Se
tivesse mais dois anos, chamá-lo-ia mentiroso. No seu verdor, é
apenas um ser a quem a imaginação comanda, e que, com isso, dispõe
de todos os filtros da poesia.
O
que aconteceu, para ele, não conta. O que não aconteceu, sim, pula
a todo instante na conversa e logo se materializa, real dentro do
real. Geralmente, se lhe perguntamos alguma coisa, a resposta é um
ato criador.
— Quem
buliu neste açucareiro e sujou a toalha?
— Foi
Puck.
— Mas
Puck é um cachorrinho de nada, não sobe à mesa.
— Subiu
na cadeira.
— Você
viu Puck subir?
— Vi,
ué.
— E
deixou?
— Eu
disse assim: Puck, não sobe nessa cadeira não.
— E
que foi que Puck lhe respondeu?
— Que
tinha vontade de comer um torrãozinho de açúcar.
— Mas
você é que comeu torrão de açúcar. Está-se vendo pela sua boca
lambuzada.
— É,
eu também comi um, mas foi Puck quem deu.
Horas
depois:
— Você
se lembra? Naquele dia em que Puck me deu um torrão de açúcar…
O
tempo ainda não existe em forma fixa. As coisas marcadas para amanhã
desenham-se no nevoeiro, ou mergulham no insondável. Prometem-lhe um
velocípede.
— Onde
está?
— Espere,
vem amanhã.
— Por
que amanhã nunca é hoje?
E
ninguém, de Bergson ao avô, saberia responder-lhe ao certo.
Contudo,
uma noção se delineia, da sequência das horas. Conta-nos um fato
estranho:
— Quando
o céu ficou azul-escuro, e um gato pulou no terraço, e depois o céu
virou claro outra vez, eu fui espiar devagarzinho, e o gato tinha
comido a máquina de escrever…
Ama
as coisas pelo prazer abstrato da posse, menos pelas coisas em si, ou
pelo seu uso voluptuoso. Há um lápis.
— Me
dá esse lápis pra mim?
— Não
posso.
— Me
empresta?
— Não
posso, preciso dele.
— Ah,
me empresta…
— Está
bem, empresto.
— Agora
ele é meu?
— Seu,
não. Emprestado.
— Eu
queria tanto um lápis pra mim… Me dá, anda.
— Está
bem, pode ficar com ele.
— É
meu? Oba!
E
joga-o fora, imediatamente.
Não
lhe deem brinquedo caro, porque logo o desmonta para brincar com um
pedaço qualquer. Dir-se-ia instinto de destruição, comum à
espécie. Inclino-me a crer que seja instinto de simplificação e
prazer de recriar, em novas bases, a realidade imposta.
Em
suma, grande figura, admirável exemplar de todos os garotos da mesma
idade em todo o mundo, e só Deus sabe como foi batida esta crônica
(se assim podemos chamá-la), enquanto ele montava a cavalo no
cronista: upa, upa, cavalinho alazão!
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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