quinta-feira, 27 de abril de 2023

O homem que escutava as abelhas | Capítulo 2

 

[...]
Pela manhã, o muezim clamou para casas vazias, para que fossem rezar. Saí para tentar achar um pouco de farinha e ovos, antes que o pão acabasse. Arrastei os pés na poeira. Estava muito grossa, era como caminhar na neve. Havia carros incendiados, varais de roupas sujas penduradas em terraços abandonados, fios elétricos balançando baixo nas ruas, lojas bombardeadas, prédios de apartamentos com os telhados explodidos, pilhas de lixo nas ruas. Tudo fedia a morte e borracha queimada. Ao longe, subia uma fumaça, espiralando para o céu. Senti a boca seca, as mãos cerradas e trêmulas, encurralado por aquelas ruas distorcidas. Na terra além, as aldeias estavam queimadas, pessoas jorrando como um rio para ir embora, as mulheres apavoradas porque os paramilitares estavam à solta, e elas temiam ser estupradas. Mas ali, ao meu lado, havia uma roseira damascena totalmente florida. Quando fechei os olhos e senti o perfume, pude fingir, por um instante, não ter visto as coisas que tinha visto.
Ao erguer os olhos do chão, vi que tinha chegado a um posto de controle. Dois soldados achavam-se no meu caminho. Os dois portavam metralhadoras. Um deles usava um keffiyeh xadrez. O outro pegou uma arma na traseira de um caminhão e empurrou-a contra o meu peito.
Pegue – o homem disse.
Tentei imitar o rosto da minha mulher. Não queria demonstrar qualquer emoção. Eles me devorariam por isto. O homem empurrou a arma com mais força contra o meu peito, e eu tropecei, caindo de encontro ao cascalho.
Ele jogou a arma no chão, e olhei para cima, vendo os dois homens em pé sobre mim, e agora o homem com o keffiyeh apontava a arma para o meu peito. Não consegui manter a calma, e pude me ouvir implorando pela minha vida, humilhando-me com os joelhos na terra.
Por favor – eu dizia –, não é que eu não queira. Sentiria orgulho, seria o homem mais orgulhoso do mundo em pegar aquela arma em seu nome, mas minha esposa está doente, gravemente doente, e precisa de mim para cuidar dela. – Mesmo enquanto eu dizia isto, não achava que eles se incomodariam. Por que deveriam? Crianças morriam a cada minuto. Por que eles se preocupariam com minha esposa doente?
Sou forte – eu disse – e inteligente. Trabalharei duro para vocês. Só preciso de alguns dias. É só o que peço.
O outro homem tocou no ombro do homem com o keffiyeh, e ele abaixou a arma.
Da próxima vez em que a gente te vir – disse o outro homem – ou você pega uma arma e fica do nosso lado, ou procure alguém para levar o seu corpo.
Decidi ir direto para casa. Enquanto andava, percebia uma sombra atrás de mim, e não tinha certeza se estava sendo seguido, ou se era a minha mente me pregando peças. Ficava imaginando uma figura encapotada, do tipo que aparece nos pesadelos infantis, pairando sobre a poeira atrás de mim. Mas quando eu me virava, não havia ninguém.
Cheguei em casa e Afra estava sentada na cama de armar, com as costas contra a parede, de frente para a janela, segurando a romã, girando-a, sentindo sua carne. Aguçou os ouvidos quando entrei, mas antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, andei pela casa procurando uma mala, enchendo-a de coisas.
O que está acontecendo? – Seus olhos perscrutando a escuridão.
Vamos embora.
Não.
Se eu ficar, eles me matam.
Eu estava na cozinha, enchendo garrafas de plástico com água da torneira. Embalei uma muda extra de roupas para cada um de nós. Depois, busquei debaixo da cama os passaportes e o dinheiro guardado. Afra não tinha conhecimento dele. Era o dinheiro que Mustafá e eu tínhamos conseguido separar, antes de o negócio fracassar, e eu também tinha um pouco numa conta particular, que eu esperava ainda poder acessar depois que partíssemos. Ela dizia alguma coisa do outro cômodo. Palavras de protesto. Também embalei o passaporte de Sami; não conseguiria deixá-lo aqui. Depois, voltei para a sala com nossas malas.
Fui parado pelo exército. Eles puseram uma arma no meu peito – eu disse.
Você está mentindo. Por que isto nunca aconteceu antes?
Vai ver que antes ainda havia homens mais jovens por aqui. Eles não me notavam. Não tinham motivo para isso. Nós somos os únicos idiotas que sobraram.
Eu não vou.
Eles vão me matar.
Que seja.
Eu disse a eles que precisava de alguns dias para cuidar de você. Eles concordaram em me dar só alguns dias. Se me virem de novo e eu não me juntar a eles, vão me matar. Disseram que eu deveria arrumar alguém para levar o meu corpo.
