quarta-feira, 3 de maio de 2023

Cena carioca – IX

Posso não saber em que parte do inferno Dante arrojou os pretensiosos, mas aposto que eles vieram de um lugar pequeno e sujo, de uma cidade que não tem a luz das noites cariocas.
Noites cariocas... Na saída do Lamas, Zeca interpretando “La Barca” no rádio da patrulhinha e o PM aplaudindo. Maurício Tapajós matando baratas no fusca, na volta da casa da Elis, e perguntando: você também tá vendo ou sou só eu? Miguilho, depois de uma briga com pára-quedistas, dando saltos ornamentais de cima de um muro: perna quebrada e passadinha no PS do Andaraí, onde tu entra cajá e sai caqui.
Noites cariocas. O vício da madrugada. Vocação pra padeiro. Entrar de costas, pra vizinhaça pensar que eu tô saindo cedo. Ou trazer o leite, numa espécie de reconciliação com a realidade. Essas convenções tijucanas.
Noites cariocas. Na saída do Caras e Bocas a moça morena capota e morre. Meu pessoal continua biritando firme pelas noites do Rio, mas é contrato de risco: não somos mais imortais.
Noites cariocas. Chiquinho Botelho e eu, após tumulto no Calígula, 48 horas no ar. Chiquinho passa mal. Um médico no telefone. Descrição do quadro clínico. Impressionado, o esculápio pergunta pra mulher do Chiquinho:
Ele está inteiramente impossibilitado de locomover-se?
Mais ou menos...
Como assim, minha senhora?
Bom, mover-se ele não pode, mas continua um bocado loco.

Aldir Blanc, in Brasil passado a sujo

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