Cada
um descobre o seu anjo tendo um caso com o demónio.
– Avô
Mariano –
– Onde
é que encontrou essa boina? Desde que eu visitara meu pai, me
esquecera do boné enterrado na cabeça. A Avó Dulcineusa espreita o
adorno com desconfiança. Reconhecia-o?
– Encontrei
isto no quarto de arrumos.
– Que
quarto de arrumos?
Esse
que eu chamava de quarto de arrumos há muito que estava vazio,
aberto aos ratos. – Como não há quarto? Se a Avó me entregou as
chaves, eram até as únicas chaves que serviam.
– Depois
sou eu que estou louca?! Esse quarto nem porta tem, nem soalho nem
nada.
Como
eu teimasse, ela me conduziu ao lugar. Dulcineusa, afinal, estava
certa. Não existia porta e as tábuas do chão haviam sido
arrancadas. Umas traves soltas, como ossos descarnados, era tudo o
que restava. Meus olhos zonzearam pelo corredor a reclamar certeza.
Só podia ser aquele o compartimento onde eu ardera de amores, onde
desencantara roupas e lembranças de roupas.
– Mas,
Avó, eu tenho a certeza...
– Venha,
meu neto. Venha, que lhe faço um chá.
Bate-me
com a mão na testa, como que em consolo de uma tonteira. Espontaneia
a larga e bem fermentada gargalhada. Há muito que não via
Dulcineusa tão satisfeita. Cantarola e dança pelos corredores. Só
um nome floresce em sua boca: Mariano, Mariano, Mariano. Reclama que
se tem encontrado com ele, me agradece o ter adiado o funeral do
desfalecido marido.
– Nem
imagina, Marianinho! Tem sido melhor que antes, quando éramos vivos.
– A
Avó é viva, não esqueça.
– Eu
estou como ele, nem a meio nem a metade. Só sei que ele agora é
meu, só meu.
– E
Miserinha? Há um tempo que não a vejo.
– Miserinha
foi, voltou para casa dela.
A
nossa visitante se despedira uns dias antes. A gorda chegou à sala e
anunciou a intenção de abandonar Nyumba-Kaya. Se arrastou para a
sala fúnebre e ali, com permissão de Dulcineusa, beijou o Avô na
fronte dizendo: – Obrigado, Mariano. Lhe agradeço. Mas fico melhor
no meu escuro, lá no meu canto! Depois, rasgou um pedaço do lençol
onde o A vá jazia. Levou esse pano rasgado para costurar e
recosturar lembranças em sua casa.
A
saída de Miserinha acabava reconfortando Dulcineusa. Ela estava
sozinha, sem competir com a sua antiga rival. A Avó redescobrira os
amores exclusivos do seu Mariano.
Depois
do chá, saio para a lagoa Tzivondzene. É lá que estão enterrados
os líquidos restos de minha mãe e meu pequeno irmão. Na borda da
água nada assinala o local do enterro. Sentei-me ali, no calado da
tarde. E relembro minha mãe, Dona Mariavilhosa. Agora, eu sabia a
sua história e isso era como que um punhal em minha consciência.
Como pudera eu estar tão desatento ao seu sofrimento? A vida de
Mariavilhosa se tinha infernizado desde que lhe sucedera o
nado-morto. Passara a ser uma mulher condenada, portadora de má
sorte e vigiada pelos outros para não espalhar sua sina pela vila. O
menino desnascido era um ximuku, um afogado. É assim que chamam aos
que nascem sem vida. Meu irmãozito nascera sem dizer nada, trouxera
um segredo que levara com ele.
Minha
mãe ficara em estado de impureza. Meu pai se opusera ao completo
exercício da tradição. Todavia, dentro dele havia ainda alguma
resistência a virar página sobre os antigos preceitos. Mariavilhosa
estava interdita de pegar em comida. Evitava entrar na cozinha. O
simples segurar de um prato a obrigava a purificar as mãos. Dizia-se
que devia “queimar” as mãos. Aquecia os braços numa chama da
fogueira para que os laivos da desgraça não conspurcassem os
alimentos. Devido a essa exclusão da cozinha eu não me recordava
dela, rodopiando com as demais mulheres junto ao fogão. Até no
falar ela seguira o tradicional mandamento. Mariavilhosa falava
baixo, tão baixo que nem a si se escutava. Não mais ela ajudou nos
campos. Sua impureza podia manchar a terra inteira e afligir a
fecundidade das machambas. Minha mãe acabara sucumbindo como o velho
navio de carga. Transportava demasiada tristeza para se manter
flutuando.
