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que deixamos a companhia do xeque Nasair e do vizir Maluf,
encaminhamo-nos para uma pequena hospedaria denominada Marreco
Dourado, nas vizinhanças da mesquita de Solimã.
Os
nossos camelos foram vendidos a um chamir(1) de minha confiança, que
morava perto.
Em
caminho disse a Beremiz:
— Já
vê, meu amigo, que tive razão quando afirmei que um calculista
hábil acharia com facilidade um bom emprego em Bagdá! Mal você
chegou, foi convidado para exercer o cargo de secretário de um
vizir. Não precisará voltar para a tal aldeia de Khói, penhascosa
e triste.
— Mesmo
que aqui prospere — respondeu-me o calculista — e enriqueça,
pretendo voltar, mais tarde, à Pérsia, para rever o meu torrão
natal. Ingrato é aquele que esquece a pátria e os amigos de
infância, quando tem a felicidade de encontrar, na vida, o oásis da
prosperidade e da fortuna.
E
acrescentou, tomando-me pelo braço:
— Viajamos
juntos, até o presente momento, 8 dias, exatamente. Durante esse
tempo, para esclarecer dúvidas e indagar sobre coisas que me
interessavam, pronunciei, precisamente, 414.720 palavras. Ora, como
em 8 dias há 11 520 minutos, posso concluir que, durante a nossa
jornada, pronunciei, em média, 36 palavras por minuto, isto é, 2.160 por hora. Esses números mostram que falei pouco, fui discreto e
não tomei o teu tempo fazendo-te ouvir discursos estéreis. O homem
taciturno, excessivamente calado, torna-se desagradável; mas os que
falam sem parar irritam ou enfastiam seus ouvintes. Devemos, pois,
evitar as palavras inúteis sem cair no laconismo exagerado,
incompatível com a delicadeza. A tal respeito, poderei narrar um
caso muito curioso.
Depois
de ligeira pausa, o calculista contou-me o seguinte:
— Havia
em Teerã, na Pérsia, um velho mercador que tinha três filhos. Um
dia o mercador chamou os jovens e disse-lhes: “Aquele que passar o
dia sem pronunciar palavras inúteis receberá, de mim, um prêmio de
vinte e três timões(2).”
Ao
cair da noite os três filhos foram ter à presença do ancião.
Disse o primeiro:
— Evitei
hoje, meu pai, todas as palavras inúteis. Espero, portanto, merecer
(segundo a vossa promessa) o prêmio combinado — prêmio esse de
vinte e três timões, conforme deveis estar lembrado.
O
segundo aproximou-se do velho, beijou-lhe as mãos, e limitou-se a
dizer:
— Boa
noite, meu Pai!
O
mais moço, finalmente, não pronunciou palavra, aproximou-se do
velho e estendeu-lhe apenas a mão para receber o prêmio. O
mercador, ao observar a atitude dos três rapazes, assim falou:
— O
primeiro, ao chegar à minha presença, fatigou-me a atenção com
várias palavras inúteis; o terceiro mostrou-se exageradamente
lacônico. O prêmio caberá, pois, ao segundo, que foi discreto, sem
verbosidade e simples, sem afetação:
E
Beremiz, ao concluir, interpelou-me:
— Não
acha que o velho mercador agiu com justiça, ao julgar os três
filhos?
Nada
respondi. Achei melhor não discutir o caso dos vinte e três timões
com aquele homem prodigioso que reduzia tudo a números, calculava
médias e resolvia problemas.
Momentos
depois chegávamos ao Marreco Dourado.
O
dono da hospedaria chamava-se Salim e fora empregado do meu pai. Ao
avistar-me gritou risonho:
— Alá
sobre ti, meu menino(3)! Aguardo as tuas ordens agora e sempre!
Disse-lhe
que precisava de um quarto para mim e para o meu amigo Beremiz Samir,
o calculista, secretário do vizir Maluf.
— Esse
homem é calculista? — indagou o velho Salim. — Chegou, então,
em momento oportuno para tirar-me de um embaraço. Acabo de ter séria
divergência com um vendedor de joias. Discutimos longo tempo e de
nossa discussão resultou, afinal, um problema que não sabemos
resolver.
Informadas
de que um grande calculista havia chegado à hospedaria, várias
pessoas aproximaram-se curiosas. O vendedor de joias foi chamado e
declarou achar-se interessadíssimo na resolução do tal problema.
— Qual
é, afinal, a origem da dúvida? — perguntou Beremiz.
— Esse
homem (e apontou para o joalheiro) veio da Síria vender joias em
Bagdá; prometeu-me que pagaria, pela hospedagem, 20 dinares se
vendesse as joias por 100 dinares, pagando 35 se as vendesse por 200.
