quarta-feira, 31 de maio de 2023

Netinho

Se tivesse mais dois anos, chamá-lo-ia mentiroso. No seu verdor, é apenas um ser a quem a imaginação comanda, e que, com isso, dispõe de todos os filtros da poesia.
O que aconteceu, para ele, não conta. O que não aconteceu, sim, pula a todo instante na conversa e logo se materializa, real dentro do real. Geralmente, se lhe perguntamos alguma coisa, a resposta é um ato criador.
Quem buliu neste açucareiro e sujou a toalha?
Foi Puck.
Mas Puck é um cachorrinho de nada, não sobe à mesa.
Subiu na cadeira.
Você viu Puck subir?
Vi, ué.
E deixou?
Eu disse assim: Puck, não sobe nessa cadeira não.
E que foi que Puck lhe respondeu?
Que tinha vontade de comer um torrãozinho de açúcar.
Mas você é que comeu torrão de açúcar. Está-se vendo pela sua boca lambuzada.
É, eu também comi um, mas foi Puck quem deu.
Horas depois:
Você se lembra? Naquele dia em que Puck me deu um torrão de açúcar…
O tempo ainda não existe em forma fixa. As coisas marcadas para amanhã desenham-se no nevoeiro, ou mergulham no insondável. Prometem-lhe um velocípede.
Onde está?
Espere, vem amanhã.
Por que amanhã nunca é hoje?
E ninguém, de Bergson ao avô, saberia responder-lhe ao certo.
Contudo, uma noção se delineia, da sequência das horas. Conta-nos um fato estranho:
Quando o céu ficou azul-escuro, e um gato pulou no terraço, e depois o céu virou claro outra vez, eu fui espiar devagarzinho, e o gato tinha comido a máquina de escrever…
Ama as coisas pelo prazer abstrato da posse, menos pelas coisas em si, ou pelo seu uso voluptuoso. Há um lápis.
Me dá esse lápis pra mim?
Não posso.
Me empresta?
Não posso, preciso dele.
Ah, me empresta…
Está bem, empresto.
Agora ele é meu?
Seu, não. Emprestado.
Eu queria tanto um lápis pra mim… Me dá, anda.
Está bem, pode ficar com ele.
É meu? Oba!
E joga-o fora, imediatamente.
Não lhe deem brinquedo caro, porque logo o desmonta para brincar com um pedaço qualquer. Dir-se-ia instinto de destruição, comum à espécie. Inclino-me a crer que seja instinto de simplificação e prazer de recriar, em novas bases, a realidade imposta.
Em suma, grande figura, admirável exemplar de todos os garotos da mesma idade em todo o mundo, e só Deus sabe como foi batida esta crônica (se assim podemos chamá-la), enquanto ele montava a cavalo no cronista: upa, upa, cavalinho alazão!

Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira

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