E
não gostavas de festa…
Ó
velho, que festa grande
hoje
te faria a gente.
E
teus filhos que não bebem
e
o que gosta de beber,
em
torno da mesa larga,
largavam
as tristes dietas,
esqueciam
seus fricotes,
e
tudo era farra honesta
acabando
em confidência.
Ai,
velho, ouvirias coisas
de
arrepiar teus noventa.
E
daí, não te assustávamos,
porque,
com riso na boca,
e
a nédia galinha, o vinho
português
de boa pinta,
e
mais o que alguém faria
de
mil coisas naturais
e
fartamente poria
em
mil terrinas da China,
já
logo te insinuávamos
que
era tudo brincadeira.
Pois
sim. Teu olho cansado,
mas
afeito a ler no campo
uma
lonjura de léguas,
e
na lonjura uma rês
perdida
no azul azul,
entrava-nos
alma adentro
e
via essa lama podre
e
com pesar nos fitava
e
com ira amaldiçoava
e
com doçura perdoava
(perdoar
é rito de pais,
quando
não seja de amantes).
E,
pois, todo nos perdoando,
por
dentro te regalavas
de
ter filhos assim… Puxa,
grandessíssimos
safados,
me
saíram bem melhor
que
as encomendas. De resto,
filho
de peixe… Calavas,
com
agudo sobrecenho
interrogavas
em ti
uma
lembrança saudosa
e
não de todo remota
e
rindo por dentro e vendo
que
lançaras uma ponte
dos
passos loucos do avô
à
incontinência dos netos,
sabendo
que toda carne
aspira
à degradação,
mas
numa via de fogo
e
sob um arco sexual,
tossias.
Hem, hem, meninos,
não
sejam bobos. Meninos?
Uns
marmanjos cinquentões,
calvos,
vividos, usados,
mas
resguardando no peito
essa
alvura de garoto,
essa
fuga para o mato,
essa
gula defendida
e
o desejo muito simples
de
pedir à mãe que cosa,
mais
do que nossa camisa,
nossa
alma frouxa, rasgada…
Ai,
grande jantar mineiro
que
seria esse… Comíamos,
e
comer abria fome,
e
comida era pretexto.
E
nem mesmo precisávamos
ter
apetite, que as coisas
deixavam-se
espostejar,
e
amanhã é que eram elas.
Nunca
desdenhe o tutu.
Vá
lá mais um torresminho.
E
quanto ao peru? Farofa
há
de ser acompanhada
de
uma boa cachacinha,
não
desfazendo em cerveja,
essa
grande camarada.
Ind’outro
dia… Comer
guarda
tamanha importância
que
só o prato revele
o
melhor, o mais humano
dos
seres em sua treva?
Beber
é pois tão sagrado
que
só bebido meu mano
me
desata seu queixume,
abrindo-me
sua palma?
Sorver,
papar: que comida
mais
cheirosa, mais profunda
no
seu tronco luso-árabe,
e
que bebida mais santa
que
a todos nos une em um
tal
centímano glutão,
parlapatão
e bonzão!
E
nem falta a irmã que foi
mais
cedo que os outros e era
rosa
de nome e nascera
em
dia tal como o de hoje
para
enfeitar tua data.
Seu
nome sabe a camélia,
e
sendo uma rosa-amélia,
flor
muito mais delicada
que
qualquer das rosas-rosa,
viveu
bem mais do que o nome,
porém
no íntimo claustrava
a
rosa esparsa. A teu lado,
vê:
recobrou-se-lhe o viço.
Aqui
sentou-se o mais velho.
Tipo
do manso, do sonso,
não
servia para padre,
amava
casos bandalhos;
depois
o tempo fez dele
o
que faz de qualquer um;
e
à medida que envelhece,
vai
estranhamente sendo
retrato
teu sem ser tu,
de
sorte que se o diviso
de
repente, sem anúncio,
és
tu que me reapareces
noutro
velho de sessenta.
Este
outro aqui é doutor,
o
bacharel da família,
mas
suas letras mais doutas
são
as escritas no sangue,
ou
sobre a casca das árvores.
Sabe
o nome da florzinha
e
não esquece o da fruta
mais
rara que se prepara
num
casamento genético.
Mora
nele a nostalgia,
citadino,
do ar agreste,
e,
camponês, do letrado.
Então
vira patriarca.
Mais
adiante vês aquele
que
de ti herdou a dura
vontade,
o duro estoicismo.
Mas,
não quis te repetir.
Achou
não valer a pena
reproduzir
sobre a terra
o
que a terra engolirá.
Amou.
E ama. E amará.
Só
não quer que seu amor
seja
uma prisão de dois,
um
contrato, entre bocejos
e
quatro pés de chinelo.
Feroz
a um breve contato,
à
segunda vista, seco,
à
terceira vista, lhano,
dir-se-ia
que ele tem medo
de
ser, fatalmente, humano.
Dir-se-ia
que ele tem raiva,
mas
que mel transcende a raiva,
e
que sábios, ardilosos
recursos
de se enganar
quanto
a si mesmo: exercita
uma
força que não sabe
chamar-se,
apenas, bondade.
Esta
calou-se. Não quis
manter
com palavras novas
o
colóquio subterrâneo
que
num sussurro percorre
a
gente mais desatada.
Calou-se,
não te aborreças.
Se
tanto assim a querias,
algo
nela ainda te quer,
à
maneira atravessada
que
é própria de nosso jeito.
(Não
ser feliz tudo explica.)
