N
Madrugada.
Hora em que os fantasmas e as baratas retornam aos seus pagos. Pelo
meu relógio (do enforcado) são exatamente 5 horas, vinte e seis
minutos e trinta segundos. Ou, para ser mais exato, trinta e um.
Agora, trinta e dois.
A
palma da minha mão é uma carta geográfica em que leio o
desencontro de todos os caminhos que palmilhei até aqui, neste mundo
que é um emaranhado de estradas e de rios que não levam a ponto
algum, apesar de tantas tabuletas de Chegada e de Partida e de tantos
portos atravancados de navios. Houve um chinês que disse, resumindo
tudo numa frase de uma clareza meridiana e que no entanto desnorteia
os ingênuos ledores de bússola e seus fiéis discípulos: O caminho
que é um caminho não é o verdadeiro caminho. Eu, quando percebo
que o meu caminho vem assinalado nos manuais de geografia ou nos
tratados de filosofia de vinte shillings, trato logo de desviá-lo
para a esquerda ou para a direita, quando não simplesmente para as
nuvens, tão certa é a minha certeza de que o caminho aberto por
outro não pode guiar meus passos de boêmio errante, como seria
absurdo um leão (por espírito de comodidade) preferir uma picada
aberta na selva pelo explorador, em vez da própria selva que para
ele é um caminho permanente, sem riscos e sem mistérios. Nosso
caminho tem que ser como nosso esquife, único e individual, a menos
naturalmente que prefiramos desintegrar-nos no ar, numa explosão de
misticismo barato e de grande efeito, às barbas de Deus inexistente.
Vendo
o sol que nasce pela vulva da janela entreaberta — ele, de regra
tão orgulhoso, que gosta de nascer do grande mar ou do pico dos
arranha-céus lembro-me de súbito de que passei a noite em claro,
devido aos uivos da louca sob os meus pés, e de que necessito
mudar-me para um hospício mais sossegado, onde os loucos tenham pelo
menos que respeitar o sossego noturno, seja ele de lua cheia ou não.
Para velar o cadáver dos que dormem o sono da inocência basta-me a
minha própria insônia, não necessito de acompanhamento de vozes
estranhas e muito menos de uivos estranhos — eu que também tenho o
meu uivo próprio, como já o provei a mim mesmo numa noite de grande
angústia. A dona desta pensão suspeita deveria ter-me prevenido de
que sua irmã tinha alergia a luas de qualquer espécie, ou quando
menos deveria tê-la obrigado a estudar canto para não azucrinar com
suas desafinações o ouvido dos pensionistas. Uma noite que se perde
sem sono, como esta de hoje, deveria ser descontada do aluguel
mensal, pois não me consta que dormir seja coisa menos importante do
que comer ou do que defecar, coisas que aqui são levadas muito a
sério, com o devido respeito de todos os demais.
Mas
o que vale é que aproveitei esta minha vigília forçada justamente
para pôr em ordem alguns pensamentos que me andavam fora do lugar, e
bem assim criar alguns pensamentos novos, capazes de desentediar-me
pelo menos por uma semana. Isso de criar pensamentos novos é sempre
tarefa muito delicada, porque antibíblica. (Os pensamentos dos
mortais são tímidos, lê-se no falso Livro da Sabedoria) e conheço
o caso de dois sujeitos que, à força de quererem criar pensamentos
novos, acabaram, um no manicômio, e o outro nas estepes da Sibéria,
onde ainda se encontram até hoje. Não há realmente pior forma de
terrorismo do que não aceitar o terrorismo implantado há milênios
pela máquina do Estado — e bem faz essa máquina em triturar sem
piedade os utopistas renitentes e os profetas de novos tempos, como
nos bons tempos da Inquisição fazia a Santa Madre Igreja contra os
que lhe dispensavam a maternidade e preferiam caminhar sobre dois pés
em vez de quatro.
