É
um jogo divertido, especialmente para uma manhã sombria de inverno.
Dizemos para o olho: Atenas; Segesta; rainha Vitória; e esperamos
tão submissamente quanto possível para ver o que acontecerá em
seguida. E é possível que nada aconteça, e é possível que muitas
coisas aconteçam, mas não as coisas que poderíamos esperar. A
velha dama com óculos de aros de tartaruga – nossa falecida rainha
– está bastante vívida; mas, de alguma forma, ela se juntou com
um soldado em Piccadilly que se abaixa para pegar uma moeda; com um
camelo amarelo que passa, gingando, por uma arcada nos Kensington
Gardens; com uma cadeira de cozinha e um distinto e idoso cavalheiro
que abana seu chapéu. Abandonada há anos na mente, a ela se
grudaram todos os tipos de matéria. Quando dizemos rainha Vitória,
desenhamos uma coleção tão heterogênea de objetos que seria
preciso ao menos uma semana para ordená-la. Por outro lado, podemos
dizer para nós mesmos Mont Blanc ao amanhecer; Taj Mahal ao luar; e
a mente continua uma folha em branco. Pois um cenário só sobrevive
na estranha poça em que depositamos nossas memórias se tiver a boa
sorte de se juntar a alguma outra emoção pela qual ela é
preservada. As vistas se casam, incongruentemente, morganaticamente
(como a rainha e o camelo), e se mantêm, assim, mutuamente vivas. O
Mont Blanc, o Taj Mahal, vistas para as quais viajamos e que suamos
para ver, apagam-se e perecem e desaparecem porque não conseguiram
encontrar o par certo. É possível que não vejamos, no nosso leito
de morte, nada mais majestoso do que um gato e uma velha senhora com
uma touca para passear ao sol. As grandes vistas terão morrido por
falta de parceiros.
Assim,
nesta manhã sombria de inverno, quando o mundo real se apagou,
vejamos o que o olho pode fazer por nós. Mostre-me o eclipse*,
dizemos ao olho; vejamos o estranho espetáculo de novo. E
imediatamente vemos – mas o olho da mente apenas por obséquio é
um olho; é um nervo que ouve e cheira, que transmite frio e calor,
que está ligado ao cérebro e estimula a mente a discriminar e a
especular – é apenas por uma questão de brevidade que dizemos que
“vemos” imediatamente uma estação de trem à noite. Uma
multidão está reunida atrás de uma barreira; mas que multidão
curiosa! Trazem impermeáveis pendurados nos braços; nas mãos
carregam maletas. Têm uma aparência provisória, improvisada. Têm
aquela unidade comovente e perturbadora que vem da consciência de
que eles (mas aqui seria mais próprio dizer “nós”) têm um
propósito em comum. Nunca houve propósito mais estranho do que o
que nos juntou naquela noite de junho na estação ferroviária de
Euston. Nós íamos ver a aurora. Trens como os nossos estavam,
naquele exato momento, dando a partida em toda a Inglaterra para ver
a aurora. Todos os narizes apontavam para o norte. Quando, por um
instante, paramos nas profundezas do campo, havia a pálida luz
amarela dos carros a motor também apontando para o norte. Não havia
ninguém dormindo, ninguém parado na Inglaterra naquela noite. Todos
estavam viajando para o norte. Todos estavam pensando na aurora. À
medida que a noite avançava no céu, aquilo que era o objeto de
muitos milhões de pensamentos adquiria substância e importância
maiores que de costume. A consciência da suave e esbranquiçada
abóbada acima de nós ganhava peso à medida que as horas passavam.
Quando, no começo da gélida manhã, viramos numa beira da estrada
em Yorkshire, nossos sentidos estavam orientados de uma maneira
diferente da costumeira. Não estávamos mais em relação apenas com
as pessoas, as casas e as árvores; estávamos em relação com o
mundo inteiro. Viemos não para nos alojar no quarto de uma pousada;
viemos para umas poucas horas de intercurso incorporal com o céu.
