quarta-feira, 31 de maio de 2023

As primeiras quinze vidas de Harry August | Capítulo 13



Uns setenta anos depois, Phearson estava à mesa, de frente para mim, naquela mansão em Nortúmbria, irritado ao me ouvir dizer:
A complexidade deve ser seu pretexto para não agir. A complexidade dos eventos, a complexidade do tempo... De que adianta você saber isso?
Chovia lá fora, um aguaceiro forte e incessante que chegara dois dias depois de um calor sufocante, o céu abrindo a torneira. Phearson viajara para Londres; voltara com mais perguntas e uma atitude menos dócil.
Você está escondendo coisas! — atacou. — Diz que tudo isso vai acontecer, mas não diz como. Fala de computadores, telefones e do maldito fim da Guerra Fria, mas não diz merda nenhuma de como nada disso funciona. Nós somos os mocinhos, estamos aqui para melhorar as coisas, entendeu? Criar um mundo melhor!
Quando Phearson se enfurecia, uma veia azul como uma cobra contorcida surgia em sua têmpora esquerda, e seu rosto, em vez de vermelho, ficava pálido e acinzentado. Ponderei suas acusações e concluí que boa parte não tinha fundamento. Eu não era historiador; os eventos do futuro haviam se desdobrado como ações no presente, dando pouco tempo para análises ou análises retrospectivas, apresentando-se em matérias de sessenta segundos no noticiário da TV. A capacidade que eu tinha de explicar o funcionamento de um computador era a mesma que tinha de equilibrar um peixe na ponta do nariz.
E, sim, eu estava escondendo coisas — não todas, mas algumas. Eu havia lido sobre o Clube Cronus, e a primeira lição que tirei foi que era um lugar em que se fazia silêncio. Se seus membros fossem como eu, se sabiam o futuro, ao menos no que dizia respeito às suas trajetórias pessoais, então eles tinham o poder de afetá-la diretamente. Ainda assim, escolhiam não fazê-lo. E por quê?
Complexidade — repeti com veemência. — Você e eu somos meros indivíduos. Não podemos controlar os grandes eventos socioeconômicos. Você até pode tentar alterar um evento, mas isso, mesmo que da forma mais insignificante possível, invalidaria todo e qualquer outro evento que eu já tenha descrito. Eu posso lhe contar que os sindicatos vão sofrer durante a Era Thatcher, mas a verdade é que não sou capaz de apontar exatamente quais as forças econômicas por trás disso, nem explicar em poucas palavras por que a sociedade permite a destruição de suas indústrias. Não sou capaz de dizer o que passa pela cabeça das pessoas que dançam durante a queda do Muro de Berlim, ou exatamente quem no Afeganistão vai se levantar um dia e dizer: “Hoje é um bom dia para a jihad.” E do que valem as minhas informações, se agir para mudar um único pedaço vai mudar o todo?
Nomes, lugares! Diga nomes, diga lugares!
Por quê? Você vai assassinar Yasser Arafat? Vai executar crianças por crimes que ainda não cometeram? Vai dar armas ao Talibã antes do tempo?
Isso é uma decisão política, todas essas decisões são políticas...
Você está tomando decisões com base em crimes que ainda não foram cometidos!
Ele jogou os braços num grande gesto de frustração.
A humanidade está evoluindo, Harry! O mundo está mudando! Nos últimos duzentos anos a humanidade mudou de formas mais radicais do que nos dois mil anos anteriores! O ritmo da evolução está acelerando, tanto para a espécie quanto para a civilização. É o nosso trabalho, o trabalho dos bons, dos homens e das mulheres de bem, supervisionar o processo, agir como um guia para evitar mais cagadas e desastres! Você quer outra Segunda Guerra Mundial? Outro Holocausto? Nós podemos mudar as coisas, melhorar as coisas.
Você se considera capaz de supervisionar o desenvolvimento do futuro?
Claro que sim, porra! — rugiu ele. — Porque sou um puta defensor da democracia! Porque sou um puta liberal que acredita na liberdade, porque eu sou um cara bom pra cacete e de bom coração e, porra, porque alguém precisa fazer esse trabalho!
Eu me recostei na cadeira. A chuva caía na diagonal, batia no vidro da janela. Havia flores recém-colhidas na mesa, café frio no meu copo.
Lamento, senhor Phearson — disse, por fim. — Não sei o que quer ouvir de mim.
Ele girou uma cadeira, sentou-se nela, aproximou-a de mim e, baixando o tom de voz de um jeito que parecia querer conspirar, esticando as mãos num gesto que parecia um pedido de desculpas, perguntou:
Por que não ganhamos no Vietnã? O que estamos fazendo de errado?
Eu grunhi e levei as mãos à cabeça.
Vocês não são bem-vindos! Os vietnamitas não querem vocês, os chineses não querem vocês, seu próprio povo não quer lutar no Vietnã! Não dá para ganhar uma guerra que ninguém quer lutar!
E se jogássemos a bomba? Uma bomba, em Hanói, uma limpeza geral?
Não sei, porque isso nunca aconteceu, e nunca aconteceu porque é absurdo! — gritei. — Você não quer conhecimento, quer afirmações, e eu... — Eu me levantei de súbito, e fui o primeiro a me surpreender com o movimento repentino. —... eu não posso lhe dar isso — concluí. — Lamento. Quando concordei em fazer isso, pensei que... que você queria outra coisa. Acho que errei. Eu preciso... preciso pensar.
Ficamos em silêncio.
Em chinês, a asma é descrita como um animal ofegante, com a respiração pesada resultado de uma enfermidade. Phearson permaneceu imóvel como uma estátua, apertando as mãos para se conter de forma civilizada, seu terno bem passado, seu rosto impassível, mas sua respiração era toda de um animal que ofegava dentro de seu peito.
Para que você serve? — perguntou ele, do jeito típico de uma pessoa criada em meio aos valores da boa educação, do autocontrole cuidadoso, mas a respiração que acompanhou a pergunta queria rasgar meu pescoço com os dentes e beber o sangue. — Você acha que isso não importa, doutor August? Você acha que morre e fica por isso mesmo? O mundo reinicia, bum! — Ele deu um tapa na mesa, forte o bastante para fazer as xícaras pularem dos pires. — Nós, os homens insignificantes com suas vidas insignificantes estão mortos e esquecidos, e tudo isso... — ele não precisava se mexer, não precisava fazer mais do que correr os olhos ao redor do quarto — ...tudo não passa de um sonho. Você é Deus, doutor August? Você é o único ser vivo que importa? Acha que, só porque é capaz de se lembrar, a sua dor é mais intensa e importante? Acha que, porque viveu essa dor, sua vida é a única vida que conta? Acha?
Ele não gritou, não levantou a voz, mas a respiração animal se acelerou, enquanto ele contraía os dedos para conter o próprio instinto destrutivo. Eu vi que não tinha nada. Não tinha palavras, ideias, justificativas, réplicas. Ele se levantou de repente, de um jeito brusco, como uma espécie de ruptura, embora eu não soubesse dizer de quê, enquanto a veia de sua têmpora se fazia cada vez mais visível sob a pele.
Está bem. — Ele ofegava as palavras. — Está bem, doutor August. Está bem. Nós dois estamos um pouco cansados, um pouco frustrados... Talvez precisemos de um descanso. Por que não tiramos o resto do dia, e você pensa sobre isso? Tudo bem? Tudo bem — decidiu ele antes de eu responder. — É esse o plano. Ótimo. Vejo você amanhã.
Ao dizer isso, Phearson saiu a passos largos do quarto sem dizer mais uma palavra ou olhar para trás.

Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August

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