domingo, 9 de abril de 2023

A Lua Vem da Ásia | Cosmogonia

N

Madrugada. Hora em que os fantasmas e as baratas retornam aos seus pagos. Pelo meu relógio (do enforcado) são exatamente 5 horas, vinte e seis minutos e trinta segundos. Ou, para ser mais exato, trinta e um. Agora, trinta e dois.
A palma da minha mão é uma carta geográfica em que leio o desencontro de todos os caminhos que palmilhei até aqui, neste mundo que é um emaranhado de estradas e de rios que não levam a ponto algum, apesar de tantas tabuletas de Chegada e de Partida e de tantos portos atravancados de navios. Houve um chinês que disse, resumindo tudo numa frase de uma clareza meridiana e que no entanto desnorteia os ingênuos ledores de bússola e seus fiéis discípulos: O caminho que é um caminho não é o verdadeiro caminho. Eu, quando percebo que o meu caminho vem assinalado nos manuais de geografia ou nos tratados de filosofia de vinte shillings, trato logo de desviá-lo para a esquerda ou para a direita, quando não simplesmente para as nuvens, tão certa é a minha certeza de que o caminho aberto por outro não pode guiar meus passos de boêmio errante, como seria absurdo um leão (por espírito de comodidade) preferir uma picada aberta na selva pelo explorador, em vez da própria selva que para ele é um caminho permanente, sem riscos e sem mistérios. Nosso caminho tem que ser como nosso esquife, único e individual, a menos naturalmente que prefiramos desintegrar-nos no ar, numa explosão de misticismo barato e de grande efeito, às barbas de Deus inexistente.
Vendo o sol que nasce pela vulva da janela entreaberta — ele, de regra tão orgulhoso, que gosta de nascer do grande mar ou do pico dos arranha-céus lembro-me de súbito de que passei a noite em claro, devido aos uivos da louca sob os meus pés, e de que necessito mudar-me para um hospício mais sossegado, onde os loucos tenham pelo menos que respeitar o sossego noturno, seja ele de lua cheia ou não. Para velar o cadáver dos que dormem o sono da inocência basta-me a minha própria insônia, não necessito de acompanhamento de vozes estranhas e muito menos de uivos estranhos — eu que também tenho o meu uivo próprio, como já o provei a mim mesmo numa noite de grande angústia. A dona desta pensão suspeita deveria ter-me prevenido de que sua irmã tinha alergia a luas de qualquer espécie, ou quando menos deveria tê-la obrigado a estudar canto para não azucrinar com suas desafinações o ouvido dos pensionistas. Uma noite que se perde sem sono, como esta de hoje, deveria ser descontada do aluguel mensal, pois não me consta que dormir seja coisa menos importante do que comer ou do que defecar, coisas que aqui são levadas muito a sério, com o devido respeito de todos os demais.
Mas o que vale é que aproveitei esta minha vigília forçada justamente para pôr em ordem alguns pensamentos que me andavam fora do lugar, e bem assim criar alguns pensamentos novos, capazes de desentediar-me pelo menos por uma semana. Isso de criar pensamentos novos é sempre tarefa muito delicada, porque antibíblica. (Os pensamentos dos mortais são tímidos, lê-se no falso Livro da Sabedoria) e conheço o caso de dois sujeitos que, à força de quererem criar pensamentos novos, acabaram, um no manicômio, e o outro nas estepes da Sibéria, onde ainda se encontram até hoje. Não há realmente pior forma de terrorismo do que não aceitar o terrorismo implantado há milênios pela máquina do Estado — e bem faz essa máquina em triturar sem piedade os utopistas renitentes e os profetas de novos tempos, como nos bons tempos da Inquisição fazia a Santa Madre Igreja contra os que lhe dispensavam a maternidade e preferiam caminhar sobre dois pés em vez de quatro.
Meus novos pensamentos, que são de virar o mundo pelo avesso, em que pese à maldição bíblica, eu não os revelarei aqui pelo preço de duas patacas, como o faria um Galileu qualquer, amedrontado e pronto a renegar-se na primeira oportunidade. Vamos deixar que o baile ainda continue por algum tempo, o baile dos que só sabem dançar ao som de músicas alheias e devidamente censuradas pela prefeitura; no momento azado eu subo numa cadeira e, de batuta à mão, ponho os músicos todos malucos com a partitura que arrancarei do bolso, ainda quente do calor do meu corpo. Os pares que se danem, que virem ímpares, se quiserem continuar dançando, ou que se enforquem numa das mil cordas que porei à sua disposição pelos cantos do salão, com direito a confessor e tudo. Ao som da minha Cacofonia sem dó — primeiro trecho lírico em que o sol implacável tomará a si o encargo de substituir de fond en comble qualquer espécie de dó, como o faria um Nietzsche que ao mesmo tempo fosse um Wagner — os que tiverem uma alma se sentirão envergonhados de terem vivido sem ela até então, e recuperarão a infância num abrir e fechar de olhos: a infância de antes das primeiras letras, evidentemente. A nova sarabanda, dançada mais ao som de atabaques do que violinos, acabará por ser chamada Dança Macabra, como lhe convém, e se algum precursor lhe pode ser apontado será sem dúvida o autor da dança de são Guido, o coreógrafo de minha predileção. Dança e motivo musical farão um quadro dissonante único, como nas velhas gravuras de Callot, e sob a égide da minha Cacofonia Anti-Sinfônica os miasmas da estupidez tenderão a desaparecer a pouco e pouco da face da terra, substituídos pelo cheiro do absinto e do esperma, que darão o tom da nova primavera.

