quinta-feira, 6 de abril de 2023

Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra | Capítulo dezassete


Na prisão
Para alguns, a vida sepulta mais que a morte.
Que eu, de mim, só tive duas condições: desterrado e enterrado.
Avô Mariano –

No bar do mulato Tuzébio reina a geral animação. Todos falam alto, gesto e voz pairando sobre os copos de cerveja. A própria fala parece espuma, batida por muita teimosia. O tema era um só: a maldição que tombara sobre a terra. Já se tinha visto toda a variedade de desgraças, praga de gafanhotos, seca de gretar pedra, incêndio de engolir celeiros, cheias de lamber a inteira paisagem. Mas o chão fechar-se, isso nunca tinha sido visto. O empedrecer das areias era um castigo de que não havia memória.
E onde encontrar a razão daquele castigo, de quem seriam as culpas? Dava medo até indagar sobre as causas de tamanha desventura. A verdade écomo o ninho de cobra. Se reconhece não pela vista mas pela mordedura. Alguns me aconselham: – O melhor é você sair da Ilha, você é um homem quente.
Ser quente é ser portador de desgraça. Nenhuma pessoa é uma só vida. Nenhum lugar é apenas um lugar. Aqui tudo são moradias de espíritos, revelações de ocultos seres. E eu despertara antigos fantasmas.
Vão dizer que foi você, Mariano.
Eu, porquê?
Deixou de chover quando você chegou, a terra fechou depois de você estar aqui. Tudo são coincidências, meu caro. E todos sabemos que coincidência é coisa que acontece mas que nunca existe.
Meu pai contraria a maré, fazendo escutar a sua poderosa voz sobre a de todos os restantes: – Você, meu filho, não sai daqui. Aliás, você nunca saiu de Luar-do-Chão.
Finjo consentir, escuto ordens e conselhos sem responder nem sim nem talvez. Estava aprendendo os modos da terra, escutando em aparente fleuma. O que é que fica tão longe que toda a gente vê melhor é dentro de nós? O horizonte. Pois eu estava além do horizonte. Em mim se instalara a certeza: a minha obrigação era para com o Avô Mariano e eu devia cumprir seus recomendamentos.
Saio do bar, como que entontecido. Na verdade, eu tinha bebido um simples meio-copo, coisa de aquecer o esquecimento. Paro no caminho escuro. Junto a um tronco urino, libertando os recentes excessos. Sinto, lá no alto, o desfiar do vento nas ramadas dos coqueiros. Na berma do atalho alguns miúdos, tardios, desmiolam cocos. Moças trançam cabelos. No meu tempo seria impossível àquela hora encontrar miudagens fora de casa. Estas crianças não terão voz que as chame? Talvez fosse a confirmação do dito do Avô: todos esses meninos são órfãos, mesmo os que têm pai e mãe vivos. Serão como os passarinhos: nunca sentirão saudade do ninho.
De repente, vejo que dois polícias avançam pelo mesmo caminho que eu estava pisando. Certamente se trata de uma rusga de rotina nas tendas. Ao cruzarem comigo, porém, eles me seguram e começam, de imediato, a amarrar-me os braços. Espantado, nem reajo. Dócil de tanta insensatez, sou conduzido à esquadra. Sentado, com imponência estudada, me espera o administrador. Está com cara de fígado, e sem rodeios me lança, com voz peluda: – Você urinou no chão? Não entendo logo. Mas ali estava a subterrânea suspeita. Tinha sido eu o causador da desordem terrestre. Sendo um homem aquecido, a urina podia ter calor suficiente para fundir os subterrâneos minerais. O administrador teima, finca-pedestre: – Fez amor durante estes dias? A raiva me amarra a voz na garganta. O rancor crescia, desgovernado de mim quando contra-inquiri: – Meus tios sabem que estou aqui? Percebo, tarde de mais, que não devia ter perguntado. Porque a pergunta fez crescer o empoleiramento do administrador, necessitado de mostrar suficiência. O homem assanha a ideia: o cemitério é para os que morrem, a vida é para os que vivem. A minhoca é que anda a esburacar sem licença, diz ele. E prossegue, interrogando-me: – O que foi fazer ao cemitério, o que andou a conversar com esse coveiro? A tensão vai engordando. Os polícias não me apontam pistola mas espetam-me o abutreado olhar. O que faria o Avô naquela circunstância? E penso: é curioso eu procurar inspiração no mais-velho. Afinal, já me vou exercendo como um Malilane. E logo a resposta me ilumina: Mariano haveria de se fazer de morto. E isso é o que decido fazer. E se comprovou ser o mais acertado, no momento. Porque, afinal, naquela esquadra não se estava a falar do que se estava falando. Não era o fechar da terra que interessava. Desconfiavam de outra coisa: que eu estivesse mexendo no assassinato de Juca Sabão. Com esperteza da cidade eu remexia em assunto já enterrado. Eu era a tal mexeriqueira minhoca.
Como não respondesse tiraram-me os sapatos e ordenaram que sentasse no chão. E ali me deixei, sentindo, só então, o quanto as cordas me penetravam nos pulsos.
Entretanto, a notícia de minha prisão tinha já chegado à taberna do Tuzébio. Meu pai fez-se num disparo e, sem modos, entra pela esquadra a reclamar. Impávido, o administrador esclarece: – Seu filho não está preso, está apenas detido.
Pois eu não venho libertá-lo mas apenas soltá-lo – responde Fulano.
E como se fosse a um miúdo ele me apanha pelos colarinhos e, à força, me vai conduzindo pela sala. Um dos polícias se atravessa no caminho e empurra meu pai de encontro à parede. Voa um pontapé, depois outro. Meu pai está dobrado num canto, acomodando as dores, uma por uma.