Um
pássaro-martelo rodopia sobre mim. Pousa e se aproxima, sem medo.
Fica-me olhando, sereno como se eu lhe fosse familiar. Me apetece
tocar-lhe mas me guardo, imóvel. Ele se anicha em seu próprio
corpo, parece adormecido. Fecho os olhos, afrouxado naquela quietude.
Quando me levanto e, pé ante pé, tento despertar o pássaro, ele se
conserva imóvel. Estaria adoentado, ainda me ocorreu. Um pássaro
adoece? Ou desmorona-se logo na morte, sem enfermidade pelo meio?
Encorajado pela atitude da ave acabo tocando-lhe, num leve roçar dos
dedos. É então que do corpo do mangondzwane se libertam dezenas de
outras aves semelhantes, num deflagrar de asas, bicos e penas. E o
bando, em espesso cortejo, se afasta, rente ando o rio Madzimi,
láonde minha mãe se converteu em água.
Volto
a casa, já anoitece. Procuro Dulcineusa, quero-lhe contar o sucedido
com a ave dos presságios. Não está no quarto nem na cozinha.
Surpreendo-a na sala deitada no escuro com o Avô. Está de costas,
ainda meio despida. A blusa está desabotoada e as costas nuas luzem,
gotejadas de suor. Parecem ter acabado de ter relações. A Avó
ainda está ofegante. Receio que fique ali, ao rigor do frio e da
cacimba. Chamo-a, com carinho: – Avó Dulcineusa! Lentamente ela se
vira. Um choque quase me atira ao chão. Não é Dulcineusa. É minha
Tia Admirança! E sua ofegação não resulta de cansaço. Ela
estáchorando. Mãos nas mãos, dedos num entrelaço cego. Chora
junto de Mariano.
– Esse
homem, você não sabe quanto eu o amei!.. Quanto eu o amo.
– O
Avô?
– Esse
homem não é seu Avô, Mariano.
Ergue-se
e sai chorando. Fico no escuro, vazio de ideia, deserto de
sentimento. Mariano não era meu avô? Teria eu escutado bem? Ou a
Tia estaria já contaminada pela morte que pairava em casa? A sombra
do pássaro-martelo atravessa o chão da minha alma.
Regresso
ao quarto e sento na mesa. À minha frente, olho a folha em branco.
Nada está nela escrito. Alguma vez terá havido realmente qualquer
palavra escrita? Seguro a caneta. O desejo arde em minhas mãos mas,
ao mesmo tempo, o medo me paralisa. É um receio profundo de que
qualquer coisa esteja desabando. Começo escrevendo, a mão obedece a
uma voz antiga enquanto vou redigindo: Desculpe sua Tia. Mas eu
careço de lhe fazer uma revelação: Admirança foi a mulher em
minha vida. Não foi Dulcineusa, nem Miserinha, nem nenhuma. Foi ela,
minha Admirança. Ela é muito mais nova que a irmã Dulcineusa.
Quando casei, ela estava longe de ser mulher. Era menina, a mais nova
das irmãs de Dulcineusa. Depois, foi completando formas, enchendo-se
de redondeada polpa. Não imagina como ela detinha belezas! Vivia
connosco, em nossa casa, e Dulcineusa nem suspeitava como sua irmã
recheava meu coração e apaladava meus sonhos.
Dimira,
assim eu lhe chamava. Minha Dimira que eu sempre tanto desejei! Em
miúda, ela se costumava meter numa canoa e subir o rio. Nas noites
sem luar, Admirança empurrava a embarcação até quase não ter pé.