Quando eu disse isto, seus olhos arregalaram-se e houve um medo súbito em seu rosto, um medo real. Perante a ideia de me perder, talvez pensando no meu cadáver, ela criou vida e levantou-se. Apalpou o caminho pelo corredor e eu fui atrás, sem fôlego, e então ela se deitou na cama e fechou os olhos. Tentei argumentar com ela, mas ela ficou ali deitada como um gato morto, com seu abaya preto e o hijab preto, e aquele rosto pétreo que eu agora desprezava.
Sentei-me na cama de Sami e olhei pela janela; vi o céu cinzento, um cinza metálico, e não havia passarinhos. Fiquei ali o dia todo, a noite toda, até ser engolido pela escuridão. Lembrei-me de como as abelhas operárias viajavam para encontrar novas flores e néctar, e depois voltavam para contar às outras abelhas. A abelha sacudia o corpo, o ângulo da sua dança em relação ao favo contava às outras abelhas a direção das flores em relação ao sol. Desejei que houvesse alguém para me guiar, para me dizer o que fazer e que caminho seguir, mas me senti completamente só.
Pouco antes da meia-noite, deitei-me ao lado de Afra. Ela não tinha se movido um centímetro. Eu tinha a fotografia e a carta debaixo do meu travesseiro. E dessa vez, quando acordei no meio da noite, vi que ela estava de frente para mim, sussurrando meu nome.
O quê? – perguntei.
Escute.
Na frente da casa, passos e vozes masculinas, depois uma risada, uma risada do fundo da garganta.
O que eles estão fazendo? – ela perguntou.
Saí da cama e fui em silêncio até o lado dela, peguei na sua mão ajudando-a a se levantar, levando-a até e porta dos fundos e para o jardim. Ela seguiu sem fazer perguntas, sem hesitação. Bati o pé no chão para encontrar o telhado de metal, depois o deslizei para o lado e ajudei-a a se sentar ao lado da abertura, com as pernas sobre a beirada, de modo a eu poder entrar primeiro e descê-la. Em seguida, puxei o telhado sobre nós.
Nossos pés afundaram em centímetros de água, cheia de lagartos e insetos que tinham feito do espaço sua casa. Eu tinha cavado aquele esconderijo no ano anterior. Afra passou os braços à minha volta e afundou o rosto na curva do meu pescoço. Ficamos assim no escuro, os dois cegos então, naquela cova feita para dois. No silêncio absoluto, o único som restante na terra era a sua respiração. E talvez ela estivesse certa. Talvez devêssemos ter morrido assim, e ninguém precisaria pegar os nossos corpos. Então uma criatura mexeu-se por lá, junto à minha orelha esquerda, e acima de nós, e do lado de fora coisas moveram-se, quebraram-se e estalaram. Agora, os homens deviam ter entrado na casa. Eu podia senti-la tremendo contra mim.
Sabe de uma coisa, Afra? – eu disse.
O quê?
Preciso peidar.
Houve um segundo de silêncio, e então ela começou a rir. Riu e riu junto ao meu pescoço. Foi uma risada silenciosa, mas todo o seu corpo sacudiu-se com ela, e apertei-a mais contra mim, pensando que sua risada era a coisa mais linda que restava na terra. Mas por um instante não consegui dizer, de fato, se ela ainda estava rindo ou se tinha começado a chorar, até sentir meu pescoço molhado de lágrimas. E então sua respiração suavizou-se e ela adormeceu, como se aquele buraco negro fosse o único lugar onde se sentisse segura. Onde a escuridão interior encontrava a escuridão exterior.
Por um tempinho, eu soube o que significava estar cego. E então, as lembranças afloraram, como sonhos, muito ricas em cores. A vida antes da guerra. Afra num vestido verde, segurando Sami pela mão; ele tinha acabado de começar a andar e bamboleava ao lado dela, apontando para um avião que cruzava o frio céu azul. Estávamos indo para algum lugar. Era verão, e ela caminhava na frente, com suas irmãs. Ola usava amarelo. Zeinah, rosa. Zeinah agitava as mãos em volta, enquanto falava, como era seu costume. As outras duas disseram “Oh!”, em uníssono em reação a algo que ela dizia. Havia um homem ao meu lado, meu tio. Pude ver sua bengala, escutar seu tum-tum-tum no cimento. Ele me contava sobre seu trabalho; tinha um café na Velha Damasco, e queria se aposentar agora, mas o filho não queria assumir o negócio, rapaz preguiçoso e ingrato...
Naquele momento, Afra ergueu Sami até o quadril, depois se virou para trás e sorriu, e seus olhos captaram a luz e viraram água. E então, tudo desvaneceu. Onde estavam todas aquelas pessoas, agora?
