sábado, 6 de maio de 2023

O homem que escutava as abelhas | 3


Acordei estendido de costas no jardim. Tem chovido, e minhas roupas estão úmidas. Tem uma árvore neste espaço cimentado, suas raízes rompendo o calçamento e cutucando as minhas costas. Percebo que seguro algumas flores no punho. Alguém está em pé acima de mim, bloqueando o sol.
O que está fazendo aqui, geezer? – O marroquino olha para mim com um sorriso largo no rosto. Fala em árabe. – Dormiu aqui no jardim, geezer? – Estende a mão para mim, absurdamente forte para um homem tão velho, e firme nos pés, enquanto me puxa.
Giza? – pergunto, meio atordoado.
Geeeeezer – ele diz e dá uma risadinha – O homem da loja diz geeeeezer. Quer dizer velho.
Sigo-o para dentro, para o calor. Ele me conta que Afra anda me procurando. – Ela tem chorado – ele diz, o que acho difícil de acreditar, e quando a vejo na cozinha, ela já está vestida e sentada rígida à mesa, exatamente como quando Lucy Fisher estava aqui. Não me parece que ela tenha andado chorando, e não a tenho visto ou escutado chorar desde Alepo. Segura a bolinha de gude de Mohammed, girando-a nos dedos. Já tentei tirá-la dela, mas ela não deixa.
Então você consegue se vestir, é? – digo. Mas imediatamente me arrependo das palavras, quando vejo seu rosto se abater.
Aonde você foi? – ela pergunta. – Fiquei acordada a maior parte da noite, sem saber onde você estava.
Adormeci lá embaixo.
Hazim me contou que você estava dormindo no jardim!
Meu corpo se enrijece.
Ele é gentil – ela diz. – Ele disse que ia te procurar e me disse para não me preocupar.

Decido dar uma caminhada. É minha primeira vez fora. Todo este lugar é estranho, as lojas em mau estado e orgulhosas: Go Go Pizza, Chilli Tuk-Tuk, Polskie Smaki, Pavel India, Moshimo. No final da rua tem uma loja de conveniência onde alguém está tocando música árabe muito alto. Dirijo-me para o mar. Nesta praia não tem areia, só seixos e cascalhos, mas ao longo do passeio, junto à orla, há um enorme tanque de areia para as crianças brincarem. Um menino de short vermelho está construindo um castelo de areia. Não faz calor, mas eles pensam que sim, então a mãe dele vestiu-o com short e o menino está recolhendo areia e colocando-a com cuidado num balde azul, até enchê-lo. Ele o nivela com precisão, usando o cabo da sua pá.
Crianças correm com sorvete e pirulitos do tamanho de suas cabeças. O menino do castelo de areia construiu uma cidade completa usando pedaços de plástico, tampas de garrafa, embalagens de balas, para acrescentar cor a suas construções. Fez uma bandeira com uma meia perdida, e um palito de algodão-doce. Enfeita o topo do castelo, no meio, com uma xícara de chá.
O menino levanta-se e se afasta para admirar sua criação. É impressionante; ele até usou a xícara de chá para fazer casas ao redor do castelo, e uma garrafa d’água parece um edifício de vidro. Ele deve perceber que estou observando, porque se vira e olha para mim, parando por um momento e segurando o meu olhar. Tem aquele olhar inocente e preocupado, como as crianças antes da guerra. Por um instante acho que ele vai me dizer alguma coisa, mas uma menina chama-o para brincar. Ela o atrai com uma bola. Ele hesita, dando uma última olhada para sua maravilhosa criação, olhando mais uma vez para mim, antes de sair correndo, abandonando-a.
Sento-me por um momento no passeio, junto ao tanque de areia, e observo o sol movendo-se pelo céu. À tarde o local fica mais sossegado, formaram-se nuvens, as crianças foram embora. Tiro a documentação de pedido de asilo da minha mochila.

Para ficar no Reino Unido, você precisa estar impossibilitado de viver a salvo em qualquer parte do seu próprio país, por temer perseguição ali.