Depois saltava para dentro da canoa e, à medida que se afastava, ia
despindo suas roupas. Uma por uma, as lançava na água e as vestes,
empurradas pela corrente, vinham ter à margem. Desse modo, eu sabia
quando ela já estava inteiramente nua. Sucedia, porém, quando eu
deixava de vislumbrar a canoa, perdida que estava na distância. Não
vendo, eu adivinhava a sua nudez e prometia que, um dia, aquela
mulher me pertenceria. E era como se, naquele instante, uma luz
abrisse o ventre da escuridão. Eu era o acendedor das noites.
Não
houve lua nova que eu não ficasse na margem espreitando sua
invisível presença, entre as ne blinas do rio. Certa vez me
alertaram: um crocodilo fora visto no encalço da canoa. O bicho,
assim me disseram, seria de alguém. Imaginava mesmo de quem seria:
de Miserinha. A mulher detinha poderes. Por ciúme destinava a morte
na sua rival Admirança, nos remansos do Madzimi. Esbaforido corri
para junto de Miserinha. E lhe dei ordem que suspendesse o feitiço.
Ela negou. A dizer verdade, nem me ouviu. Estava possuída, guiando o
monstro perante a escuridão. Não consegui me conter: lhe bati na
nuca com um pau de pilão. Ela tombou, de pronto, como um peso
rasgado. Quando despertou, me olhou como se não me visse. O golpe
lhe tinha roubado a visão. Miserinha passou a ver sombras. Nunca
mais poderia conduzir o seu crocodilo pelas águas do rio.
Pensei
que Miserinha me passaria a odiar. No dia seguinte, ela se despediu
de nossa casa. Puxou-me para um canto e me perguntou: – Está com
medo de minha vingança? – Eu sei que a senhora tem poderes...
– Não
receie, Mariano. Um homem que ama assim só pode inspirar respeito
nas outras mulheres! Naquela noite regressei ao rio e encontrei
Admirança ainda no bote. Ela acreditou que eu vinha para propósitos
de corpo e beijo. Mas eu, mal entrei na embarcação, me prostrei
como que de joelhos e lhe pedi se podia dormir ali com ela. Dormir,
sem mais demais. Que eu nunca havia dormido com mulher nenhuma. Ela
me olhou, espantada, como se a ausência do luar me escangalhasse o
juízo. E estendeu a mão, ajudando-me a deitar, todo estendido no
barquito. No embalo da ondulação acabei adormecendo.
Admirança,
entretanto, foi mandada para Lualua, onde havia uma missão católica.
Nós nos encontrávamos lá, não havia mês que não o fizéssemos.
Foi assim que ela engravidou. E não podia. Pensei, rápido, num modo
de sanar o pecado. Pedi a Mariavilhosa, sua mãe, que fizesse de
conta que estava grávida. Se ela fingisse bem, os xicuembos lhe
dariam, mais tarde, um filho verdadeiro. Sua mãe fingiu tão bem,
que a barriga lhe foi crescendo.
Sua
mãe aumentava de um vazio. Seu pai sorria, todo saciado. E até ela
mesma acreditava estar dando guarida a um novo rebento. Na missão de
Lualua, entretanto, nascia um menino do ventre de Admirança.
Trouxemos o pequeno bebé na encobertura da noite e fizemos de conta
que se dava um parto na casa grande, em Nyumba-Kaya. Até seu pai
chorou, crente de que o vindouro era genuíno fruto de seu sangue.
Mas
com o tempo o menino cresceu, foi ganhando feições. Admirança
definhava só ao pensar que esse moço ia revelando a identidade do
pai verdadeiro. Ela me suplicou que deixasse esse seu filho sair da
Ilha. Ele que crescesse fora, longe das vistas. E longe de sua culpa.
E o menino foi mandado para a cidade. Lá se fez homem, um homem
acertado no sentimento. Esse homem é você, Mariano. Admirança é
sua mãe.
Foi
esta mentira que fechou a terra, fazendo com que o chão negasse
receber-me. Mas não foi apenas esta impostura. Há outro assunto,
outra vergonha em minha vida. Quase nem me resta coragem para
confessar. Mas sei que devo fazer) colocar tudo isso em letra que
seja sua. Só assim lavarei sombras da minha existência.