Estava
tudo muito pálido. O rio estava pálido e os campos, repletos de
grama e de flores em pendão que deveriam ter sido vermelhas, não
tinham nenhuma cor, mas ficavam ali sussurrando e ondulando em torno
de casas descoloridas. Agora a porta da casa se abria e dela saíam,
para se juntar à procissão, o agricultor e sua família, em suas
roupas domingueiras, limpos, sombrios e silenciosos como se
estivessem subindo a ladeira para ir à igreja; ou, às vezes, as
mulheres simplesmente se inclinavam nos parapeitos das janelas dos
quartos do andar de cima para ver a procissão passar, aparentemente
com divertido desdém – eles percorreram centenas de quilômetros,
e para quê? pareciam dizer elas, em completo silêncio. Tínhamos a
estranha sensação de estar comparecendo a um encontro marcado com
um ator de proporções tão vastas que chegaria silencioso e estaria
em toda parte.
Quando
chegamos ao local do encontro, uma alta montanha cujos morros
estendiam seus braços pela úmida e escura charneca lá embaixo,
também nós tínhamos assumido – embora estivéssemos sentindo
frio e os nossos pés, enfiados num lamaçal marrom, provavelmente
estivessem ainda mais frios, embora alguns de nós estivessem
agachados, cobertos com impermeáveis, comendo em meio a xícaras e
pratos, e outros estivessem fantasticamente bem vestidos, e ninguém
com sua melhor cara – tínhamos assumido, ainda assim, certo ar de
dignidade. Ou, talvez melhor, tivéssemos abandonado as estreitas
marcas e etiquetas da individualidade. Estávamos alinhados em
silhueta contra o céu e tínhamos a aparência de estátuas postadas
em destaque na crista do mundo. Éramos muito, muito velhos; éramos
homens e mulheres do mundo primevo vindos para saudar a aurora. Essa
deve ter sido a impressão causada pelos adoradores de Stonehenge em
meio a tufos de grama e blocos de pedra. De repente, do carro a motor
de algum fidalgo de Yorkshire, saltaram quatro enormes e esguios cães
rubros, predadores do mundo antigo, pelo jeito cães de caça,
saltitando e cheirando o chão, no rastro de algum veado ou javali.
Enquanto isso, o sol nascia. Uma nuvem resplandecia tal como
resplandece uma cortina quando a luz aumenta lentamente por detrás.
Dela caíam serpentinas douradas em forma de cunha, marcando as
árvores no vale verde e nos povoados marrom-azulados. No céu atrás
de nós, ilhas brancas nadavam em lagos azul-claros. Era um céu
aberto e límpido, mas à nossa frente uma acumulação de neve fofa
tinha se formado. Entretanto, enquanto observávamos, víamos que ela
se mostrava, aqui e ali, desfeita e rala. O dourado aumentou por um
tempo, fazendo a alvura derreter-se e virar uma gaze flamejante que
se tornava frágil, cada vez mais frágil, até que, por um instante,
vimos o sol em todo o seu esplendor. Então houve uma pausa. Houve um
momento de suspense, como o que precede uma corrida. O juiz, com o
relógio na mão, contava os segundos. Agora foi dada a partida.
O
sol tinha que correr através das nuvens e alcançar a meta, que era
uma delicada transparência situada à direita, antes que os sagrados
segundos chegassem ao fim. Ele partiu. As nuvens lançavam todo tipo
de obstáculos em seu caminho. Elas se obstinavam, elas atrapalhavam.
