domingo, 9 de abril de 2023

O sol e o peixe



É um jogo divertido, especialmente para uma manhã sombria de inverno. Dizemos para o olho: Atenas; Segesta; rainha Vitória; e esperamos tão submissamente quanto possível para ver o que acontecerá em seguida. E é possível que nada aconteça, e é possível que muitas coisas aconteçam, mas não as coisas que poderíamos esperar. A velha dama com óculos de aros de tartaruga – nossa falecida rainha – está bastante vívida; mas, de alguma forma, ela se juntou com um soldado em Piccadilly que se abaixa para pegar uma moeda; com um camelo amarelo que passa, gingando, por uma arcada nos Kensington Gardens; com uma cadeira de cozinha e um distinto e idoso cavalheiro que abana seu chapéu. Abandonada há anos na mente, a ela se grudaram todos os tipos de matéria. Quando dizemos rainha Vitória, desenhamos uma coleção tão heterogênea de objetos que seria preciso ao menos uma semana para ordená-la. Por outro lado, podemos dizer para nós mesmos Mont Blanc ao amanhecer; Taj Mahal ao luar; e a mente continua uma folha em branco. Pois um cenário só sobrevive na estranha poça em que depositamos nossas memórias se tiver a boa sorte de se juntar a alguma outra emoção pela qual ela é preservada. As vistas se casam, incongruentemente, morganaticamente (como a rainha e o camelo), e se mantêm, assim, mutuamente vivas. O Mont Blanc, o Taj Mahal, vistas para as quais viajamos e que suamos para ver, apagam-se e perecem e desaparecem porque não conseguiram encontrar o par certo. É possível que não vejamos, no nosso leito de morte, nada mais majestoso do que um gato e uma velha senhora com uma touca para passear ao sol. As grandes vistas terão morrido por falta de parceiros.
Assim, nesta manhã sombria de inverno, quando o mundo real se apagou, vejamos o que o olho pode fazer por nós. Mostre-me o eclipse*, dizemos ao olho; vejamos o estranho espetáculo de novo. E imediatamente vemos – mas o olho da mente apenas por obséquio é um olho; é um nervo que ouve e cheira, que transmite frio e calor, que está ligado ao cérebro e estimula a mente a discriminar e a especular – é apenas por uma questão de brevidade que dizemos que “vemos” imediatamente uma estação de trem à noite. Uma multidão está reunida atrás de uma barreira; mas que multidão curiosa! Trazem impermeáveis pendurados nos braços; nas mãos carregam maletas. Têm uma aparência provisória, improvisada. Têm aquela unidade comovente e perturbadora que vem da consciência de que eles (mas aqui seria mais próprio dizer “nós”) têm um propósito em comum. Nunca houve propósito mais estranho do que o que nos juntou naquela noite de junho na estação ferroviária de Euston. Nós íamos ver a aurora. Trens como os nossos estavam, naquele exato momento, dando a partida em toda a Inglaterra para ver a aurora. Todos os narizes apontavam para o norte. Quando, por um instante, paramos nas profundezas do campo, havia a pálida luz amarela dos carros a motor também apontando para o norte. Não havia ninguém dormindo, ninguém parado na Inglaterra naquela noite. Todos estavam viajando para o norte. Todos estavam pensando na aurora. À medida que a noite avançava no céu, aquilo que era o objeto de muitos milhões de pensamentos adquiria substância e importância maiores que de costume. A consciência da suave e esbranquiçada abóbada acima de nós ganhava peso à medida que as horas passavam. Quando, no começo da gélida manhã, viramos numa beira da estrada em Yorkshire, nossos sentidos estavam orientados de uma maneira diferente da costumeira. Não estávamos mais em relação apenas com as pessoas, as casas e as árvores; estávamos em relação com o mundo inteiro. Viemos não para nos alojar no quarto de uma pousada; viemos para umas poucas horas de intercurso incorporal com o céu.
