Através do alto cosmos as ondas musicais calmíssimas. A loucura da tranquilidade. Paisagem? Só ar, talos verdes, o mar estendido, silêncio de domingo de madrugada. Um homem fino de um pé só tem um grande olho transparente no meio da testa. Um ser feminino se aproxima engatinhando, diz com voz que vem de outro tempo, voz grave, esquerda, eufórica: “Quer tomar chá?” É o hábito, o hábito de uma vida anterior. Pega uma espiga delgada de oiro – talvez seja trigo – a põe entre as gengivas sem dentes e se afasta de gatinhas com os olhos bem abertos. Olhos imóveis como o nariz. Ela não tem pescoço. Precisa mover toda a cabeça sem ossos para fitar um objeto. Objeto? Que objeto? Não existem objetos. O homem fino adormeceu sobre o pé, adormeceu o olho sem fechá-lo: dormir trata-se de querer ou de não querer ver. Quando não vê, ele dorme. No olho silente se refletem planície e arco-íris. É olho ou asa de inseto. Acima de um certo vazio é a maravilha. As ondas musicais recomeçam. Alguém examina as unhas. Há um som que de longe faz: psiu, psiu!... Mas o homem-do-pé-só nunca poderia imaginar que o estão chamando. Inicia-se um som de lado que atravessa as ondas musicais sem tremor, e se repete tanto até cavar com a gota d’água a rocha. É um som elevadíssimo e sem frisos. Um lamento alegre? É a nota mais alta e feliz que uma vibração poderia dar. Nenhum homem da Terra poderia ouvi-lo sem enlouquecer e começar a sorrir. Mas o homem-do-pé-só dorme reto. E o ser feminino desdentado e rastejando está estendido na praia e pensa o vazio. Um novo personagem atravessa o deserto e desaparece mancando. Psiu! psiu! Mas ninguém responde. Quem chama? E quem chama quem?
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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