Na
prisão
Para
alguns, a vida sepulta mais que a morte.
Que
eu, de mim, só tive duas condições: desterrado e enterrado.
– Avô
Mariano –
No
bar do mulato Tuzébio reina a geral animação. Todos falam alto,
gesto e voz pairando sobre os copos de cerveja. A própria fala
parece espuma, batida por muita teimosia. O tema era um só: a
maldição que tombara sobre a terra. Já se tinha visto toda a
variedade de desgraças, praga de gafanhotos, seca de gretar pedra,
incêndio de engolir celeiros, cheias de lamber a inteira paisagem.
Mas o chão fechar-se, isso nunca tinha sido visto. O empedrecer das
areias era um castigo de que não havia memória.
E
onde encontrar a razão daquele castigo, de quem seriam as culpas?
Dava medo até indagar sobre as causas de tamanha desventura. A
verdade écomo o ninho de cobra. Se reconhece não pela vista mas
pela mordedura. Alguns me aconselham: – O melhor é você sair da
Ilha, você é um homem quente.
Ser
quente é ser portador de desgraça. Nenhuma pessoa é uma só vida.
Nenhum lugar é apenas um lugar. Aqui tudo são moradias de
espíritos, revelações de ocultos seres. E eu despertara antigos
fantasmas.
– Vão
dizer que foi você, Mariano.
– Eu,
porquê?
– Deixou
de chover quando você chegou, a terra fechou depois de você estar
aqui. Tudo são coincidências, meu caro. E todos sabemos que
coincidência é coisa que acontece mas que nunca existe.
Meu
pai contraria a maré, fazendo escutar a sua poderosa voz sobre a de
todos os restantes: – Você, meu filho, não sai daqui. Aliás,
você nunca saiu de Luar-do-Chão.
Finjo
consentir, escuto ordens e conselhos sem responder nem sim nem
talvez. Estava aprendendo os modos da terra, escutando em aparente
fleuma. O que é que fica tão longe que toda a gente vê melhor é
dentro de nós? O horizonte. Pois eu estava além do horizonte. Em
mim se instalara a certeza: a minha obrigação era para com o Avô
Mariano e eu devia cumprir seus recomendamentos.
Saio
do bar, como que entontecido. Na verdade, eu tinha bebido um simples
meio-copo, coisa de aquecer o esquecimento. Paro no caminho escuro.
Junto a um tronco urino, libertando os recentes excessos. Sinto, lá
no alto, o desfiar do vento nas ramadas dos coqueiros. Na berma do
atalho alguns miúdos, tardios, desmiolam cocos. Moças trançam
cabelos. No meu tempo seria impossível àquela hora encontrar
miudagens fora de casa. Estas crianças não terão voz que as chame?
Talvez fosse a confirmação do dito do Avô: todos esses meninos são
órfãos, mesmo os que têm pai e mãe vivos. Serão como os
passarinhos: nunca sentirão saudade do ninho.
De
repente, vejo que dois polícias avançam pelo mesmo caminho que eu
estava pisando. Certamente se trata de uma rusga de rotina nas
tendas. Ao cruzarem comigo, porém, eles me seguram e começam, de
imediato, a amarrar-me os braços. Espantado, nem reajo. Dócil de
tanta insensatez, sou conduzido à esquadra. Sentado, com imponência
estudada, me espera o administrador. Está com cara de fígado, e sem
rodeios me lança, com voz peluda: – Você urinou no chão? Não
entendo logo. Mas ali estava a subterrânea suspeita. Tinha sido eu o
causador da desordem terrestre. Sendo um homem aquecido, a urina
podia ter calor suficiente para fundir os subterrâneos minerais. O
administrador teima, finca-pedestre: – Fez amor durante estes dias?
A raiva me amarra a voz na garganta. O rancor crescia, desgovernado
de mim quando contra-inquiri: – Meus tios sabem que estou aqui?