(Uma furtiva lágrima. Mais outra. Mais outra.)

Mas tudo isso são desvarios de um espírito tresnoitado, dirão meus inimigos eternos, que vivem dentro e fora de mim — e bastará que você calce os sapatos para que a realidade volte a funcionar sob os seus pés, a dura e feia realidade de todos os dias, inclusive feriados e dias santos. É bem possível que assim seja, respondo calado, e por isso mesmo tratarei de não pôr os sapatos tão cedo, e se preciso não os porei nunca mais, a fim de pousar sobre os meus próprios alicerces e ter os sonhos que quiser ter, e que para mim serão certezas. O mundo se divide em duas partes bem definidas: eu e o resto do mundo, e a minha defesa está justamente nos meus sonhos, ou desvarios como queiram, em cujas asas voo a alturas que vocês nunca atingirão de foguete, e de onde avisto as cúpulas dos edifícios como se fossem cabeças de alfinetes, como o são realmente. Se não posso mudar o mundo, tampouco permitirei que o mundo me mude a mim, arrancando-me esse câncer de mistérios e heresias que é toda a minha riqueza e que faz com que minha voz não seja apenas o grunhido de um porco, nem meu olhar apenas o olhar de um peixe dentro do aquário. Aos mil professores que tentaram deseducar-me respondo-lhes com um piparote no cocuruto, exatamente como fiz ao médico que não soube descobrir a causa do meu pranto, e a toda a sua ciência oficial e cheirando a naftalina eu oponho a onisciência do meu instinto indomável e sem máscara, mesmo porque não existe (que eu saiba) nenhuma máscara de mil faces. Aos que me chamem de bárbaro eu lhes respondo com uma barbaridade de légua e meia, e lanço-lhes à face o epíteto de sifilizados de que eles tanto parecem orgulhar-se, eles e seus antepassados barões, condes e arcebispos.
Agora é dia claro, embora tudo continue escuro como dantes, apesar de meus novos pensamentos que me fazem fosforescente e ígneo. Quanto mais claro eu me torno por dentro, mais obscuro se torna o mundo e o dia dentro dele — descubro-o agora. É por isso que os moribundos se tornam quase translúcidos em sua onividência, minutos antes de morrerem: eles são um foco de luz dentro do mundo opaco. E eu sou moribundo cada vez mais convicto da sua morte, queira-o ou não.
Saudemos o dia com um pranto espesso, com os gemidos da louca como música de fundo.

Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia

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