Ele arremetia através delas. Podia-se senti-lo, quando estava
invisível, disparando e voando. Sua velocidade era tremenda. Agora
estava à vista e vivo; agora, encoberto e sumido. Mas sempre se
podia senti-lo voando e avançando através da escuridão em direção
à sua meta. Por um segundo, ele emergiu e mostrou-se para nós
através de nossos óculos, um sol escavado, um sol crescente. Era
prova, talvez, de que estava dando o melhor de si para nosso
proveito. Agora fazia o seu último esforço. Agora estava
completamente coberto. Os momentos passavam. Todos conferiam seus
relógios. Os sagrados vinte e quatro segundos tinham começado. A
menos que conseguisse superar as dificuldades antes que o último
segundo tivesse terminado, ele perdera. Contudo, podia-se senti-lo
rasgando e correndo por trás das nuvens para conseguir passar; mas
as nuvens o retinham. Elas se espalhavam; se adensavam;
retardavam-no, amorteciam-lhe a velocidade. Dos vinte e quatro
segundos restavam apenas cinco, e ele ainda estava obscurecido. E, à
medida que os fatais segundos passavam e nos dávamos conta de que o
sol estava sendo derrotado, tinha agora, na verdade, perdido a
corrida, toda a cor começou a desaparecer da charneca. O azul
tornou-se roxo; o branco tornou-se lívido tal como na iminência de
uma tempestade violenta mas sem vento. Faces rosadas tornavam-se
verdes, e ficou mais frio do que nunca. Era a derrota do sol, e isso
era tudo, assim pensamos nós, voltando-nos, desapontados, do
inexpressivo lençol de nuvem à nossa frente para as charnecas atrás
de nós. Elas estavam lívidas, elas estavam roxas; mas de repente
nos demos conta de que algo mais estava prestes a acontecer; algo
inesperado, horrível, inevitável. A sombra que se tornava cada vez
mais escura por sobre o charco era como o adernamento de um barco, o
qual, em vez de se endireitar no momento crítico, inclina-se um
pouco mais e depois um pouco mais ainda; e de repente vira. Foi desse
jeito que a luz adernou e virou e foi embora. Era o fim. A carne e o
sangue do mundo estavam mortos e restava apenas o esqueleto. Ficaram
dependurados abaixo de nós, débeis; pardos; mortos; mirrados.
Então, com algum movimento minúsculo, essa profunda mesura da luz,
essa submissão e esse rebaixamento de todo esplendor chegou ao fim.
Lepidamente, no outro lado do mundo ele se ergueu; surgiu como se um
movimento, após uma segunda e terrível pausa, completasse o outro e
a luz que morrera aqui tivesse se erguido de novo alhures. Nunca
houve sensação igual de rejuvenescimento e recuperação. Todas as
convalescências e paradas da vida pareciam combinadas numa só.
Contudo, no começo tão pálida e débil e estranha, a luz, como um
arco-íris, estava toda sarapintada de um disco de cores que era como
se a terra jamais pudesse viver enfeitada com tão débeis tons.
Pendurava-se atrás de nós, como uma gaiola, como um aro, como um
globo de vidro. Podia ser estourada; podia ser extinta. Mas, firme e
seguramente, nosso alívio aumentava, e nossa confiança se firmava à
medida que o enorme pincel encharcava os escuros bosques do vale e
empastava de azul as colinas acima deles. O mundo se tornava cada vez
mais sólido; tornava-se populoso; tornava-se um lugar em que um
infinito número de fazendas, de vilarejos, de ferrovias encontrava
guarida; até que a fábrica inteira da civilização estivesse
moldada e modelada. Mas, ainda assim, perdurava a memória de que a
terra onde nos alojamos é feita de cor; que a cor pode ser extinta;
e então nos assentamos numa folha morta; e nós que agora
palmilhamos a terra com segurança a víramos morta.