Pisquei no escuro. Estava impenetrável. Afra suspirou em seu sono. Perguntei a mim mesmo se deveria quebrar seu pescoço, acabar com a sua desgraça, dar-lhe a paz que ela queria. O túmulo de Sami estava nesse jardim. Ela ficaria perto dele. Não precisaria deixá-lo. Ela deixaria de se torturar.
Nuri – ela disse.
Hã?
Eu te amo.
Não respondi, e suas palavras tornaram-se parte da escuridão, deixei que penetrassem no solo, na terra alagada.
Eles vão nos matar? – ela perguntou, com um leve tremor na voz.
Você está com medo.
Não. Estamos muito perto disso, agora.
Então, ouviram-se passos bem próximos, e as vozes ficaram mais altas.
Eu falei para você – um homem disse –, eu falei para não deixar ele ir.
Prendi a respiração e abracei-a com força para ela não se mexer. Pensei em cobrir sua boca com a mão. Não confiava que ela não falaria, não gritaria. Agora era sua escolha: viver ou morrer. Acima, houve movimento, confusão, resmungos, e então, finalmente, os passos afastaram-se. Só depois que Afra soltou a respiração foi que percebi que ela ainda tinha um instinto de vida.
Tinha amanhecido, quando decidi que os homens deviam ter ido embora, fazia algumas horas que não se ouvia um som, e a luz infiltrava-se pelas beiradas do teto de metal, iluminando paredes enlameadas. Abri o telhado e vi o céu, amplo e incólume, o azul de sonhos. Afra estava acordada mas em silêncio, perdida em seu mundo escuro.
Quando entramos em casa, desejei também ser cego. A sala de visitas estava destruída, e as paredes cobertas de grafites. Vencemos ou morremos.
Nuri?
Não respondi.
Nuri... O que eles fizeram?
Vi-a parada em meio às coisas quebradas, uma figura fantasmagórica e escura, ereta, imóvel e cega.
Mas permaneci em silêncio e ela deu um passo à frente, ajoelhou-se, tateando com as mãos. Do chão, pegou um enfeite quebrado: um pássaro de cristal com as palavras 99 nomes para Alá inscritas em ouro numa asa aberta. Presente de casamento da avó. Girou-o nas mãos, como tinha feito com a romã, sentindo suas linhas, suas curvas. Depois, baixinho, como se fosse a voz de uma criança ressuscitada de anos atrás, começou a recitar a lista gravada em sua mente:
O que estabelece a ordem, o conquistador, o que tudo sabe, o que tudo vê, o que tudo cura, o doador da vida, o tomador da vida…
Afra! – eu disse.
Ela pousou o enfeite e inclinou-se à frente, tateando o espaço adiante com os dedos. Então, pegou um carrinho de brinquedo. Eu tinha guardado todos em um armário, algumas semanas depois da morte de Sami. Agora, não tolerava olhar para eles, quebrados e espalhados pelo chão. Havia até um pote de chocolate ali espalhado, a guloseima preferida de Sami, rolando para longe de Afra, e parando ao pé da cadeira. A essa altura devia estar embolorado, mas eu o tinha guardado no armário, junto com todas as coisas que me lembravam ele. Ao perceber que tinha um carrinho de brinquedo na mão, Afra largou-o imediatamente, e virou a cabeça para mim, conseguindo, de algum modo, encarar meus olhos com os dela.
Vou-me embora – eu disse –, quer você venha ou não.
Deixei-a ali e fui buscar nossas malas. Achei-as no quarto, intocadas, pendurei-as nos ombros e voltei para a sala, encontrando-a em pé, no meio do cômodo. Em suas mãos abertas, ela tinha peças coloridas de Lego, remanescentes de uma casa construída por Sami, a casa em que viveríamos ao chegarmos à Inglaterra, ele havia dito, depois de concordar que seria bom ir.
Lá não vai ter bombas – ele havia dito –, e as casas não vão se quebrar, como acontece com estas.
Eu não tinha certeza se ele estava se referindo às casas de Lego ou às casas de verdade, e fiquei triste ao perceber que Sami tinha nascido num mundo onde tudo poderia se quebrar. Casas de verdade desmoronavam, desintegravam-se. Nada era sólido no mundo de Sami. E mesmo assim, de algum modo ele tentava imaginar um lugar onde as construções não caíam a sua volta. Eu tinha guardado a casa de Lego a salvo, no armário, com cuidado, para ter certeza de que estava exatamente como Sami a havia deixado. Até pensei em desmontá-la e remontá-la com cola, para podermos guardá-la para sempre.
Nuri – Afra disse, rompendo o silêncio. – Para mim basta. Por favor, leve-me embora daqui.
E ela ficou ali, com os olhos movendo-se pela sala, como se pudesse ver tudo.

Christy Lefteri, in O homem que escutava as abelhas

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