E
prossigo na ordem dos tempos. Como sabe) Fulano Malta) esse que se
acredita ser seu pai) voltou da guerrilha trazendo duas pistolas. Ele
as guardava como lembrança de um tempo. Aquilo tinha valor de vida
sonhada. Uma noite encontrei o esconderijo dessas armas) por baixo de
umas velhas tábuas. Fui lá e rapinei uma pistola. O que fazer com
essa arma) eu não sabia. Mas tinha a certeza que ela me traria
dinheiro para urgentes precisões. Falei então com meus netos) os
filhos de Ultímio. Nessa altura) eles ainda viviam na cidade) foi
antes de partirem para o estrangeiro. Me haviam dito que eles se
entortaram para maldades) assaltavam carros e casas lá na cidade.
Chamei-os a Luar-do-Chão e lhes vendi a arma mais as respectivas
munições. Eles me pagaram pronto) tudo fechado) sem boca nem
ouvido. Segredo de sangue) assunto de família.
Sabe
o que suspeito? Que essa mesma arma foi a que matou meu amigo Juca
Sabão. Com certeza ele foi desensaboado com ajuda de minha ganância.
Pois aconteceu que) ao lado do corpo de Sabão) encontraram a arma) a
mesma arma que era de meu filho Fulano. Levaram a pistola para a
esquadra. Nessa noite eu não apanhava o devido sono) devorado pelo
pensamento. Podia deixar cair suspeita sobre os meus próprios netos?
Ou sobre Fulano) dono da arma? Trairia minha própria família para
que se fizesse justiça sobre o meu amigo? Não fiz outra coisa:
assaltei a esquadra e apanhei a arma) de escondido. Lancei-a no rio
nessa mesma noite. Sucedeu) porém) o que eu nunca poderia prever: em
lugar de se afundar, a Pistola ficou flutuando, animada por um
rodopio como que em infernoso redemoinho. E de repente, como se
houvesse um invisível dedo percutindo o gatilho, se deflagraram
tiros apontados às nuvens. Relâmpagos ainda sulcavam os céus
quando regressei, em debandada, para Nyumba-Kaya.
Todo
este tempo me condisse uma benzida ignorância sobre quem matou.
Preferia assim: acreditar no que disseram os tribunais, ficar de bem
com as aparências. Mas essa ilusão nunca me apaziguou. Nem a mim
nem aos meus antepassados que residem no chão do tempo. A terra não
aceita o espinho dessa mentira. Agora, deito esta mágoa na folha,
como se rasgasse o silêncio em que guardei essa má lembrança.
Pergunto-lhe,
meu filho Mariano: matei Juca, também eu? Talvez. Ou, quem sabe,
todos nós ajudámos nesse crime, por consentimento de silêncio? O
que eu devia ter feito era vencer o medo e sair pelo mundo a relatar
o testemunhado. Entregar-me como ocultador de provas. Mas não.
Mandado fui por minhas inferioridades. Você sabe: homem cobarde
transpira mesmo dentro da água. Dobrei-me sob o peso desse rebate de
consciência. Lembre de mim essa vergonha e cresça por cima de minha
fraqueza. Como um degrau que, para si, desenhei em minhas costas.
Depois
disto, sim, eu posso, em estreada vez, assinar de pulso aberto e por
extenso: Dito Ma ria no, seu pai PS: Me leve agora para o rio. Já
chegou o meu tempo. Peça a Curozero que lhe ajude. Não quero mais
ninguém lá. Nem parente, nem amigo. Ninguém. Lembra onde foram
enterradas as águas de sua mãe e o corpo de seu pequeno irmão, o
pré-falecido? junto à lagoa que nunca seca. Pois eu quero ser
enterrado junto ao rio. Pergunte ao coveiro Curozero, ele lhe dirá.
É lá que deverei ser enterrado. Eu sou um mal-morrido. já viu
chover nestes dias? Pois sou eu que estou travando a chuva. Por minha
culpa, a lua, mãe da chuva, perdeu a sua gravidez.
Sabe,
Marianito? Quando você nasceu eu lhe chamei de “água”. Mesmo
antes de ter nome de gente, essa foi a primeira palavra que lhe
deitei: madzi. E agora lhe chamo outra vez de “água”.