Ao
cabo de vários dias, tendo andado daqui para ali, acabou vendendo
tudo por 140 dinares. Quanto deve pagar, consoante a nossa
combinação, pela hospedagem?
— Devo
pagar apenas vinte e quatro dinares e meio! — replicou logo o
mercador sírio. — Se para a venda de 200 eu pagaria 35, para a
venda de 140 eu devo pagar 24 e meio!
Proporção
feita pelo mercador de joias:
Duzentos
está para trinta e cinco, assim como cento e quarenta está para x
ou:
200
: 35 : : 140 : x
Multiplicando
os meios e dividindo pelo extremo, o resultado será:
x
= 24,5
Total
da dívida.
— Está
errado! — contrariou irritado o velho Salim. — Pelas minhas
contas são 28. — Veja bem: Se para 100 eu deveria receber 20, para
140, da venda, devo receber 28. E vou provar.
E
o velho Salim raciocinou do seguinte modo:
— Se
para 100 eu deveria receber 20, para 10 (que é a décima parte de
100), eu deveria receber a décima parte de 20.
Qual
é a décima parte de 20?
A
décima parte de 20 é 2.
Logo,
para 10, eu deveria receber 2.
140
quantos 10 contêm?
140
contêm 14 vezes 10.
Proporção
feita pelo dono da hospedaria:
Cem
está para vinte, assim como cento e quarenta está para x ou:
100
: 20 : : 140 : x
O
valor de x é
28
Total
da dívida.
Logo,
para 140, eu devo receber 14 vezes 2, que é igual a 28, como já
disse.
E
o velho Salim, depois de todos aqueles cálculos, bradou enérgico:
— Devo
receber 28. É esta a conta certa!
— Calma,
meus amigos — interrompeu o calculista. — É preciso encarar as
dúvidas com serenidade e mansidão. A precipitação conduz ao erro
e à discórdia. Os resultados que os senhores indicam estão
errados, conforme vou provar.
E
esclareceu o caso do seguinte modo:
— De
acordo com a combinação feita, o sírio seria obrigado a pagar 20
dinares pela hospedagem, se vendesse as joias por 100, e seria
obrigado a pagar 35 se as vendesse por 200.
Temos
assim:
Preço
da venda Custo da hospedagem
200 35
100 20
dif.:
100 dif.: 15
Reparem
que a diferença de 100, no preço da venda, corresponde a uma
diferença de 15 no preço da hospedagem! Não é claro?
— Claro
como leite de camela! — assentiram os dois.
— Ora
— prosseguiu o calculista —, se o acréscimo de 100 na venda
traria um aumento de 15 na hospedagem, eu pergunto: Qual será o
aumento da hospedagem para o acréscimo de 40 na venda? Se a
diferença fosse de 20 (que é um quinto de 100), o aumento da
hospedagem seria de 3 (pois 3 é um quinto de 15). Para a diferença
de 40 (que é o dobro de 20), o acréscimo da hospedagem deverá ser
de 6. O pagamento correspondente a 140 é, portanto, de 26.
Proporção
feita pelo calculista:
Cem
está para quinze assim como quarenta está para x, ou:
100
: 15 : : 40 : x
O
valor de x é 6
(Acréscimo
de preço e não o total da dívida)
— Meu
amigo! Os números, na simplicidade com que se apresentam, iludem,
não raro, os mais atilados. As proporções que nos parecem
perfeitas estão, por vezes, falseadas pelo erro. Da incerteza dos
cálculos é que resulta o indiscutível prestígio da Matemática.
Nos termos da combinação, o senhor deverá pagar ao hospedeiro 26
dinares e não 24 e meio, como a princípio acreditava! Há ainda, na
solução final desse problema, pequena diferença que não merece
ser apurada e cuja grandeza não disponho de recursos para exprimir
numericamente (4).
— O
senhor tem toda razão — assentiu o joalheiro. — Reconheço agora
que o meu cálculo estava errado.
E,
sem hesitar, tirou da bolsa 26 dinares e entregou-os ao velho Salim,
oferecendo, de presente, ao talentoso Beremiz, um belo anel de ouro
com duas pedras escuras, exornando a dádiva com afetuosas
expressões.
Todos
quantos se achavam na hospedaria admiraram-se da sagacidade do novo
calculista, cuja fama, dia a dia, galgava, a passos largos, a
almenara(5) do triunfo.
Notas
(1)
Chefe de caravana.
(2)
Timão ou tomão — Moeda persa de ouro.
(3)
Alá sobre ti, significa “Deus te proteja”.
(4)
Esse problema só pode ser resolvido, de modo completo, à luz da
teoria das interpolações.
(5)
Torre de que são providas as mesquitas. Das almenaras, ou minaretes,
o muezim chama os fiéis à prece.
Malba Tahan, in O Homem que Calculava
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