Uma
vez contei a história de um mito que nós, famélicos estudantes
moradores de uma pensão do Catete, nos anos 30, criamos para zombar
uns dos outros. Se, por exemplo, Rui atendia o telefone e era para o
Miguel, e o Miguel lá de cima perguntava quem é que queria falar
com ele, Rui respondia sério: “É um sujeito que lhe quer dar
quinhentos mil-réis...”
A
graça verdadeira da história é que um dia me chamaram ao telefone.
Era um amigo velho de Cachoeiro, o Antônio Olinto Gonçalves: —
Rubem, como vai? Há quanto tempo a gente não se vê! Como vai de
saúde? E de dinheiro? Hem?
Bem,
acontece o seguinte: entrei agora nuns dinheiros e queria saber se
você não estava precisando assim de uns quinhentos mil-réis...
Não
era trote. Vinte minutos depois ele passava pela pensão, e, na
frente de três ou quatro colegas por mim convocados para solenizar o
ato, me entregava uma grande nota de quinhentos mil-réis, naquele
tempo conhecida como “tapete d'alma”. O “homem dos quinhentos
mil-réis” existia mesmo.
Não
estranho muito quando sei que um sujeito a quem jamais fiz nenhum mal
está fazendo força contra mim em algum setor. Não me acho
simpático, e suponho que, se eu conhecesse outro sujeito igual a
mim, nossas relações nunca chegariam a ser grande coisa.
O
que me espanta na vida é a aparição súbita da Providência Divina
disfarçada em uma pessoa qualquer, Podia fazer uma lista dessas
pessoas, mas prefiro citar apenas um caso.
Uma
vez, em Cachoeira, João Madureira e eu, ainda rapazolas, saímos a
passarinhar. Creio que ele levava um pio de inhambu ou de macuco. Eu
levava apenas minha espingarda; sou homem de ouvido ruim, tanto que
contam que uma vez que piei um macuco, meia hora depois apareceu o
“soberbo galináceo” (é assim que se diz no disco de vozes de
aves do Brasil feito pela família Coelho, fabricante de pios de caça
na ilha da Luz, e que vocês não encontram em nenhuma casa de
discos, mas em casas de armas) e quando eu levava a arma a cara o
macuco levantou uma pata e disse: “Não atire não, moço, eu só
vim ver quem é que estava piando macuco tão mal.”
Bem;
eu e João subimos por uma capoeira, atravessamos um roçado,
contornamos um brejo, entramos na mata, andamos, andamos, e a horas
tantas começou a escurecer e a chover. Escureceu e choveu tanto que
ficamos molhados e sem rumo; tocamos por um caminho qualquer até
ver, como nas histórias antigas, uma luzinha lá longe.
Nenhum
de nós dois conhecia o dono da fazenda: era o senhor Oscar, irmão
do finado governador do Espírito Santo, Nestor Gomes. Ele nos deu
jantar, cama para dormir, roupa seca, e ainda despachou um camarada a
cavalo para ir até uma estação próxima pedir para avisarem a
nossas famílias em Cachoeira que nós íamos dormir lá na
Cachoeirinha.
Em
1935 houve um dia que fiquei desarvorado e sem saber onde dormir.
Meus amigos mais íntimos estavam presos, e eu escapara por muito
pouco, dormindo cada noite em um lugar diferente.
A
certa altura procurei pouso por uma noite em uma casa de Vila Isabel,
mas a família, assustada, me negou abrigo.
Com
minha maleta na mão entrei em um café do bulevar e telefonei para
um amigo perguntando se ele tinha alguma ideia. Ele pediu o número
do telefone do café em que eu estava, e dali a dez minutos ligou
para mim. Disse que tinha telefonado a um amigo que morava em Grajaú;
era um senhor protestante que não se metia em política, mas homem
de excelente coração, que estava disposto a correr o risco de me
esconder em sua casa até que eu arranjasse outro rumo.
Tomei
um táxi e fui para essa casa em Grajaú, onde passei alguns dias,
fiquei doente, fiz uma pequena operação e fui cuidado como maior
carinho pelo dono da casa, sua senhora e duas filhas mocinhas. O dono
da casa era o mesmo dono da fazenda da Cachoeirinha.
Rubem Braga, in A traição das elegantes
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