Sim, você é a água que me prossegue, onda sucedida em onda, na
corrente do viver.
Já
passou o meu momento. Você está aqui, a casa está sossegada, a
família está aprontada. já me despedi de mim, nem eu me preciso.
Vai ver que, agora, se vão desamarrar as águas, lá no alto das
nuvens. Vai ver mais como a terra se voltará a abrir, oferecida como
um ventre onde tudo nasce.
Já
sou um falecido inteiro, sem peso de mentira, sem culpa de falsidade.
Me
faça um favor: meta no meu túmulo as cartas que escrevi,
deposite-as sobre o meu corpo. Faz conta me ocuparei em ler nessa
minha nova casa. Vou ler a si, não a mim. Afinal, tudo o que escrevi
foi por segunda mão. A sua mão, a sua letra, me deu voz. Não foi
senão você que redigiu estes manuscritos. E não fui eu que ditei
sozinho. Foi a voz da terra, o sotaque do rio. O quanto lembrei veio
de antes de ter nascido. Como essa estrela já morta que ainda vemos
por atraso de luz. Dentro de mim, até já esse brilho esmoreceu.
Agora, estou autorizado a ser noite.
Depois
disto, vá chamar Curozero Muando. E levem-me para o, rio.
Aproveitemos a madrugada que é boa hora para se nascer.
Lá
fora, a noite está perdendo espessura. Salto o muro da casa, olho
para trás e, não cabendo em meu espanto, o que vejo? O telhado da
sala já refeito. A casa já não se defendia do luto. Nyumba-Kaya
estava curada da morte.
Uma
azulação no horizonte revela o amanhecer. Encontro Curo zero Muando
saindo de sua casa. Com uma pá às costas ele caminha na minha
direcção: – Eu sabia, eu sabia que você me vinha chamar! Vamos
rápido que, agora, ninguém nos pode ver.
No
segredo do escuro, trazemos o falecido para o rio. Me assombra como
não tem peso o Avô Mariano. Levamos o corpo para o rio, enrolado em
seu velho lençol. Lá onde o Madzimi se encurva, quase arrependido,
Curozero fez paragem.
– É
aqui!
– Vamos
deitá-lo na corrente? Não. O Avô vai ser enterrado na margem, onde
o chão é basto e fofo. Curozero levanta areia às pazadas com tais
facilidades que seu acta perde realidade. Começa a chover assim que
descemos o Avô à terra. Conservo as cartas em minhas mãos. Mas as
folhas tombam antes de as conseguir atirar para dentro da cova.
– Curozero,
ajude-me a apanhar esses papéis.
– Quais
papéis? Só eu vejo as folhas esvoando, caindo e se adentrando no
solo. Como é possível que o coveiro seja cego para tão visíveis
acontecências? Vou apanhando as cartas uma por uma. É então que
reparo: as letras se esbatem, aguadas, e o papel se empapa,
desfazendo-se num nada. Num ápice, meus dedos folheiam ausências.
– Quais
papéis? – insiste Curozero.
Respondo
num gesto calado, de mãos vazias. O coveiro salpica com água as
paredes do buraco. Cobrimos a sepultura de terra. Muando, descalço,
pisoteia o chão, alisando a areia. Em seguida, por cima da campa
espalha uns pés de ubuku, dessas ervas que só crescem junto ao rio.
No fim, entrega-me um caniço e ordena que o espete na cabeceira da
tumba. Foi um caniço que fez nascer o Homem. Estamos repetindo a
origem do mundo. Afundo a cana bravia na areia. Como uma bandeira, o
caniço parece envaidecido, apontando o poente.
– Agora
lavemo-nos nas águas do rio. Mergulhamos nas águas. Não sei do que
nos lavamos. Para mim, o rio, de tão sujo, só nos pode conspurcar.
Todavia, cumpro o ritual, preceito a preceito. Limpamo-nos no mesmo
pano. Em seguida, Curozero segura um pedaço de capim a arder e o
agita apontando os quatro pontos cardeais.
– Seu
Avô está abrindo os ventos. A chuva está solta, a terra vai
conceber.
Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
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