Giza?
– pergunto, meio atordoado.
– Geeeeezer
– ele diz e dá uma risadinha – O homem da loja diz
geeeeezer. Quer dizer velho.
Sigo-o
para dentro, para o calor. Ele me conta que Afra anda me procurando.
– Ela tem chorado – ele diz, o que acho difícil de acreditar, e
quando a vejo na cozinha, ela já está vestida e sentada rígida à
mesa, exatamente como quando Lucy Fisher estava aqui. Não me parece
que ela tenha andado chorando, e não a tenho visto ou escutado
chorar desde Alepo. Segura a bolinha de gude de Mohammed, girando-a
nos dedos. Já tentei tirá-la dela, mas ela não deixa.
– Então
você consegue se vestir, é? – digo. Mas imediatamente me
arrependo das palavras, quando vejo seu rosto se abater.
– Aonde
você foi? – ela pergunta. – Fiquei acordada a maior parte da
noite, sem saber onde você estava.
– Adormeci
lá embaixo.
– Hazim
me contou que você estava dormindo no jardim!
Meu
corpo se enrijece.
– Ele
é gentil – ela diz. – Ele disse que ia te procurar e me disse
para não me preocupar.
Decido
dar uma caminhada. É minha primeira vez fora. Todo este lugar é
estranho, as lojas em mau estado e orgulhosas: Go Go Pizza, Chilli
Tuk-Tuk, Polskie Smaki, Pavel India, Moshimo. No final da rua tem uma
loja de conveniência onde alguém está tocando música árabe muito
alto. Dirijo-me para o mar. Nesta praia não tem areia, só seixos e
cascalhos, mas ao longo do passeio, junto à orla, há um enorme
tanque de areia para as crianças brincarem. Um menino de short
vermelho está construindo um castelo de areia. Não faz calor, mas
eles pensam que sim, então a mãe dele vestiu-o com short e o menino
está recolhendo areia e colocando-a com cuidado num balde azul, até
enchê-lo. Ele o nivela com precisão, usando o cabo da sua pá.
Crianças
correm com sorvete e pirulitos do tamanho de suas cabeças. O menino
do castelo de areia construiu uma cidade completa usando pedaços de
plástico, tampas de garrafa, embalagens de balas, para acrescentar
cor a suas construções. Fez uma bandeira com uma meia perdida, e um
palito de algodão-doce. Enfeita o topo do castelo, no meio, com uma
xícara de chá.
O
menino levanta-se e se afasta para admirar sua criação. É
impressionante; ele até usou a xícara de chá para fazer casas ao
redor do castelo, e uma garrafa d’água parece um edifício de
vidro. Ele deve perceber que estou observando, porque se vira e olha
para mim, parando por um momento e segurando o meu olhar. Tem aquele
olhar inocente e preocupado, como as crianças antes da guerra. Por
um instante acho que ele vai me dizer alguma coisa, mas uma menina
chama-o para brincar. Ela o atrai com uma bola. Ele hesita, dando uma
última olhada para sua maravilhosa criação, olhando mais uma vez
para mim, antes de sair correndo, abandonando-a.
Sento-me
por um momento no passeio, junto ao tanque de areia, e observo o sol
movendo-se pelo céu. À tarde o local fica mais sossegado,
formaram-se nuvens, as crianças foram embora. Tiro a documentação
de pedido de asilo da minha mochila.
Para
ficar no Reino Unido, você precisa estar impossibilitado de viver a
salvo em qualquer parte do seu próprio país, por temer perseguição
ali.
O
céu abre-se e há um clarão de relâmpago. Gotas de chuva grossas
caem no papel em minha mão.
Reino
Unido.
Qualquer
parte.
Perseguição.
A
chuva aperta. Coloco os documentos na mochila e começo a subir a
colina de volta ao B&B.
Afra
está sentada na sala de visitas, junto às portas duplas; há alguns
outros moradores circulando por ali, e a TV a toda. O marroquino
ergue as sobrancelhas. – Como está você, geezer? –
Agora, ele diz a frase toda em inglês, com os olhos escuros
brilhando.
– Dá
para o gasto, geezer – respondo, e forço um sorriso. Isto o
satisfaz. Ele ri com o peito e dá um tapa no próprio joelho.
Sento-me
de novo à mesa do computador e olho meu reflexo na tela. Toco no
teclado, mas não sinto vontade de dar uma olhada nos emails. Meus
olhos ficam indo para as portas de vidro. Sempre que venta e a luz
entra, espero ver a forma de Mohammed no jardim.
Saio
para o pátio e procuro a abelha; acabo encontrando-a rastejando
sobre alguns gravetos e pétalas caídas debaixo da árvore. Quando
estendo a mão, ela sobe no meu dedo e caminha até a palma, onde
recolhe as patas e se aninha, então a levo para dentro comigo.
A
proprietária traz chá numa bandeja para todos nós, e alguns doces
quenianos, amarelos de açafrão. Ela fala um inglês perfeito, pelo
menos é o que me parece. É uma mulher miúda, muito pequena, como
se fosse destinada a ser uma boneca. Usa calçados com enormes
plataformas de madeira em suas pernas finas, e ao andar pesadamente
pela sala, servindo os doces e o chá, lembra-me um filhote de
elefante.
O
marroquino contou-me que ela é contadora, trabalha meio período em
um escritório ao sul de Londres, e no resto do tempo administra este
hostel. O conselho paga para que ela faça isto e nos mantenha aqui.
