Assim,
lá estava eu, com mais de 65 anos, procurando minha primeira casa.
Lembro-me de que meu pai praticamente hipotecou sua vida inteira para
comprar uma casa. Ele me disse: “Escute, eu vou pagar a vida
inteira por uma casa, e quando eu morrer você ficará com essa casa,
e durante a vida inteira você pagará por uma casa, e quando morrer
deixará duas casas pra seu filho. Com isso são duas casas. Depois
seu filho...”
Todo
esse processo me parecia terrivelmente lento: casa por casa, morte
por morte. Dez gerações, dez casas. Depois, bastaria uma só pessoa
para perder todas elas no jogo ou queimar tudo com um fósforo e sair
correndo pela rua abaixo com os bagos num balde de colher frutas.
Agora
eu procurava uma casa que na verdade não queria, e ia escrever um
argumento que na verdade não queria escrever. Começava a perder o
controle e compreendia isso, mas parecia incapaz de inverter o
processo.
A
primeira corretora em que paramos foi em Santa Mônica. Chamava-se
Imobiliária Século Vinte. Ora, isso é que era ser moderno.
– Posso
ajudá-lo?
– Queremos
comprar uma casa – eu disse.
O
cara jovem apenas virou a cabeça para um lado e continuou desviando
o olhar. Passou-se um minuto. Dois minutos.
– Vamos
embora – eu disse a Sarah.
Voltamos
ao carro e ligamos o motor.
– Que
foi aquilo? – perguntou Sarah.
– Ele
não queria fazer negócio com a gente. Deu uma avaliada e achou que
éramos indigentes, sem valor. Achou que a gente ia desperdiçar o
tempo dele.
– Mas
não é verdade.
– Talvez
não, mas a coisa toda me fez sentir como se eu estivesse coberto de
lodo.
Eu
dirigia o carro, mal sabendo aonde ia.
De
alguma forma, aquilo doera. Claro, eu estava de ressaca e precisava
de uma barbeada, e sempre usara roupas que de algum modo pareciam não
me assentar bem, e talvez todos aqueles anos de pobreza me houvessem
dado uma certa aparência. Mas não achava sensato julgar uma pessoa
pela aparência externa daquele jeito. Eu preferiria muito mais
julgar uma pessoa pelo jeito de ela agir e falar.
– Nossa
– dei uma risada –, talvez ninguém nos venda uma casa.
– Aquele
cara era um idiota – disse Sarah.
– A
Imobiliária Século Vinte é uma das maiores redes do estado.
– O
cara era um idiota – ela repetiu.
Eu
ainda me sentia diminuído. Talvez fosse mesmo meio babaca. Só sabia
bater à máquina – às vezes.
Passávamos
por uma área de colinas.
– Onde
estamos? – perguntei.
– Topanga
Canyon – respondeu Sarah.
– Este
lugar parece fodido.
– É
legal, a não ser pelas inundações, incêndios e tipos neo-hippies
fracassados.
Então
eu vi o anúncio: PORTO DOS MACACOS. Era um bar. Encostei e saltamos.
Havia um monte de motos na frente. Às vezes chamavam as motos de
porcos.
Entramos.
Estava cheio pra burro. Caras de blusão de couro. Caras usando
echarpes imundas. Alguns tinham cicatrizes no rosto. Outros, barbas
que não cresciam lá muito bem. A maioria de olhos azul-claro,
redondos e apáticos. Sentavam-se muito quietos, como se estivessem
ali há semanas.
Pegamos
dois tamboretes.
– Duas
cervejas – eu disse. – Qualquer coisa engarrafada.
O
garçom afastou-se.
Vieram
as cervejas e Sarah e eu tomamos uma golada.
Então
percebi um rosto projetado para a frente ao longo do balcão,
encarando a gente. Um rosto muito gordo, com um toque de imbecil. Era
um jovem de cabelos e barba de um vermelho sujo, mas de sobrancelhas
branquíssimas. O lábio inferior pendia como se um peso invisível o
puxasse para baixo, retorcido, deixando ver o interior úmido e
espumante.
– Chinaski
– ele disse – filho da puta, é CHINASKI!
Eu
fiz um pequeno aceno, depois olhei em frente.
– Um
de meus leitores – disse a Sarah.
– Oh
oh – ela disse.
– Chinaski
– ouvi outra voz à direita.
– Chinaski
– mais outra.
Um
uísque surgiu à minha frente. Ergui-o.
– Obrigado,
companheiros!
E
emborquei-o.
– Vá
com calma – disse Sarah. – Você se conhece. Não vamos sair
daqui nunca.
O
garçom trouxe outro uísque. Era um carinha com o rosto cheio de
manchas vermelho escuro. Parecia mais mau do que qualquer outro ali
dentro. Apenas ficava ali, me encarando.
– Chinaski
– disse –, o maior escritor do mundo.
– Se
você insiste – eu disse, e ergui o copo de uísque.
Depois
passei-o para Sarah, que o emborcou.
Ela
tossiu um pouco e depositou o copo.
– Só
bebi esse pra salvar você.
Um
pequeno grupo se formava aos poucos atrás da gente.
– Chinaski.
Chinaski. Filho da puta... Li todos os seus livros. TODOS OS SEUS
LIVROS!... Posso te dar um pontapé na bunda, Chinaski... Escuta,
Chinaski, seu pau ainda sobe? Chinaski, Chinaski, posso ler um de
meus poemas pra você?
Paguei
ao garçom, descemos dos tamboretes e nos dirigimos para a porta.
Tornei a notar os blusões de couro, a suavidade dos rostos e
a sensação de que não havia muita alegria ou audácia em nenhum
deles. Faltava totalmente alguma coisa nos pobres sujeitos, e alguma
coisa em mim doeu, apenas por um instante, e senti vontade de
abraçá-los, consolá-los e beijá-los como um Dostoiévski, mas
sabia que isso no fim não levaria a nada, a não ser ao ridículo e
à humilhação, para mim mesmo e para eles. De algum modo, o mundo
tinha ido longe demais, e a bondade espontânea jamais poderia ser
tão fácil. Era algo por que teríamos de tornar a batalhar.
Eles
nos seguiram até o lado de fora.
– Chinaski,
Chinaski... Quem é sua bela dama? Você não merece ela, cara!...
Entre, Chinaski, fique e beba com a gente! Seja legal, vá! Seja como
sua literatura, Chinaski! Não seja um chato!
Tinham
razão, é claro. Entramos no carro, liguei o motor e passamos
devagar por entre eles, que se amontoavam à nossa volta, cedendo aos
poucos, alguns jogando beijos, outros me mostrando o dedão, uns
poucos batendo nas janelas. Atravessamos.
Chegamos
à estrada e fomos em frente.
– Então
– disse Sarah –, aqueles são os seus leitores?
– A
maioria deles, creio.
– Será
que ninguém inteligente lê você?
– Espero
que sim.
Continuamos
rodando sem dizer nada. Depois Sarah perguntou:
– Em
que está pensando?
– Dennis
Body.
– Dennis
Body? Quem é?
– Era
meu único amigo na escola primária. Imagino o que terá acontecido
com ele.
Charles Bukowski, in Hollywood
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