Mas
o olho ainda não nos dispensou. Na busca de alguma lógica própria,
que não podemos compreender imediatamente, ele agora nos apresenta
uma imagem, ou melhor, uma impressão generalizada de Londres num dia
quente de verão, quando, a julgar pela sensação de choque e
atropelo, a estação está no seu auge. Levamos um instante para nos
dar conta, primeiro, de que estamos em algum jardim público, depois,
pelo asfalto e pelos sacos de papel jogados pelo chão, aqueles devem
ser os Zoological Gardens, e, depois ainda, sem mais aviso se nos
apresentam as efígies completas e perfeitas de dois lagartos. Após
a destruição, calma; após a ruína, firmeza – essa talvez seja a
lógica do olho. De qualquer modo, um dos lagartos está montado,
imóvel, nas costas do outro, com apenas a piscadela de uma pálpebra
ou o retraimento de uma ilharga a mostrar que eles são feitos de
carne viva, e não de bronze. Toda a paixão humana parece furtiva e
febril ao lado desse êxtase estático. O tempo parece ter parado e
estamos em presença da imortalidade. O tumulto do mundo desceu de
nós como uma nuvem esfarelada. Aquários recortados na uniforme
escuridão encerram regiões de imortalidade, mundos de luz solar
constante onde não há chuva nem nuvens. Seus habitantes fazem, sem
parar, evoluções cuja complexidade, por não ter nenhuma razão,
parece ainda mais sublime. Exércitos azuis e prateados, mantendo uma
distância perfeita apesar de serem rápidos como flecha, disparam
primeiro para um lado, depois para o outro. A disciplina é perfeita,
o controle, absoluto; a razão, nenhuma. A mais majestosa das
evoluções humanas parece fraca e incerta comparada com a dos
peixes. Além disso, cada um desses mundos, que talvez meça um metro
por um metro e meio, é tão perfeito em sua ordem quanto em seus
métodos. Por florestas, eles têm meia dúzia de bambus; por
montanhas, dunas; nas curvas e nas estrias das conchas reside para
eles toda a aventura, todo o romantismo. O surgimento de uma bolha,
desprezível alhures, é aqui um evento do mais alto feito. A gota
prateada abre caminho através da água, subindo uma escadaria em
espiral, para estourar contra a lâmina de vidro que parece servir de
tampa. Nada existe desnecessariamente. Os próprios peixes parecem
ter sido moldados deliberadamente e ter escapulido para o mundo
apenas para serem eles mesmos. Não trabalham nem choram. Na sua
forma está sua razão. Pois para que outro propósito, a não ser o
suficiente de uma perfeita existência, podem eles ter sido assim
feitos, alguns tão redondos, outros tão finos, alguns com
barbatanas radiantes no dorso, alguns blindados por uma carapaça
azul, alguns dotados de garras prodigiosas, alguns escandalosamente
orlados com bigodes enormes? Empregou-se mais cuidado com uma meia
dúzia de peixes do que com as raças da humanidade. Sob nossas sedas
e nossas lãs não há nada exceto a monotonia da rosada nudez. Os
poetas não são transparentes até a medula como esses peixes são.
Os banqueiros não têm garra alguma. Os próprios reis e rainhas não
são dotados de folhos ou franzidos. Em suma, se fôssemos jogados
nus num aquário... mas basta. O olho agora se fecha. Ele nos mostrou
um mundo morto e um peixe imortal.
*
Virginia descreve aqui, poeticamente, sua impressão do eclipse total
do sol de 29 de junho de 1927, supostamente visível numa estreita
faixa do globo, que incluía o norte da Inglaterra, e previsto para
começar às 5 horas e 24 minutos da manhã e durar apenas 24
segundos. Como milhares de outras pessoas naquele país, ela se
deslocou, na companhia do marido, Leonard Woolf, de Vita
Sackville-West, a inspiradora de Orlando, e de mais quatro amigos,
para um local (Richmond, na região de North Yorkshire) onde as
condições de visibilidade prometiam ser as melhores. Mas o dia
amanheceu encoberto de nuvens carregadas e até chuvoso. Em algumas
partes do país, as nuvens simplesmente não se desfizeram durante
todo o curto período (24 segundos) em que durou o eclipse, impedindo
que o fenômeno fosse observado. No ponto de observação em que
Virginia e seu grupo se colocavam, as nuvens, como ela mesmo
descreve, deram uma trégua apenas nos 4 ou 5 segundos finais do
eclipse, permitindo ao menos uma visão instantânea do eclipse
total. É essa a corrida, entre o sol e as nuvens, que Virginia
descreve nesta passagem, uma corrida da qual, de maneira paradoxal, o
sol, na metáfora da autora, só sairia vencedor se ficasse
inteiramente coberto, mas, nesse caso, pela lua e não pelas nuvens.
Virginia Woolf, in O sol e o peixe
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