O
amigo mostra-me fotografias de granja e diz: Escreva sobre ovos de
pato.
Com
prazer. Ensina um manual que, em matéria de reprodução, doze mil
espécies de aves, sem discrepância, optaram pela solução de botar
um ovo, elaborado da maneira mais simples. Ao pato se concedeu apenas
um ovo maior que o da galinha. Botado, a pata pôs-se a chocá-lo.
Se
abrirmos no ovo uma janelinha, e a recobrirmos com uma lamela de
vidro, que resguarde a temperatura interna, poderemos acompanhar de
perto os notáveis acontecimentos da incubação. Mas passemos. A
intimidade do ovo não constitui mistério para naturalistas; para
nós, leigos, é preferível devassá-la através de imagens, na
grande universidade popular que é o cinema. O aspecto exterior
denota impassibilidade. Mas, ao fim de semanas, a periferia apresenta
sinais inquietantes. Começa a trincar-se à maneira de um muro de
penitenciária, atacado por dentro. Serve de picareta um dentinho
calcário chamado “diamante”, que a natureza incluiu na parte
superior do bico de certas espécies. Sem esse utensílio, a prisão
não seria demolida, e não haveria regatas tranquilas de patos no
córrego das fazendas, nem pato assado com maçã à mesa de domingo.
Nascer
não é fácil, mesmo quando os pais, como os anatídeos, se lembram
de oferecer facilidades recusadas à dolorida raça dos mamíferos. A
casca do ovo é a primeira luta biológica, e a vida do pato é cheia
de doenças que vão da diarreia à apoplexia. Por isso mesmo, hesita
em vir ao mundo. Nascerá ganso? marreco? pato? cisne? Este último
é, no fundo, um pato parnasiano, com o pescoço em alexandrino. Por
motivo estético, ou porque sua carne não apeteça, conquistou a
consideração humana, e pode deslizar majestoso no lago do
Itamaraty; quanto ao pato, se lhe der igual veneta, será capturado
pelos vigilantes da casa e, por ordem do chefe do cerimonial, assado
na panela do ministro.
Mas
a resolução foi tomada. Um pequeno ser dispõe-se a vir ao mundo. O
que se percebe através da fenda aberta no ovo é uma fisionomia
ambígua, tão indeterminada ainda que mais parece a cara grotesca de
um velho, com imenso nariz e a calva camuflada pelos cabelos
remanescentes. Já a fase seguinte é bela. A cabeça desaparece sob
o palpitar de asas aflitas, que tentam criar um ritmo. Tudo está
molhado pela seiva da vida, e sente-se a presença desse maravilhoso
poder de voo, concedido até à espécie rasante dos patos.
Meio
ovo tombou em fragmentos. A operação continua, mas o bichinho,
cansado, deixa pender o busto para fora. A cabeça lembra a forma
nobre e melancólica de um equino — pelo menos de um equino
convertido em figura de proa de barco do São Francisco. A plumagem
assume aparência vegetal, no emaranhamento úmido desse primeiro
contato com o mundo exterior.
O
resto da carapaça não precisa ser destruído. O animal dispõe de
recursos para safar-se sem trabalho maior. Ei-lo integralmente
nascido, mas tão exausto que a cabeça pende e se apoia no bico,
tombado verticalmente. Pobre coisa caída e suja, com a neutralidade
de um morto.
Bastou
uma hora para que o sol secasse e esticasse as penas do patinho.
Porque se trata indubitavelmente de um patinho branco, vivo, tão à
vontade no mundo de Deus, que nada recorda a rude operação.
Mais
uma hora, e algo divertido aconteceu: surpreende-se o sorriso do pato
para a vida, nessa manhã inaugural de águas, plantas e insetos
comestíveis. Dizem que o homem é o único animal que ri; o homem
também ri bastante depois de um humilde pato, que o faz ao nascer.
Sorriso civilizado de ave que já não cultiva hábitos migratórios
ou a natural reserva do pato selvagem. Seu portador está orgulhoso
de cumprir o rito imemorial. Uma infinidade de espécies, na ordem
dos anseriformes, nasceu antes dele, e depois continuará nascendo. E
a todas o patinho resume em seu sorriso ingênuo de quem não prevê
os lamentáveis acontecimentos futuros, nem mesmo a utilização do
seu nome para exprimir a exagerada inocência de espírito.
Observe
o leitor, no sítio, a graça desse sorriso primeiro. E em recompensa
à lição de boa vontade, vença por duas semanas a tentação
sádica de comer o seu Canard à la Rouennaise, cuja receita
assim começa: “Estrangule-se um patinho novo, ou enfie-se-lhe uma
agulha comprida na cabeça; depene-se ainda quente, e corte-se o
pescoço, depois a ponta das asas…”.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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