Percebo, tarde de mais, que não devia ter perguntado. Porque a
pergunta fez crescer o empoleiramento do administrador, necessitado
de mostrar suficiência. O homem assanha a ideia: o cemitério é
para os que morrem, a vida é para os que vivem. A minhoca é que
anda a esburacar sem licença, diz ele. E prossegue, interrogando-me:
– O que foi fazer ao cemitério, o que andou a conversar com esse
coveiro? A tensão vai engordando. Os polícias não me apontam
pistola mas espetam-me o abutreado olhar. O que faria o Avô naquela
circunstância? E penso: é curioso eu procurar inspiração no
mais-velho. Afinal, já me vou exercendo como um Malilane. E logo a
resposta me ilumina: Mariano haveria de se fazer de morto. E isso é
o que decido fazer. E se comprovou ser o mais acertado, no momento.
Porque, afinal, naquela esquadra não se estava a falar do que se
estava falando. Não era o fechar da terra que interessava.
Desconfiavam de outra coisa: que eu estivesse mexendo no assassinato
de Juca Sabão. Com esperteza da cidade eu remexia em assunto já
enterrado. Eu era a tal mexeriqueira minhoca.
Como
não respondesse tiraram-me os sapatos e ordenaram que sentasse no
chão. E ali me deixei, sentindo, só então, o quanto as cordas me
penetravam nos pulsos.
Entretanto,
a notícia de minha prisão tinha já chegado à taberna do Tuzébio.
Meu pai fez-se num disparo e, sem modos, entra pela esquadra a
reclamar. Impávido, o administrador esclarece: – Seu filho não
está preso, está apenas detido.
– Pois
eu não venho libertá-lo mas apenas soltá-lo – responde Fulano.
E
como se fosse a um miúdo ele me apanha pelos colarinhos e, à força,
me vai conduzindo pela sala. Um dos polícias se atravessa no caminho
e empurra meu pai de encontro à parede. Voa um pontapé, depois
outro. Meu pai está dobrado num canto, acomodando as dores, uma por
uma.
– Parem
com isso, imediatamente! É ordem de meu Tio Ultímio. Sem que me
apercebesse, ele entrara por uma das portas interiores da esquadra,
uma das que dava ligação com a administração. Os polícias se
retaguardam. Meu pai se endireita: – Vamos, meu filho. Vamos
embora.
Ainda
esperei que as autoridades viessem em nosso encalço. Mas não.
Saímos da esquadra, atravessámos a multidão que se tinha acumulado
em redor do edifício. Fulano Malta não destroca conversas e me
leva, mesmo assim, mãos amarradas por trás das costas. Vamos para o
cais. Ficamos os dois, no meio da noite. Ele olha as águas. Como
seus olhos fossem remos e sulcassem o rio contra a corrente. Um homem
bom tem o coração no pé, à mercê de ser calcado. Depois de muito
silêncio, ele murmura: – Peço desculpa.
– Pai,
está-me a pedir desculpa, a mim? – Não é a si. É a fuca Sabão.
É a ele que peço perdão.
– Não
me vai soltar, pai? Ele sorri, um esgar feito só de tristeza.
Tinha-se distraído, atento aos seus fantasmas. Desata-me as cordas e
espreita-me os pulsos. Dos fundos sulcos escorre sangue.
– Não
se lave no rio. Não deixe o sangue tombar no rio.
Com
as mãos faz uma concha e lava-me a conveniente distância da margem.
Enquanto me trata, vai falando: pena era que Nyembete fosse retrasada
e desbotada para as falas. Porque ela tinha visto Juca Sabão ser
morto, era a única testemunha viva do assassinato. Mas não era
credível. Por isso os assassinos a tinham poupado.
– Veja
como é a vida. O atraso dessa moça sempre a afastou da vida. Agora
foi esse atraso que a salvou.
– Mas
ela sempre foi assim? Meu pai conhece a história da moça do
cemitério. É um caso antigo, a menina se divergira do seu destino
desde que nascera. Dizia-se, à boca curta, que ela tomava venenos.
