sexta-feira, 21 de abril de 2023

O fotógrafo e o fedido

Talvez eu fale apenas por mim, o que seria delicioso e me daria ares de exclusividade psíquica, mas duvido: infelizmente pertenço a um grupo gigantesco e universalmente parecido chamado “fêmeas”. E fêmeas preferem personagens a homens. Homens são “rabisca umas coisas”, diretores da firma, desempregados. Personagens são “o artista incompreendido”, “aquele diretor fodão” e “ele está escrevendo um livro há mais de dez anos”. Eu transo com a parte do meu cérebro que desce até as partes do meu corpo que transam, e nunca com homem nenhum.
O problema é que o fotógrafo do momento não estava num bom dia. Ele se recuperava de um “final de dengue” e de um “fim de relacionamento que já tinha acabado mas fim é sempre ruim”. E me avisou, talvez motivado pela minha sinceridade seca e um tanto cruel: “talvez eu broche”. Eu estava numa fase “pilates quatro vezes por semana” e fazendo muito bonito enquanto nua e não fiquei nem um pouco achando que o problema estava em mim. Talvez, claro, se eu tivesse feito a dança do “pavão dadeiro porém sutil vem me conquistar mas vou fazer de conta que não quero”, ele tivesse conseguido. Mas francamente? Não estava com saco para o teatrinho do encaixe carnal. Até ia ficar ali imersa dois dias numa química cravejada de falsos diamantes chamada “algum sentimento”, mas encantamento é um brigadeirinho enviado por Deus junto com um café frio.
E eu tinha decidido que naquela semana faria sexo. Queria transar para o bate-estaca da minha cabeça parar. Sempre achei que morder o osso da bacia de um homem bravo me dava motivo para mais uma semana sem nenhum remédio. Porque pensar demais era como roer tanto a unha que uma hora já se estaria roendo o cotovelo, mas não se podia mais parar porque a unha ainda estava intacta. Coisa que o remédio que eu guardava no baleiro na entrada de casa ou na caixinha de joias ao lado da cama resolveria. Mas, se essa lama toda me deixa mais tarada, por que não aproveitar a única coisa boa dessa lama toda?
O fotógrafo do momento tentou muito. Disse que também estava tomando remédios, por conta de “umas vontades estranhas de morrer”. Que era “coisa pesada” e um deles se chamava Tegretol. O outro, Leponex. Tegretol me lembrou um tigre em formol. Aquele homem já devia ter sido um guepardo na cama (a gente sabe que um homem trepa bem pelo cheiro da barba dele, está tudo ali), mas agora, tadinho, foi colocado num vidrinho de laboratório de quarta série para as criancinhas o observarem como a um natimorto.
Depois descobri, porque perguntei ao meu psiquiatra, que Leponex é remédio para esquizofrênico. Talvez a gente nunca tenha ido àquela festa, talvez a gente nunca tenha se conhecido. Em algum lugar sempre está tudo bem.
Mas, porque estava sem sexo havia muitos meses e porque tinha parado o Escitalopram semanas antes e porque precisava dar fim ao bate-estaca da minha cabeça, eu decidi que faria sexo naquela festa. E então pirei num garoto muito alto, muito hipster e muito soberbo. Achei também que ele pudesse me abater e o escolhi. Ele estava um pouco fedido, mas tratava-se de um fedor “brava testosterona de um dia inteiro na rua e já são quatro da manhã”, e não exatamente de um cheiro ruim.
O mundo segue andando, suando, escarrando. Enquanto eu me resguardo numa maldade higiênica até que. Enquanto eu me resguardo na solidão desinfetada até que. No interior dessas bolhas macabras cheias de regras maníacas até que. Sentir tesão é a única liberdade possível para quem é viciado em listas e Protex.
Ele sumiu e voltou com um pelo loiro grudado no suor da testa. Seu pulso fedia a carne moída com almíscar. Ele colocou a música que dilacerava meu coração e só foi capaz de aumentar o som.
Pode mandar em mim”, pensei, quando me senti correndo bem rápido da minha gaiola. Ou ratoeira, nunca sei. Sempre que ser bicho vem, é tão novo que não sei encaixar as coerências. Me lanço inteira na ponta do meu indicador que se enfia em sua orelha. Vou até ele e esfrego o osso da minha bacia. “Quem é você?”, ele diz, misturando raiva com delicadeza. Vou até ele e faço para cima e para baixo com a mão, por cima da calça.
Me derramar em cima de você não é ignorar as estratégias antigas e óbvias de sedução. É só porque realmente não cabe. Não tenho espaço suficiente dentro dos ossos para a espiral que você faz com a minha atenção. Vou entrando, aos poucos e continuamente, dentro dos seus olhos e boca e orelhas e nariz. Você me faria ir de ônibus até o Japão sem Rivotril e esse é o melhor elogio que eu poderia fazer a um homem que, por enquanto, só me olha e diz que também tem medo de ficar louco. Tudo porque seus buracos me chamam como se eu pudesse me esconder em você sem levar minha cabeça junto.
Estou livre, só por hoje, das listas mentais de tudo o que precisa estar certo e limpo e enquadrado. Eu que não bebo porque não gosto e porque não quero, misturo cerveja com vinho. Como maionese com sangue com manteiga com saliva de alguém que me devolve um copo que nem era meu. Chupo o restinho de batom numa bituca empretecida. Completamente desprovida de “regras para um sábado”, experimento a tarde como se enfim pertencesse ao grupo de jovens normais que curtem porque assim é que se faz e ponto final.

Hoje não, martelo. Um dia sem repensar inúmeras vezes todas as coisas que ainda nem pensei. Eu tinha esquecido, com dois anos de antidepressivo, como é maravilhoso sentir eretos os cabelos menores do couro cabeludo. Sentir a febre atrás das coxas. Sentir a língua secar na raiz da língua. Sentir a planta do pé latejar. Controlar meus enormes e óbvios e expostos dentes. A dificuldade que é me manter moça apesar de descompensada e compulsiva. A angústia que é querer comer o mundo com uma fresta. O pavor de que não entendam e diminuam a beleza desse momento e, ao mesmo tempo, a total incapacidade em julgar a opinião dos outros mais importante do que sentir tudo isso.
Tem uma coisa que parece fome e que faz a gente sair pras ruas. Animais eretos e perfumados. Camadas de cabelo, camadas de roupa, camadas de salto, camadas de não. Tudo resguardando uma ânsia que nunca se sabe exatamente se é de pôr para dentro ou se é de pôr para fora. Daí a gente pede salada e fica cheia. Daí a gente perfila centenas de bolinhas de miolos de pão e segue vazia. E nada disso tem a ver com essa fome. Daí a gente segura firme o braço de uma pessoa.
Mas existem ainda esses momentos em que o oxigênio entra tão branco e gelado e de longe, que notamos, não sem saudade, quão medíocre e quente é nossa falsa segurança. Tenho agora um pelo na garganta, me fazendo tossir e achar graça. O pelo dele? O pelo loiro? Meu pelo? Estou rindo e tossindo desde as nove da manhã. Não tenho vontade de cuspir o pelo, de tomar banho, de separar os nós do cabelo, de tirar o disco do Caetano. Porque minha preguiça suja, a voz do Caetano e o ar que ainda guarda bem de leve o seu cheiro são os segundos finais do nosso encontro. É por causa de pessoas assim que eu não troco a tristeza da minha vida por nada.

Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu

Nenhum comentário:

Postar um comentário