Estava tudo muito pálido. O rio estava pálido e os campos, repletos de grama e de flores em pendão que deveriam ter sido vermelhas, não tinham nenhuma cor, mas ficavam ali sussurrando e ondulando em torno de casas descoloridas. Agora a porta da casa se abria e dela saíam, para se juntar à procissão, o agricultor e sua família, em suas roupas domingueiras, limpos, sombrios e silenciosos como se estivessem subindo a ladeira para ir à igreja; ou, às vezes, as mulheres simplesmente se inclinavam nos parapeitos das janelas dos quartos do andar de cima para ver a procissão passar, aparentemente com divertido desdém – eles percorreram centenas de quilômetros, e para quê? pareciam dizer elas, em completo silêncio. Tínhamos a estranha sensação de estar comparecendo a um encontro marcado com um ator de proporções tão vastas que chegaria silencioso e estaria em toda parte.
Quando chegamos ao local do encontro, uma alta montanha cujos morros estendiam seus braços pela úmida e escura charneca lá embaixo, também nós tínhamos assumido – embora estivéssemos sentindo frio e os nossos pés, enfiados num lamaçal marrom, provavelmente estivessem ainda mais frios, embora alguns de nós estivessem agachados, cobertos com impermeáveis, comendo em meio a xícaras e pratos, e outros estivessem fantasticamente bem vestidos, e ninguém com sua melhor cara – tínhamos assumido, ainda assim, certo ar de dignidade. Ou, talvez melhor, tivéssemos abandonado as estreitas marcas e etiquetas da individualidade. Estávamos alinhados em silhueta contra o céu e tínhamos a aparência de estátuas postadas em destaque na crista do mundo. Éramos muito, muito velhos; éramos homens e mulheres do mundo primevo vindos para saudar a aurora. Essa deve ter sido a impressão causada pelos adoradores de Stonehenge em meio a tufos de grama e blocos de pedra. De repente, do carro a motor de algum fidalgo de Yorkshire, saltaram quatro enormes e esguios cães rubros, predadores do mundo antigo, pelo jeito cães de caça, saltitando e cheirando o chão, no rastro de algum veado ou javali. Enquanto isso, o sol nascia. Uma nuvem resplandecia tal como resplandece uma cortina quando a luz aumenta lentamente por detrás. Dela caíam serpentinas douradas em forma de cunha, marcando as árvores no vale verde e nos povoados marrom-azulados. No céu atrás de nós, ilhas brancas nadavam em lagos azul-claros. Era um céu aberto e límpido, mas à nossa frente uma acumulação de neve fofa tinha se formado. Entretanto, enquanto observávamos, víamos que ela se mostrava, aqui e ali, desfeita e rala. O dourado aumentou por um tempo, fazendo a alvura derreter-se e virar uma gaze flamejante que se tornava frágil, cada vez mais frágil, até que, por um instante, vimos o sol em todo o seu esplendor. Então houve uma pausa. Houve um momento de suspense, como o que precede uma corrida. O juiz, com o relógio na mão, contava os segundos. Agora foi dada a partida.