Ela esfrega as paredes e o chão, como se tentasse limpar a sujeira
de nossas viagens. Mas existe algo mais em relação a ela. Percebo
que sua história não é simples. No canto da sala tem um armário
de mogno. É laqueado com um brilho parecendo água, e está cheio de
copos para álcool. Todos os dias, ela lustra copos imaculados. Fica
ali com um pano que parece um retalho de uma camisa listrada
masculina; notei que tem até um botão nele. No entanto, não
consegue se livrar do bolor verde das paredes, ou da gordura da
cozinha que é grossa como a minha pele, mas vejo que sente orgulho
em cuidar de nós. Lembra-se de todos os nossos nomes, o que é um
grande feito, levando-se em conta quantos de nós vêm e vão. Ela
passa um tempo conversando com a mulher do Afeganistão, perguntando
onde ela conseguiu seu hijab, tecido à mão com fio de ouro.
– A
abelha ainda está viva – diz o marroquino.
Olho
para ele e sorrio. – É uma lutadora – digo – e ontem à noite
choveu. Mas ela não sobreviverá lá fora, não por muito tempo, se
não consegue voar.
Levo
a abelha de volta para fora, coloco-a em uma flor, e vou para a cama
com Afra. Ajudo-a a se despir, e deito-me para dormir ao seu lado.
– Onde
está Mustafá? – ela pergunta. – Tem notícia dele?
– Faz
um bom tempo que não – respondo.
– Deu
uma olhada nos emails? Vai ver que ele está tentando entrar em
contato. Ele sabe que estamos aqui?
Agora
se ouve um som estranho, um silvo profundo no céu.
– Você
ouviu isso? – pergunto.
– É
a chuva na janela – ela diz.
– Não
isso. O silvo. Tem um silvo. Não para. Como se tivesse chegando uma
tempestade de areia.
– Aqui
não tem tempestade de areia – ela diz. – Só chuva ou não
chuva.
– Então,
você não está ouvindo?
Agora,
ela parece preocupada, e pousa a cabeça na palma da mão. Está
prestes a dizer alguma coisa, e eu rio, impedindo-a. – Hoje estava
frio, mas ensolarado. Agora está chovendo! Este clima inglês parece
maluco! Que tal a gente dar uma saída amanhã? Poderíamos caminhar
ao longo do quebra-mar.
– Não
– ela diz. – Não posso. Não quero sair neste mundo.
– Mas
agora você está livre, você pode dar uma volta. Não precisa mais
ter medo.
Ela
não diz nada em resposta.
– Um
menino fez um castelo de areia incrível, uma cidade inteira, com
casas e um edifício!
– Que
interessante – ela diz.
Houve
um tempo em que ela queria saber, em que me perguntava o que eu tinha
visto. Agora não quer saber de nada.
– Temos
que entrar em contato com Mustafá – ela diz.
A
escuridão chega até mim, e o cheiro da minha mulher chega até mim,
aquela mistura de perfume de rosa e suor. Ela passa o perfume antes
de ir para a cama, tira o vidro do bolso e coloca-o nos pulsos e no
pescoço. Os outros moradores ainda conversam na sala de visitas lá
embaixo, uma estranha combinação de línguas. Alguém ri, e há
passos na escada. O assoalho range e eu sei que é o marroquino;
acabei reconhecendo o som do seu andar. Ele tem uma maneira peculiar
de fazer uma pausa. No começo, parece aleatória, mas tem um ritmo
específico na coisa. Ele passa pelo nosso quarto, e nesse momento
escuto uma bolinha de gude rolando pelas tábuas de madeira. Conheço
o som. Levanto-me de um pulo e acendo a luz. Descubro a bolinha de
gude de Mohammed movendo-se para o tapete, pego-a e olho o vidro
debaixo da luz, o veio vermelho correndo pelo meio.
– O
que foi? – Afra pergunta.
– Foi
só a bolinha de gude. Não é nada. Durma.
– Coloque-a
na mesinha de cabeceira ao meu lado – ela diz.
Faço
o que ela diz, e volto para a cama, desta vez com as costas voltadas
para ela. Afra coloca a mão nas minhas costas, pressiona a palma
contra a minha coluna, como se estivesse sentindo a minha respiração.
Meus olhos permanecem abertos no escuro, porque estou com medo da
noite que caiu e estávamos em Bab al-Faraj, na cidade velha.
Esperávamos um Toyota, debaixo de uma árvore de narenj. O
cadáver de um homem esperava conosco. O Toyota seria uma picape, sem
faróis, com barras de metal nas laterais, o tipo que normalmente
transporta gado, como vacas e cabras. O defunto estava deitado de
costas, com um braço dobrado sobre a cabeça. Provavelmente estava
no meio dos seus vinte anos, usava um pulôver preto e jeans preto.
Não contei a Afra que ele estava ali.
Foi
ali que o atravessador nos disse para esperar.
O
rosto do defunto subitamente iluminou-se. Um brilho de luz branca. Ia
e vinha. Ele tinha um celular na mão, a mão que estava dobrada
sobre sua cabeça. Seus olhos eram castanhos, sobrancelhas espessas.
Uma antiga cicatriz na face esquerda. O brilho de uma corrente de
prata, um colar com o nome escrito: Abbas.
– Aqui
é lindo – ela disse. – Sei exatamente onde estamos.
Houve
um tempo em que havia videiras do outro lado da rua, e no final uma
escada que dava no pátio gradeado de uma escola.
– Estamos
ao lado daquele relógio – ela disse –, e tem aquele café
dobrando a esquina com o sorvete de água de rosas, onde levamos Sami
naquela vez, você se lembra?
[…]
Christy Lefteri, in O homem que escutava as abelhas
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