Parem com isso, imediatamente! É ordem de meu Tio Ultímio. Sem que me apercebesse, ele entrara por uma das portas interiores da esquadra, uma das que dava ligação com a administração. Os polícias se retaguardam. Meu pai se endireita: – Vamos, meu filho. Vamos embora.
Ainda esperei que as autoridades viessem em nosso encalço. Mas não. Saímos da esquadra, atravessámos a multidão que se tinha acumulado em redor do edifício. Fulano Malta não destroca conversas e me leva, mesmo assim, mãos amarradas por trás das costas. Vamos para o cais. Ficamos os dois, no meio da noite. Ele olha as águas. Como seus olhos fossem remos e sulcassem o rio contra a corrente. Um homem bom tem o coração no pé, à mercê de ser calcado. Depois de muito silêncio, ele murmura: – Peço desculpa.
Pai, está-me a pedir desculpa, a mim? – Não é a si. É a fuca Sabão. É a ele que peço perdão.
Não me vai soltar, pai? Ele sorri, um esgar feito só de tristeza. Tinha-se distraído, atento aos seus fantasmas. Desata-me as cordas e espreita-me os pulsos. Dos fundos sulcos escorre sangue.
Não se lave no rio. Não deixe o sangue tombar no rio.
Com as mãos faz uma concha e lava-me a conveniente distância da margem. Enquanto me trata, vai falando: pena era que Nyembete fosse retrasada e desbotada para as falas. Porque ela tinha visto Juca Sabão ser morto, era a única testemunha viva do assassinato. Mas não era credível. Por isso os assassinos a tinham poupado.
Veja como é a vida. O atraso dessa moça sempre a afastou da vida. Agora foi esse atraso que a salvou.
Mas ela sempre foi assim? Meu pai conhece a história da moça do cemitério. É um caso antigo, a menina se divergira do seu destino desde que nascera. Dizia-se, à boca curta, que ela tomava venenos. Não passava dia sem tragar uma dose.
A razão desse vício? Bom, uns morrem no parto. Outros falecem mesmo antes de nascerem. Como esse meu irmãozito que nunca ascendeu à luz. Com ela tinha sucedido igual. Seu corpo escapou-se das mãos da parteira, tombando em plena areia. Foi quando do inesperado capim surgiu a cobra sombradeira. Dessas que nem necessitam de morder. Basta passar na distância de uma sombra e, em volta, as vivências descamam, definham e desfalecem. A dita serpente fez mais que passar: lhe espetou a dupla dentição e cravou nela esses líquidos que liquidam. Mas, surpresa. Pois que, nela, aquilo surtiu efeito inverso: a fatal mordedura a fizera renascer e florescer. Aquilo fora como um sopro, o beijo em sono de princesa.
Dizia-se, por isso, que a mãe dela não lhe dera à luz. Dera-a à sombra. Uns choram quando nascem. Choram para aprender a respirar. Ela respirava no choro dos outros. De lhe dar o peito, a mãe adoeceu, contaminada das gosmas que seus lábios exsudavam. Vieram as tias e secaram-se-lhes os seios atésemelharem cotovelos. Desvalida para aleitamento ela se nutriu foi de venenos. Traziam-lhe das variadas fontes. Essa era a razão de seu vício. Daí provinha também a sua dificuldade em se expressar. A cobra fizera um nó na sua alma, enroscando-se-lhe na voz.
Pai, como é possível que eu tenha sonhado com isso? – Com isso o quê? – Sonhei que Nyembeti me pedia veneno.
Meu pai sacudiu a cabeça e exclamou: meu filho, o que lhe está entrando no sonho! O homem que vive em espanto deixa portas abertas no sonho. Por aquela brecha me entravam ideias de bicho, vozes dos mortos. Até essa tonta, a descabeçada de Nyembeti, ganhara licença dentro de minha alma.
Mas eu sei a razão desse sonho.
Sim, havia uma razão. Eu já não me recordava mas, em menino, eu brincara com a moça. E até com ela me escondera nas covas meio abertas. Meu pai me ralhara, proibindo-me de entrar naqueles tétricos lugares. O buraco, dissera ele, é feito para bicho rasteiroso, insecto chafurda dor e criatura despedida do viver.
Tudo isso meu pai me falou. Depois, mandou que eu regressasse a casa. Antes de me retirar ainda lhe atiro, como paga de um carinho: – O Padre Nunes gosta tanto de si, pai. – Eu sei. Também sei por que é que ele se vai embora.
Disse-me que está cansado. Vai de férias. – Nem sei se volta mais.
E entendia-se que fosse dali para nenhum destino. Afinal, um padre confessa-se a quem? Fala directo com Deus? Confessar-se a outro padre, o nosso Nunes não podia, sozinho que estava. A questão é que, segundo meu pai, o sacerdote tinha pecados graves a confessar. Nunes tinha absolvido criminosos. O sacerdote inocentara gente com mais veneno que as doses de Nyembeti.
Regresso a casa. À entrada, a Avó Dulcineusa me prende pelo braço. O desvairo lhe faz pestanejar os olhos, persianas batidas por ventos cruzados.
Sabe o que desconfio? Desconfio que Miserinha está grávida.
Como é possível, Avó?
Não vê que ela já não bebe água de pé? – Ora, Avó/ – Não vê que ela agora esfria o caril antes de o meter na boca? – Avó, já viu a idade dela? – Está grávida de seu Avô, Mariano.
Do Avô, então, é que é mesmo impossível.
Ele é muito malandro, mesmo morto, ainda é um mexedor de mulher.
Miserinha é velha, Avó, mais velha que a terra.
Esse seu avô tem conversa com tal encanto que pode diminuir a idade de qualquer mulher.

Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra

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