Talvez
eu fale apenas por mim, o que seria delicioso e me daria ares de
exclusividade psíquica, mas duvido: infelizmente pertenço a um
grupo gigantesco e universalmente parecido chamado “fêmeas”. E
fêmeas preferem personagens a homens. Homens são “rabisca umas
coisas”, diretores da firma, desempregados. Personagens são “o
artista incompreendido”, “aquele diretor fodão” e “ele está
escrevendo um livro há mais de dez anos”. Eu transo com a parte do
meu cérebro que desce até as partes do meu corpo que transam, e
nunca com homem nenhum.
O
problema é que o fotógrafo do momento não estava num bom dia. Ele
se recuperava de um “final de dengue” e de um “fim de
relacionamento que já tinha acabado mas fim é sempre ruim”. E me
avisou, talvez motivado pela minha sinceridade seca e um tanto cruel:
“talvez eu broche”. Eu estava numa fase “pilates quatro vezes
por semana” e fazendo muito bonito enquanto nua e não fiquei nem
um pouco achando que o problema estava em mim. Talvez, claro, se eu
tivesse feito a dança do “pavão dadeiro porém sutil vem me
conquistar mas vou fazer de conta que não quero”, ele tivesse
conseguido. Mas francamente? Não estava com saco para o teatrinho do
encaixe carnal. Até ia ficar ali imersa dois dias numa química
cravejada de falsos diamantes chamada “algum sentimento”, mas
encantamento é um brigadeirinho enviado por Deus junto com um café
frio.
E
eu tinha decidido que naquela semana faria sexo. Queria transar para
o bate-estaca da minha cabeça parar. Sempre achei que morder o osso
da bacia de um homem bravo me dava motivo para mais uma semana sem
nenhum remédio. Porque pensar demais era como roer tanto a unha que
uma hora já se estaria roendo o cotovelo, mas não se podia mais
parar porque a unha ainda estava intacta. Coisa que o remédio que eu
guardava no baleiro na entrada de casa ou na caixinha de joias ao
lado da cama resolveria. Mas, se essa lama toda me deixa mais tarada,
por que não aproveitar a única coisa boa dessa lama toda?
O
fotógrafo do momento tentou muito. Disse que também estava tomando
remédios, por conta de “umas vontades estranhas de morrer”. Que
era “coisa pesada” e um deles se chamava Tegretol. O outro,
Leponex. Tegretol me lembrou um tigre em formol. Aquele homem já
devia ter sido um guepardo na cama (a gente sabe que um homem trepa
bem pelo cheiro da barba dele, está tudo ali), mas agora, tadinho,
foi colocado num vidrinho de laboratório de quarta série para as
criancinhas o observarem como a um natimorto.
Depois
descobri, porque perguntei ao meu psiquiatra, que Leponex é remédio
para esquizofrênico. Talvez a gente nunca tenha ido àquela festa,
talvez a gente nunca tenha se conhecido. Em algum lugar sempre está
tudo bem.
Mas,
porque estava sem sexo havia muitos meses e porque tinha parado o
Escitalopram semanas antes e porque precisava dar fim ao bate-estaca
da minha cabeça, eu decidi que faria sexo naquela festa. E então
pirei num garoto muito alto, muito hipster e muito soberbo. Achei
também que ele pudesse me abater e o escolhi. Ele estava um pouco
fedido, mas tratava-se de um fedor “brava testosterona de um dia
inteiro na rua e já são quatro da manhã”, e não exatamente de
um cheiro ruim.
O
mundo segue andando, suando, escarrando. Enquanto eu me resguardo
numa maldade higiênica até que. Enquanto eu me resguardo na solidão
desinfetada até que. No interior dessas bolhas macabras cheias de
regras maníacas até que. Sentir tesão é a única liberdade
possível para quem é viciado em listas e Protex.
Ele
sumiu e voltou com um pelo loiro grudado no suor da testa. Seu pulso
fedia a carne moída com almíscar. Ele colocou a música que
dilacerava meu coração e só foi capaz de aumentar o som.
“Pode
mandar em mim”, pensei, quando me senti correndo bem rápido da
minha gaiola. Ou ratoeira, nunca sei. Sempre que ser bicho vem, é
tão novo que não sei encaixar as coerências. Me lanço inteira na
ponta do meu indicador que se enfia em sua orelha. Vou até ele e
esfrego o osso da minha bacia. “Quem é você?”, ele diz,
misturando raiva com delicadeza. Vou até ele e faço para cima e
para baixo com a mão, por cima da calça.
Me
derramar em cima de você não é ignorar as estratégias antigas e
óbvias de sedução. É só porque realmente não cabe. Não tenho
espaço suficiente dentro dos ossos para a espiral que você faz com
a minha atenção. Vou entrando, aos poucos e continuamente, dentro
dos seus olhos e boca e orelhas e nariz. Você me faria ir de ônibus
até o Japão sem Rivotril e esse é o melhor elogio que eu poderia
fazer a um homem que, por enquanto, só me olha e diz que também tem
medo de ficar louco. Tudo porque seus buracos me chamam como se eu
pudesse me esconder em você sem levar minha cabeça junto.
Estou
livre, só por hoje, das listas mentais de tudo o que precisa estar
certo e limpo e enquadrado. Eu que não bebo porque não gosto e
porque não quero, misturo cerveja com vinho. Como maionese com
sangue com manteiga com saliva de alguém que me devolve um copo que
nem era meu. Chupo o restinho de batom numa bituca empretecida.
Completamente desprovida de “regras para um sábado”, experimento
a tarde como se enfim pertencesse ao grupo de jovens normais que
curtem porque assim é que se faz e ponto final.
Hoje
não, martelo. Um dia sem repensar inúmeras vezes todas as coisas
que ainda nem pensei. Eu tinha esquecido, com dois anos de
antidepressivo, como é maravilhoso sentir eretos os cabelos menores
do couro cabeludo. Sentir a febre atrás das coxas. Sentir a língua
secar na raiz da língua. Sentir a planta do pé latejar. Controlar
meus enormes e óbvios e expostos dentes. A dificuldade que é me
manter moça apesar de descompensada e compulsiva. A angústia que é
querer comer o mundo com uma fresta. O pavor de que não entendam e
diminuam a beleza desse momento e, ao mesmo tempo, a total
incapacidade em julgar a opinião dos outros mais importante do que
sentir tudo isso.
Tem
uma coisa que parece fome e que faz a gente sair pras ruas. Animais
eretos e perfumados. Camadas de cabelo, camadas de roupa, camadas de
salto, camadas de não. Tudo resguardando uma ânsia que nunca se
sabe exatamente se é de pôr para dentro ou se é de pôr para fora.
Daí a gente pede salada e fica cheia. Daí a gente perfila centenas
de bolinhas de miolos de pão e segue vazia. E nada disso tem a ver
com essa fome. Daí a gente segura firme o braço de uma pessoa.
Mas
existem ainda esses momentos em que o oxigênio entra tão branco e
gelado e de longe, que notamos, não sem saudade, quão medíocre e
quente é nossa falsa segurança. Tenho agora um pelo na garganta, me
fazendo tossir e achar graça. O pelo dele? O pelo loiro? Meu pelo?
Estou rindo e tossindo desde as nove da manhã. Não tenho vontade de
cuspir o pelo, de tomar banho, de separar os nós do cabelo, de tirar
o disco do Caetano. Porque minha preguiça suja, a voz do Caetano e o
ar que ainda guarda bem de leve o seu cheiro são os segundos finais
do nosso encontro. É por causa de pessoas assim que eu não troco a
tristeza da minha vida por nada.
Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu
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