Não passava dia sem tragar uma dose.
A
razão desse vício? Bom, uns morrem no parto. Outros falecem mesmo
antes de nascerem. Como esse meu irmãozito que nunca ascendeu à
luz. Com ela tinha sucedido igual. Seu corpo escapou-se das mãos da
parteira, tombando em plena areia. Foi quando do inesperado capim
surgiu a cobra sombradeira. Dessas que nem necessitam de morder.
Basta passar na distância de uma sombra e, em volta, as vivências
descamam, definham e desfalecem. A dita serpente fez mais que passar:
lhe espetou a dupla dentição e cravou nela esses líquidos que
liquidam. Mas, surpresa. Pois que, nela, aquilo surtiu efeito
inverso: a fatal mordedura a fizera renascer e florescer. Aquilo fora
como um sopro, o beijo em sono de princesa.
Dizia-se,
por isso, que a mãe dela não lhe dera à luz. Dera-a à sombra. Uns
choram quando nascem. Choram para aprender a respirar. Ela respirava
no choro dos outros. De lhe dar o peito, a mãe adoeceu, contaminada
das gosmas que seus lábios exsudavam. Vieram as tias e
secaram-se-lhes os seios atésemelharem cotovelos. Desvalida para
aleitamento ela se nutriu foi de venenos. Traziam-lhe das variadas
fontes. Essa era a razão de seu vício. Daí provinha também a sua
dificuldade em se expressar. A cobra fizera um nó na sua alma,
enroscando-se-lhe na voz.
– Pai,
como é possível que eu tenha sonhado com isso? – Com isso o quê?
– Sonhei que Nyembeti me pedia veneno.
Meu
pai sacudiu a cabeça e exclamou: meu filho, o que lhe está entrando
no sonho! O homem que vive em espanto deixa portas abertas no sonho.
Por aquela brecha me entravam ideias de bicho, vozes dos mortos. Até
essa tonta, a descabeçada de Nyembeti, ganhara licença dentro de
minha alma.
– Mas
eu sei a razão desse sonho.
Sim,
havia uma razão. Eu já não me recordava mas, em menino, eu
brincara com a moça. E até com ela me escondera nas covas meio
abertas. Meu pai me ralhara, proibindo-me de entrar naqueles tétricos
lugares. O buraco, dissera ele, é feito para bicho rasteiroso,
insecto chafurda dor e criatura despedida do viver.
Tudo
isso meu pai me falou. Depois, mandou que eu regressasse a casa.
Antes de me retirar ainda lhe atiro, como paga de um carinho: – O
Padre Nunes gosta tanto de si, pai. – Eu sei. Também sei por que é
que ele se vai embora.
– Disse-me
que está cansado. Vai de férias. – Nem sei se volta mais.
E
entendia-se que fosse dali para nenhum destino. Afinal, um padre
confessa-se a quem? Fala directo com Deus? Confessar-se a outro
padre, o nosso Nunes não podia, sozinho que estava. A questão é
que, segundo meu pai, o sacerdote tinha pecados graves a confessar.
Nunes tinha absolvido criminosos. O sacerdote inocentara gente com
mais veneno que as doses de Nyembeti.
Regresso
a casa. À entrada, a Avó Dulcineusa me prende pelo braço. O
desvairo lhe faz pestanejar os olhos, persianas batidas por ventos
cruzados.
– Sabe
o que desconfio? Desconfio que Miserinha está grávida.
– Como
é possível, Avó?
– Não
vê que ela já não bebe água de pé? – Ora, Avó/ – Não vê
que ela agora esfria o caril antes de o meter na boca? – Avó, já
viu a idade dela? – Está grávida de seu Avô, Mariano.
– Do
Avô, então, é que é mesmo impossível.
– Ele
é muito malandro, mesmo morto, ainda é um mexedor de mulher.
– Miserinha
é velha, Avó, mais velha que a terra.
– Esse
seu avô tem conversa com tal encanto que pode diminuir a idade de
qualquer mulher.
Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
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