É
sina de minha amiga penar pela sorte do próximo, se bem que seja um
penar jubiloso. Explico-me. Todo sofrimento alheio a preocupa, e
acende nela o facho da ação, que a torna feliz. Não distingue
entre gente e bicho, quando tem de agir, mas como há inúmeras
sociedades (com verbas) para o bem dos homens, e uma só, sem
recursos, para o bem dos animais, é nesta última que gosta de
militar. Os problemas aparecem-lhe em cardume, e parece que a
escolhem de preferência a outras criaturas de menor sensibilidade e
iniciativa. Os cães postam-se no seu caminho, e:
— Dona,
me leva — murmuram-lhe os olhos surrados pela vida mas sempre
meigos.
Outro
dia o cão vinha pela rua, mancando, amarrado a um barbante e puxado
por um bêbado pobre, mas tão bêbado como qualquer outro. Com o
aperto do laço, o infeliz punha a alma pela boca. E o bêbado
resmungava ameaças confusas. Minha amiga aproximou-se, com jeito.
— Não
faça assim com o pobrezinho, que ele sufoca.
— Faço
o que eu quero, ele é meu.
— Mas
é proibido maltratar os animais.
— Eu
não vou maltratar. Vou matar com duas navalhadas.
Minha
amiga pulou como Ademar Ferreira da Silva:
— Me
dá esse cachorro.
— Dar,
não dou, mas vendo.
Dez
cruzeiros selaram o negócio, e, livre do barbante, o cachorro
embarcou no carro de minha amiga. Felizmente, anoitecia — e ela
penetrou no apartamento, sem impugnação do porteiro. Que prodígios
não faz para amortecer o latido dos hóspedes, lá dentro! (Uma vez,
ante a reclamação do vizinho, explicou que era disco de jazz.) Já
havia três cães instalados, não cabia mais. Tratou do bicho,
chamou-lhe veterinário, curou-lhe a pata, deu-lhe vitamina e
carinho. Só depois começou a providenciar uma casa de confiança
para ele. Seu método consiste numa conversa mole com a pessoa: tem
cachorro em casa? Por que não tem mais? Fugiu? Morreu de velho? (Se
o cão fugiu, o dono não presta.) Conforme a ficha da pessoa, minha
amiga lhe oferece o animal, ou não, e passa adiante.
Desta
vez o escolhido foi José, contínuo de autarquia (não carece ser
rico, mas bom, paciente, bem-humorado). José tem crianças, espaço
cercado e vocação para dedicar-se. Minha amiga ofereceu-se para
levar o cachorro ao longe subúrbio, José disse que não precisava,
ela insistiu, ele idem. Afinal foram juntos, o carro subiu ladeira,
desceu ladeira, e no alto do morro desvendou-se a triste casa de
José, que não era casa cercada, era um corredor de cabeça de
porco, com cinco crianças, mulher e sogra de José empilhadas.
Minha
amiga compreendeu. José era mais pobre do que o cachorro e sem um
mínimo de dinheiro não se compra ar livre e espaço para brincar.
Seria cruel dizer a José: “Volto com o cachorro”. Felizmente o
animal salvou a situação, tentando morder um dos garotos que lhe
fizera festa. Minha amiga iluminou-se: “Está vendo, José? Ele não
se acostuma. Vou te trazer outro, novinho”. José, desolado,
aquiesceu. Minha amiga saiu voando para a cidade, entrou numa dessas
casas onde se martirizam animais à venda, e resgatou o menor dos
cachorrinhos recém-nascidos, que já penava numa jaula sem água e
alimento, a um sol de fogo. “Para este, qualquer coisa é negócio,
e melhora a vida.” Levou-o rápido, para José, que o recebeu de
alma embandeirada.
Agora,
minha amiga tem dois problemas: arranjar um dono para o cachorro do
bêbado, e dar um jeito nos cinco filhos de José. Mas resolve, não
tenham dúvida.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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