O céu abre-se e há um clarão de relâmpago. Gotas de chuva grossas caem no papel em minha mão.
Reino Unido.
Qualquer parte.
Perseguição.
A chuva aperta. Coloco os documentos na mochila e começo a subir a colina de volta ao B&B.
Afra está sentada na sala de visitas, junto às portas duplas; há alguns outros moradores circulando por ali, e a TV a toda. O marroquino ergue as sobrancelhas. – Como está você, geezer? – Agora, ele diz a frase toda em inglês, com os olhos escuros brilhando.
Dá para o gasto, geezer – respondo, e forço um sorriso. Isto o satisfaz. Ele ri com o peito e dá um tapa no próprio joelho.
Sento-me de novo à mesa do computador e olho meu reflexo na tela. Toco no teclado, mas não sinto vontade de dar uma olhada nos emails. Meus olhos ficam indo para as portas de vidro. Sempre que venta e a luz entra, espero ver a forma de Mohammed no jardim.
Saio para o pátio e procuro a abelha; acabo encontrando-a rastejando sobre alguns gravetos e pétalas caídas debaixo da árvore. Quando estendo a mão, ela sobe no meu dedo e caminha até a palma, onde recolhe as patas e se aninha, então a levo para dentro comigo.
A proprietária traz chá numa bandeja para todos nós, e alguns doces quenianos, amarelos de açafrão. Ela fala um inglês perfeito, pelo menos é o que me parece. É uma mulher miúda, muito pequena, como se fosse destinada a ser uma boneca. Usa calçados com enormes plataformas de madeira em suas pernas finas, e ao andar pesadamente pela sala, servindo os doces e o chá, lembra-me um filhote de elefante.
O marroquino contou-me que ela é contadora, trabalha meio período em um escritório ao sul de Londres, e no resto do tempo administra este hostel. O conselho paga para que ela faça isto e nos mantenha aqui. Ela esfrega as paredes e o chão, como se tentasse limpar a sujeira de nossas viagens. Mas existe algo mais em relação a ela. Percebo que sua história não é simples. No canto da sala tem um armário de mogno. É laqueado com um brilho parecendo água, e está cheio de copos para álcool. Todos os dias, ela lustra copos imaculados. Fica ali com um pano que parece um retalho de uma camisa listrada masculina; notei que tem até um botão nele. No entanto, não consegue se livrar do bolor verde das paredes, ou da gordura da cozinha que é grossa como a minha pele, mas vejo que sente orgulho em cuidar de nós. Lembra-se de todos os nossos nomes, o que é um grande feito, levando-se em conta quantos de nós vêm e vão. Ela passa um tempo conversando com a mulher do Afeganistão, perguntando onde ela conseguiu seu hijab, tecido à mão com fio de ouro.
A abelha ainda está viva – diz o marroquino.
Olho para ele e sorrio. – É uma lutadora – digo – e ontem à noite choveu. Mas ela não sobreviverá lá fora, não por muito tempo, se não consegue voar.
Levo a abelha de volta para fora, coloco-a em uma flor, e vou para a cama com Afra. Ajudo-a a se despir, e deito-me para dormir ao seu lado.
Onde está Mustafá? – ela pergunta. – Tem notícia dele?
Faz um bom tempo que não – respondo.
Deu uma olhada nos emails? Vai ver que ele está tentando entrar em contato. Ele sabe que estamos aqui?
Agora se ouve um som estranho, um silvo profundo no céu.
Você ouviu isso? – pergunto.
É a chuva na janela – ela diz.
Não isso. O silvo. Tem um silvo. Não para. Como se tivesse chegando uma tempestade de areia.
Aqui não tem tempestade de areia – ela diz. – Só chuva ou não chuva.
Então, você não está ouvindo?
Agora, ela parece preocupada, e pousa a cabeça na palma da mão. Está prestes a dizer alguma coisa, e eu rio, impedindo-a. – Hoje estava frio, mas ensolarado. Agora está chovendo! Este clima inglês parece maluco! Que tal a gente dar uma saída amanhã? Poderíamos caminhar ao longo do quebra-mar.
Não – ela diz. – Não posso. Não quero sair neste mundo.
Mas agora você está livre, você pode dar uma volta. Não precisa mais ter medo.
Ela não diz nada em resposta.
Um menino fez um castelo de areia incrível, uma cidade inteira, com casas e um edifício!
Que interessante – ela diz.
Houve um tempo em que ela queria saber, em que me perguntava o que eu tinha visto. Agora não quer saber de nada.
Temos que entrar em contato com Mustafá – ela diz.

A escuridão chega até mim, e o cheiro da minha mulher chega até mim, aquela mistura de perfume de rosa e suor. Ela passa o perfume antes de ir para a cama, tira o vidro do bolso e coloca-o nos pulsos e no pescoço. Os outros moradores ainda conversam na sala de visitas lá embaixo, uma estranha combinação de línguas. Alguém ri, e há passos na escada. O assoalho range e eu sei que é o marroquino; acabei reconhecendo o som do seu andar. Ele tem uma maneira peculiar de fazer uma pausa. No começo, parece aleatória, mas tem um ritmo específico na coisa. Ele passa pelo nosso quarto, e nesse momento escuto uma bolinha de gude rolando pelas tábuas de madeira. Conheço o som. Levanto-me de um pulo e acendo a luz. Descubro a bolinha de gude de Mohammed movendo-se para o tapete, pego-a e olho o vidro debaixo da luz, o veio vermelho correndo pelo meio.
O que foi? – Afra pergunta.
Foi só a bolinha de gude. Não é nada. Durma.
Coloque-a na mesinha de cabeceira ao meu lado – ela diz.
Faço o que ela diz, e volto para a cama, desta vez com as costas voltadas para ela. Afra coloca a mão nas minhas costas, pressiona a palma contra a minha coluna, como se estivesse sentindo a minha respiração. Meus olhos permanecem abertos no escuro, porque estou com medo da noite que caiu e estávamos em Bab al-Faraj, na cidade velha. Esperávamos um Toyota, debaixo de uma árvore de narenj. O cadáver de um homem esperava conosco. O Toyota seria uma picape, sem faróis, com barras de metal nas laterais, o tipo que normalmente transporta gado, como vacas e cabras. O defunto estava deitado de costas, com um braço dobrado sobre a cabeça. Provavelmente estava no meio dos seus vinte anos, usava um pulôver preto e jeans preto. Não contei a Afra que ele estava ali.
Foi ali que o atravessador nos disse para esperar.
O rosto do defunto subitamente iluminou-se. Um brilho de luz branca. Ia e vinha. Ele tinha um celular na mão, a mão que estava dobrada sobre sua cabeça. Seus olhos eram castanhos, sobrancelhas espessas. Uma antiga cicatriz na face esquerda. O brilho de uma corrente de prata, um colar com o nome escrito: Abbas.
Aqui é lindo – ela disse. – Sei exatamente onde estamos.
Houve um tempo em que havia videiras do outro lado da rua, e no final uma escada que dava no pátio gradeado de uma escola.
Estamos ao lado daquele relógio – ela disse –, e tem aquele café dobrando a esquina com o sorvete de água de rosas, onde levamos Sami naquela vez, você se lembra?
[…]

Christy Lefteri, in O homem que escutava as abelhas

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