terça-feira, 4 de abril de 2023

No qual vamos para uma hospedaria. Palavras calculadas por minuto. Beremiz resolve um problema e determina a dívida de um joalheiro.


Logo que deixamos a companhia do xeque Nasair e do vizir Maluf, encaminhamo-nos para uma pequena hospedaria denominada Marreco Dourado, nas vizinhanças da mesquita de Solimã.
Os nossos camelos foram vendidos a um chamir(1) de minha confiança, que morava perto.
Em caminho disse a Beremiz:
Já vê, meu amigo, que tive razão quando afirmei que um calculista hábil acharia com facilidade um bom emprego em Bagdá! Mal você chegou, foi convidado para exercer o cargo de secretário de um vizir. Não precisará voltar para a tal aldeia de Khói, penhascosa e triste.
Mesmo que aqui prospere — respondeu-me o calculista — e enriqueça, pretendo voltar, mais tarde, à Pérsia, para rever o meu torrão natal. Ingrato é aquele que esquece a pátria e os amigos de infância, quando tem a felicidade de encontrar, na vida, o oásis da prosperidade e da fortuna.
E acrescentou, tomando-me pelo braço:
Viajamos juntos, até o presente momento, 8 dias, exatamente. Durante esse tempo, para esclarecer dúvidas e indagar sobre coisas que me interessavam, pronunciei, precisamente, 414.720 palavras. Ora, como em 8 dias há 11 520 minutos, posso concluir que, durante a nossa jornada, pronunciei, em média, 36 palavras por minuto, isto é, 2.160 por hora. Esses números mostram que falei pouco, fui discreto e não tomei o teu tempo fazendo-te ouvir discursos estéreis. O homem taciturno, excessivamente calado, torna-se desagradável; mas os que falam sem parar irritam ou enfastiam seus ouvintes. Devemos, pois, evitar as palavras inúteis sem cair no laconismo exagerado, incompatível com a delicadeza. A tal respeito, poderei narrar um caso muito curioso.
Depois de ligeira pausa, o calculista contou-me o seguinte:
Havia em Teerã, na Pérsia, um velho mercador que tinha três filhos. Um dia o mercador chamou os jovens e disse-lhes: “Aquele que passar o dia sem pronunciar palavras inúteis receberá, de mim, um prêmio de vinte e três timões(2).”
Ao cair da noite os três filhos foram ter à presença do ancião. Disse o primeiro:
Evitei hoje, meu pai, todas as palavras inúteis. Espero, portanto, merecer (segundo a vossa promessa) o prêmio combinado — prêmio esse de vinte e três timões, conforme deveis estar lembrado.
O segundo aproximou-se do velho, beijou-lhe as mãos, e limitou-se a dizer:
Boa noite, meu Pai!
O mais moço, finalmente, não pronunciou palavra, aproximou-se do velho e estendeu-lhe apenas a mão para receber o prêmio. O mercador, ao observar a atitude dos três rapazes, assim falou:
O primeiro, ao chegar à minha presença, fatigou-me a atenção com várias palavras inúteis; o terceiro mostrou-se exageradamente lacônico. O prêmio caberá, pois, ao segundo, que foi discreto, sem verbosidade e simples, sem afetação:
E Beremiz, ao concluir, interpelou-me:
Não acha que o velho mercador agiu com justiça, ao julgar os três filhos?
Nada respondi. Achei melhor não discutir o caso dos vinte e três timões com aquele homem prodigioso que reduzia tudo a números, calculava médias e resolvia problemas.
Momentos depois chegávamos ao Marreco Dourado.
O dono da hospedaria chamava-se Salim e fora empregado do meu pai. Ao avistar-me gritou risonho:
Alá sobre ti, meu menino(3)! Aguardo as tuas ordens agora e sempre!
Disse-lhe que precisava de um quarto para mim e para o meu amigo Beremiz Samir, o calculista, secretário do vizir Maluf.
Esse homem é calculista? — indagou o velho Salim. — Chegou, então, em momento oportuno para tirar-me de um embaraço. Acabo de ter séria divergência com um vendedor de joias. Discutimos longo tempo e de nossa discussão resultou, afinal, um problema que não sabemos resolver.
Informadas de que um grande calculista havia chegado à hospedaria, várias pessoas aproximaram-se curiosas. O vendedor de joias foi chamado e declarou achar-se interessadíssimo na resolução do tal problema.
Qual é, afinal, a origem da dúvida? — perguntou Beremiz.
Esse homem (e apontou para o joalheiro) veio da Síria vender joias em Bagdá; prometeu-me que pagaria, pela hospedagem, 20 dinares se vendesse as joias por 100 dinares, pagando 35 se as vendesse por 200.
Ao cabo de vários dias, tendo andado daqui para ali, acabou vendendo tudo por 140 dinares. Quanto deve pagar, consoante a nossa combinação, pela hospedagem?
Devo pagar apenas vinte e quatro dinares e meio! — replicou logo o mercador sírio. — Se para a venda de 200 eu pagaria 35, para a venda de 140 eu devo pagar 24 e meio!