O sol tinha que correr através das nuvens e alcançar a meta, que era uma delicada transparência situada à direita, antes que os sagrados segundos chegassem ao fim. Ele partiu. As nuvens lançavam todo tipo de obstáculos em seu caminho. Elas se obstinavam, elas atrapalhavam. Ele arremetia através delas. Podia-se senti-lo, quando estava invisível, disparando e voando. Sua velocidade era tremenda. Agora estava à vista e vivo; agora, encoberto e sumido. Mas sempre se podia senti-lo voando e avançando através da escuridão em direção à sua meta. Por um segundo, ele emergiu e mostrou-se para nós através de nossos óculos, um sol escavado, um sol crescente. Era prova, talvez, de que estava dando o melhor de si para nosso proveito. Agora fazia o seu último esforço. Agora estava completamente coberto. Os momentos passavam. Todos conferiam seus relógios. Os sagrados vinte e quatro segundos tinham começado. A menos que conseguisse superar as dificuldades antes que o último segundo tivesse terminado, ele perdera. Contudo, podia-se senti-lo rasgando e correndo por trás das nuvens para conseguir passar; mas as nuvens o retinham. Elas se espalhavam; se adensavam; retardavam-no, amorteciam-lhe a velocidade. Dos vinte e quatro segundos restavam apenas cinco, e ele ainda estava obscurecido. E, à medida que os fatais segundos passavam e nos dávamos conta de que o sol estava sendo derrotado, tinha agora, na verdade, perdido a corrida, toda a cor começou a desaparecer da charneca. O azul tornou-se roxo; o branco tornou-se lívido tal como na iminência de uma tempestade violenta mas sem vento. Faces rosadas tornavam-se verdes, e ficou mais frio do que nunca. Era a derrota do sol, e isso era tudo, assim pensamos nós, voltando-nos, desapontados, do inexpressivo lençol de nuvem à nossa frente para as charnecas atrás de nós. Elas estavam lívidas, elas estavam roxas; mas de repente nos demos conta de que algo mais estava prestes a acontecer; algo inesperado, horrível, inevitável. A sombra que se tornava cada vez mais escura por sobre o charco era como o adernamento de um barco, o qual, em vez de se endireitar no momento crítico, inclina-se um pouco mais e depois um pouco mais ainda; e de repente vira. Foi desse jeito que a luz adernou e virou e foi embora. Era o fim. A carne e o sangue do mundo estavam mortos e restava apenas o esqueleto. Ficaram dependurados abaixo de nós, débeis; pardos; mortos; mirrados. Então, com algum movimento minúsculo, essa profunda mesura da luz, essa submissão e esse rebaixamento de todo esplendor chegou ao fim. Lepidamente, no outro lado do mundo ele se ergueu; surgiu como se um movimento, após uma segunda e terrível pausa, completasse o outro e a luz que morrera aqui tivesse se erguido de novo alhures. Nunca houve sensação igual de rejuvenescimento e recuperação. Todas as convalescências e paradas da vida pareciam combinadas numa só. Contudo, no começo tão pálida e débil e estranha, a luz, como um arco-íris, estava toda sarapintada de um disco de cores que era como se a terra jamais pudesse viver enfeitada com tão débeis tons. Pendurava-se atrás de nós, como uma gaiola, como um aro, como um globo de vidro. Podia ser estourada; podia ser extinta. Mas, firme e seguramente, nosso alívio aumentava, e nossa confiança se firmava à medida que o enorme pincel encharcava os escuros bosques do vale e empastava de azul as colinas acima deles. O mundo se tornava cada vez mais sólido; tornava-se populoso; tornava-se um lugar em que um infinito número de fazendas, de vilarejos, de ferrovias encontrava guarida; até que a fábrica inteira da civilização estivesse moldada e modelada. Mas, ainda assim, perdurava a memória de que a terra onde nos alojamos é feita de cor; que a cor pode ser extinta; e então nos assentamos numa folha morta; e nós que agora palmilhamos a terra com segurança a víramos morta.