Bem
sei como são penosos
esses
lances de família,
e
discutir neste instante
seria
matar a festa,
matando-te
— não se morre
uma
só vez, nem de vez.
Restam
sempre muitas vidas
para
serem consumidas
na
razão dos desencontros
de
nosso sangue nos corpos
por
onde vai dividido.
Ficam
sempre muitas mortes
para
serem longamente
reencarnadas
noutro morto.
Mas
estamos todos vivos.
E
mais que vivos, alegres.
Estamos
todos como éramos
antes
de ser, e ninguém
dirá
que ficou faltando
algum
dos teus. Por exemplo:
ali
ao canto da mesa,
não
por humilde, talvez
por
ser o rei dos vaidosos
e
se pelar por incômodas
posições
de tipo gauche,
ali
me vês tu. Que tal?
Fica
tranquilo: trabalho.
Afinal,
a boa vida
ficou
apenas: a vida
(e
nem era assim tão boa
e
nem se fez muito má).
Pois
ele sou eu. Repara:
tenho
todos os defeitos
que
não farejei em ti,
e
nem os tenho que tinhas,
quanto
mais as qualidades.
Não
importa: sou teu filho
com
ser uma negativa
maneira
de te afirmar.
Lá
que brigamos, brigamos,
opa!
que não foi brinquedo,
mas
os caminhos do amor,
só
amor sabe trilhá-los.
Tão
ralo prazer te dei,
nenhum,
talvez… ou senão,
esperança
de prazer,
é,
pode ser que te desse
a
neutra satisfação
de
alguém sentir que seu filho,
de
tão inútil, seria
sequer
um sujeito ruim.
Não
sou um sujeito ruim.
Descansa,
se o suspeitavas,
mas
não sou lá essas coisas.
Alguns
afetos recortam
o
meu coração chateado.
Se
me chateio? demais.
Esse
é meu mal. Não herdei
de
ti essa balda. Bem,
não
me olhes tão longo tempo,
que
há muitos a ver ainda.
Há
oito. E todos minúsculos,
todos
frustrados. Que flora
mais
triste fomos achar
para
ornamento de mesa!
Qual
nada. De tão remotos,
de
tão puros e esquecidos
no
chão que suga e transforma,
são
anjos. Que luminosos!
que
raios de amor radiam,
e
em meio a vagos cristais
o
cristal deles retine,
reverbera
a própria sombra.
São
anjos que se dignaram
participar
do banquete,
alisar
o tamborete,
viver
vida de menino.
São
anjos; e mal sabias
que
um mortal devolve a Deus
algo
de sua divina
substância
aérea e sensível,
se
tem um filho e se o perde.
Conta:
catorze na mesa.
Ou
trinta? serão cinquenta,
que
sei? se chegam mais outros,
uma
carne cada dia
multiplicada,
cruzada
a
outras carnes de amor.
São
cinquenta pecadores,
se
pecado é ter nascido
e
provar, entre pecados,
os
que nos foram legados.
A
procissão de teus netos,
alongando-se
em bisnetos,
veio
pedir tua bênção
e
comer de teu jantar.
Repara
um pouquinho nesta,
no
queixo, no olhar, no gesto,
e
na consciência profunda
e
na graça menineira,
e
dize, depois de tudo,
se
não é, entre meus erros,
uma
imprevista verdade.
Esta
é minha explicação,
meu
verso melhor ou único,
meu
tudo enchendo meu nada.
Agora
a mesa repleta
está
maior do que a casa.
Falamos
de boca cheia,
xingamo-nos
mutuamente,
rimos,
ai, de arrebentar,
esquecemos
o respeito
terrível,
inibidor,
e
toda a alegria nossa,
ressecada
em tantos negros
bródios
comemorativos
(não
convém lembrar agora),
os
gestos acumulados
de
efusão fraterna, atados
(não
convém lembrar agora),
as
fina-e-meigas palavras
que
ditas naquele tempo
teriam
mudado a vida
(não
convém mudar agora),
vem
tudo à mesa e se espalha
qual
inédita vitualha.
Oh
que ceia mais celeste
e
que gozo mais do chão!
Quem
preparou? que inconteste
vocação
de sacrifício
pôs
a mesa, teve os filhos?
quem
se apagou? quem pagou
a
pena deste trabalho?
quem
foi a mão invisível
que
traçou este arabesco
de
flor em torno ao pudim,
como
se traça uma auréola?
quem
tem auréola? quem não
a
tem, pois que, sendo de ouro,
cuida
logo em reparti-la,
e
se pensa melhor faz?
quem
senta do lado esquerdo,
assim
curvada? que branca,
mas
que branca mais que branca
tarja
de cabelos brancos
retira
a cor das laranjas,
anula
o pó do café,
cassa
o brilho aos serafins?
quem
é toda luz e é branca?
Decerto
não pressentias
como
o branco pode ser
uma
tinta mais diversa
da
mesma brancura… Alvura
elaborada
na ausência
de
ti, mas ficou perfeita,
concreta,
fria, lunar.
Como
pode nossa festa
ser
de um só que não de dois?
Os
dois ora estais reunidos
numa
aliança bem maior
que
o simples elo da terra.
Estais
juntos nesta mesa
de
madeira mais de lei
que
qualquer lei da república.
Estais
acima de nós,
acima
deste jantar
para
o qual vos convocamos
por
muito — enfim — vos querermos
e,
amando, nos iludirmos
junto
da mesa
vazia.
Carlos Drummond de Andrade, in Claro enigma
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