Proporção feita pelo mercador de joias:
Duzentos está para trinta e cinco, assim como cento e quarenta está para x ou:
200 : 35 : : 140 : x
Multiplicando os meios e dividindo pelo extremo, o resultado será:
x = 24,5
Total da dívida.

Está errado! — contrariou irritado o velho Salim. — Pelas minhas contas são 28. — Veja bem: Se para 100 eu deveria receber 20, para 140, da venda, devo receber 28. E vou provar.
E o velho Salim raciocinou do seguinte modo:
Se para 100 eu deveria receber 20, para 10 (que é a décima parte de 100), eu deveria receber a décima parte de 20.
Qual é a décima parte de 20?
A décima parte de 20 é 2.
Logo, para 10, eu deveria receber 2.
140 quantos 10 contêm?
140 contêm 14 vezes 10.

Proporção feita pelo dono da hospedaria:
Cem está para vinte, assim como cento e quarenta está para x ou:
100 : 20 : : 140 : x
O valor de x é
28
Total da dívida.

Logo, para 140, eu devo receber 14 vezes 2, que é igual a 28, como já disse.
E o velho Salim, depois de todos aqueles cálculos, bradou enérgico:
Devo receber 28. É esta a conta certa!
Calma, meus amigos — interrompeu o calculista. — É preciso encarar as dúvidas com serenidade e mansidão. A precipitação conduz ao erro e à discórdia. Os resultados que os senhores indicam estão errados, conforme vou provar.
E esclareceu o caso do seguinte modo:
De acordo com a combinação feita, o sírio seria obrigado a pagar 20 dinares pela hospedagem, se vendesse as joias por 100, e seria obrigado a pagar 35 se as vendesse por 200.
Temos assim:

Preço da venda         Custo da hospedagem
200                                             35
100                                             20
dif.: 100                            dif.: 15

Reparem que a diferença de 100, no preço da venda, corresponde a uma diferença de 15 no preço da hospedagem! Não é claro?
Claro como leite de camela! — assentiram os dois.
Ora — prosseguiu o calculista —, se o acréscimo de 100 na venda traria um aumento de 15 na hospedagem, eu pergunto: Qual será o aumento da hospedagem para o acréscimo de 40 na venda? Se a diferença fosse de 20 (que é um quinto de 100), o aumento da hospedagem seria de 3 (pois 3 é um quinto de 15). Para a diferença de 40 (que é o dobro de 20), o acréscimo da hospedagem deverá ser de 6. O pagamento correspondente a 140 é, portanto, de 26.

Proporção feita pelo calculista:
Cem está para quinze assim como quarenta está para x, ou:
100 : 15 : : 40 : x
O valor de x é 6
(Acréscimo de preço e não o total da dívida)

Meu amigo! Os números, na simplicidade com que se apresentam, iludem, não raro, os mais atilados. As proporções que nos parecem perfeitas estão, por vezes, falseadas pelo erro. Da incerteza dos cálculos é que resulta o indiscutível prestígio da Matemática. Nos termos da combinação, o senhor deverá pagar ao hospedeiro 26 dinares e não 24 e meio, como a princípio acreditava! Há ainda, na solução final desse problema, pequena diferença que não merece ser apurada e cuja grandeza não disponho de recursos para exprimir numericamente (4).
O senhor tem toda razão — assentiu o joalheiro. — Reconheço agora que o meu cálculo estava errado.
E, sem hesitar, tirou da bolsa 26 dinares e entregou-os ao velho Salim, oferecendo, de presente, ao talentoso Beremiz, um belo anel de ouro com duas pedras escuras, exornando a dádiva com afetuosas expressões.
Todos quantos se achavam na hospedaria admiraram-se da sagacidade do novo calculista, cuja fama, dia a dia, galgava, a passos largos, a almenara(5) do triunfo.

Notas

(1) Chefe de caravana.
(2) Timão ou tomão — Moeda persa de ouro.
(3) Alá sobre ti, significa “Deus te proteja”.
(4) Esse problema só pode ser resolvido, de modo completo, à luz da teoria das interpolações.
(5) Torre de que são providas as mesquitas. Das almenaras, ou minaretes, o muezim chama os fiéis à prece.

Malba Tahan, in O Homem que Calculava

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