Mas o olho ainda não nos dispensou. Na busca de alguma lógica própria, que não podemos compreender imediatamente, ele agora nos apresenta uma imagem, ou melhor, uma impressão generalizada de Londres num dia quente de verão, quando, a julgar pela sensação de choque e atropelo, a estação está no seu auge. Levamos um instante para nos dar conta, primeiro, de que estamos em algum jardim público, depois, pelo asfalto e pelos sacos de papel jogados pelo chão, aqueles devem ser os Zoological Gardens, e, depois ainda, sem mais aviso se nos apresentam as efígies completas e perfeitas de dois lagartos. Após a destruição, calma; após a ruína, firmeza – essa talvez seja a lógica do olho. De qualquer modo, um dos lagartos está montado, imóvel, nas costas do outro, com apenas a piscadela de uma pálpebra ou o retraimento de uma ilharga a mostrar que eles são feitos de carne viva, e não de bronze. Toda a paixão humana parece furtiva e febril ao lado desse êxtase estático. O tempo parece ter parado e estamos em presença da imortalidade. O tumulto do mundo desceu de nós como uma nuvem esfarelada. Aquários recortados na uniforme escuridão encerram regiões de imortalidade, mundos de luz solar constante onde não há chuva nem nuvens. Seus habitantes fazem, sem parar, evoluções cuja complexidade, por não ter nenhuma razão, parece ainda mais sublime. Exércitos azuis e prateados, mantendo uma distância perfeita apesar de serem rápidos como flecha, disparam primeiro para um lado, depois para o outro. A disciplina é perfeita, o controle, absoluto; a razão, nenhuma. A mais majestosa das evoluções humanas parece fraca e incerta comparada com a dos peixes. Além disso, cada um desses mundos, que talvez meça um metro por um metro e meio, é tão perfeito em sua ordem quanto em seus métodos. Por florestas, eles têm meia dúzia de bambus; por montanhas, dunas; nas curvas e nas estrias das conchas reside para eles toda a aventura, todo o romantismo. O surgimento de uma bolha, desprezível alhures, é aqui um evento do mais alto feito. A gota prateada abre caminho através da água, subindo uma escadaria em espiral, para estourar contra a lâmina de vidro que parece servir de tampa. Nada existe desnecessariamente. Os próprios peixes parecem ter sido moldados deliberadamente e ter escapulido para o mundo apenas para serem eles mesmos. Não trabalham nem choram. Na sua forma está sua razão. Pois para que outro propósito, a não ser o suficiente de uma perfeita existência, podem eles ter sido assim feitos, alguns tão redondos, outros tão finos, alguns com barbatanas radiantes no dorso, alguns blindados por uma carapaça azul, alguns dotados de garras prodigiosas, alguns escandalosamente orlados com bigodes enormes? Empregou-se mais cuidado com uma meia dúzia de peixes do que com as raças da humanidade. Sob nossas sedas e nossas lãs não há nada exceto a monotonia da rosada nudez. Os poetas não são transparentes até a medula como esses peixes são. Os banqueiros não têm garra alguma. Os próprios reis e rainhas não são dotados de folhos ou franzidos. Em suma, se fôssemos jogados nus num aquário... mas basta. O olho agora se fecha. Ele nos mostrou um mundo morto e um peixe imortal.

* Virginia descreve aqui, poeticamente, sua impressão do eclipse total do sol de 29 de junho de 1927, supostamente visível numa estreita faixa do globo, que incluía o norte da Inglaterra, e previsto para começar às 5 horas e 24 minutos da manhã e durar apenas 24 segundos. Como milhares de outras pessoas naquele país, ela se deslocou, na companhia do marido, Leonard Woolf, de Vita Sackville-West, a inspiradora de Orlando, e de mais quatro amigos, para um local (Richmond, na região de North Yorkshire) onde as condições de visibilidade prometiam ser as melhores. Mas o dia amanheceu encoberto de nuvens carregadas e até chuvoso. Em algumas partes do país, as nuvens simplesmente não se desfizeram durante todo o curto período (24 segundos) em que durou o eclipse, impedindo que o fenômeno fosse observado. No ponto de observação em que Virginia e seu grupo se colocavam, as nuvens, como ela mesmo descreve, deram uma trégua apenas nos 4 ou 5 segundos finais do eclipse, permitindo ao menos uma visão instantânea do eclipse total. É essa a corrida, entre o sol e as nuvens, que Virginia descreve nesta passagem, uma corrida da qual, de maneira paradoxal, o sol, na metáfora da autora, só sairia vencedor se ficasse inteiramente coberto, mas, nesse caso, pela lua e não pelas nuvens.

Virginia Woolf, in O sol e o peixe

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