Meus
novos pensamentos, que são de virar o mundo pelo avesso, em que pese
à maldição bíblica, eu não os revelarei aqui pelo preço de duas
patacas, como o faria um Galileu qualquer, amedrontado e pronto a
renegar-se na primeira oportunidade. Vamos deixar que o baile ainda
continue por algum tempo, o baile dos que só sabem dançar ao som de
músicas alheias e devidamente censuradas pela prefeitura; no momento
azado eu subo numa cadeira e, de batuta à mão, ponho os músicos
todos malucos com a partitura que arrancarei do bolso, ainda quente
do calor do meu corpo. Os pares que se danem, que virem ímpares, se
quiserem continuar dançando, ou que se enforquem numa das mil cordas
que porei à sua disposição pelos cantos do salão, com direito a
confessor e tudo. Ao som da minha Cacofonia sem dó — primeiro
trecho lírico em que o sol implacável tomará a si o encargo de
substituir de fond en comble qualquer espécie de dó, como o
faria um Nietzsche que ao mesmo tempo fosse um Wagner — os que
tiverem uma alma se sentirão envergonhados de terem vivido sem ela
até então, e recuperarão a infância num abrir e fechar de olhos:
a infância de antes das primeiras letras, evidentemente. A nova
sarabanda, dançada mais ao som de atabaques do que violinos, acabará
por ser chamada Dança Macabra, como lhe convém, e se algum
precursor lhe pode ser apontado será sem dúvida o autor da dança
de são Guido, o coreógrafo de minha predileção. Dança e motivo
musical farão um quadro dissonante único, como nas velhas gravuras
de Callot, e sob a égide da minha Cacofonia Anti-Sinfônica os
miasmas da estupidez tenderão a desaparecer a pouco e pouco da face
da terra, substituídos pelo cheiro do absinto e do esperma, que
darão o tom da nova primavera.
(Uma
furtiva lágrima. Mais outra. Mais outra.)
Mas
tudo isso são desvarios de um espírito tresnoitado, dirão meus
inimigos eternos, que vivem dentro e fora de mim — e bastará que
você calce os sapatos para que a realidade volte a funcionar sob os
seus pés, a dura e feia realidade de todos os dias, inclusive
feriados e dias santos. É bem possível que assim seja, respondo
calado, e por isso mesmo tratarei de não pôr os sapatos tão cedo,
e se preciso não os porei nunca mais, a fim de pousar sobre os meus
próprios alicerces e ter os sonhos que quiser ter, e que para mim
serão certezas. O mundo se divide em duas partes bem definidas: eu e
o resto do mundo, e a minha defesa está justamente nos meus sonhos,
ou desvarios como queiram, em cujas asas voo a alturas que vocês
nunca atingirão de foguete, e de onde avisto as cúpulas dos
edifícios como se fossem cabeças de alfinetes, como o são
realmente. Se não posso mudar o mundo, tampouco permitirei que o
mundo me mude a mim, arrancando-me esse câncer de mistérios e
heresias que é toda a minha riqueza e que faz com que minha voz não
seja apenas o grunhido de um porco, nem meu olhar apenas o olhar de
um peixe dentro do aquário. Aos mil professores que tentaram
deseducar-me respondo-lhes com um piparote no cocuruto, exatamente
como fiz ao médico que não soube descobrir a causa do meu pranto, e
a toda a sua ciência oficial e cheirando a naftalina eu oponho a
onisciência do meu instinto indomável e sem máscara, mesmo porque
não existe (que eu saiba) nenhuma máscara de mil faces. Aos que me
chamem de bárbaro eu lhes respondo com uma barbaridade de légua e
meia, e lanço-lhes à face o epíteto de sifilizados de que eles
tanto parecem orgulhar-se, eles e seus antepassados barões, condes e
arcebispos.
Agora
é dia claro, embora tudo continue escuro como dantes, apesar de meus
novos pensamentos que me fazem fosforescente e ígneo. Quanto mais
claro eu me torno por dentro, mais obscuro se torna o mundo e o dia
dentro dele — descubro-o agora. É por isso que os moribundos se
tornam quase translúcidos em sua onividência, minutos antes de
morrerem: eles são um foco de luz dentro do mundo opaco. E eu sou
moribundo cada vez mais convicto da sua morte, queira-o ou não.
Saudemos
o dia com um pranto espesso, com os gemidos da louca como música de
fundo.
Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia
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