Os
homens que haviam instalado armadilhas para os coelhos na floresta
voltaram para a aldeia anunciando que tinham visto flores nas árvores
de ume do vale.
A
única maneira de os habitantes da aldeia verem flores era subindo as
montanhas; o vento salgado que açoitava o vilarejo impedia que
qualquer planta ou árvore que produzisse flores crescesse na costa.
Na manhã seguinte o chefe da vila os instruiu a levar um dos idosos
da aldeia até o vale. Quando o achado foi confirmado, o chefe
ordenou que a produção de sal fosse interrompida. As flores das
ameixeiras significavam o final do inverno e das esperanças de
O-fune-sama aparecer. Os homens suspenderam os caldeirões com
varas e os transportaram da praia para a casa do chefe da aldeia,
onde foram lavados com água fresca e recobertos com óleo de peixe
antes de ser guardados.
A
aldeia estava envolta em tristeza. Quando as pessoas cruzavam com
outras na trilha, mal trocavam alguma palavra, simplesmente acenavam
em cumprimento.
A
temperatura subiu e a neve que cobria a aldeia começou a derreter.
Às vezes era possível ouvir o estrondo de avalanches nas montanhas.
O vapor da neve subia dos vales profundamente escavados. Eram cada
vez menos frequentes os dias de mar bravio, e por vezes uma névoa
úmida pairava sobre o oceano. Diziam que os pessegueiros nas
montanhas estavam florindo.
O
chefe da aldeia ordenou que alguns homens e mulheres fossem vender o
sal na aldeia vizinha. A mãe de Isaku foi uma das escolhidas.
Carregando sacolas de palha cheias de sal nos ombros e se
equilibrando com varas, eles avançaram lentamente em fila pela
trilha entre os barrancos de neve em direção ao passo da montanha.
Seis dias depois eles retornaram com sacolas de grãos amarradas às
costas. Os grãos que foram divididos entre as famílias de acordo
com o número de bocas a ser alimentadas.
No
princípio de março, Isaku juntou-se aos outros na praia para orar
por uma boa pesca naquele ano. Prepararam uma guirlanda sagrada de
palha em um dos pequenos barcos, suspensa sobre uma rede quadrada de
puçá feita de algodão, presa entre duas varas finas de bambu.
Quando
o chefe da aldeia chegou à praia usando trajes cerimoniais, o barco
foi empurrado para a água e seu dono pegou o remo enquanto a esposa
grávida embarcava também. O barco afastou-se da praia, as varas de
bambu balançando a cada vez que o homem remava, a rede ondulando
suavemente na brisa. A cerca de quarenta metros da costa, o barco
parou.
Olhando
para o mar, a mulher se levantou e com um movimento giratório
levantou a parte de baixo do quimono. Expondo o ventre protuberante e
a genitália ao Deus do Mar, ela orou para que os peixes se
reproduzissem e proliferassem. Isaku e os outros na praia mantiveram
as palmas juntas, orando. A cada vez que a mulher rodava e erguia o
quimono, expunha suas coxas grossas e as nádegas. Os movimentos da
mulher continuaram até que o homem, segurando o remo em uma das
mãos, derramou vinho de uma jarra no mar com a mão livre. Com isso,
a mulher soltou o quimono e sentou-se novamente. Então o marido
remou de volta para a praia. Depois de desembarcar, a mulher seguiu o
chefe da aldeia até a casa dele, onde foi servida a ela uma refeição
cerimonial.
Daquele
dia em diante, exceto quando o mar estava bravo Isaku juntava-se aos
outros pescadores na água. Como de hábito, naquela época do ano
começavam a aparecer sardinhas grandes. A quantidade de peixes
crescia a cada dia, e mal a linha era lançada ao mar, um peixe era
fisgado. Havia muitos peixes de bom tamanho nesses cardumes, e eles
lutavam para se libertar. Os peixes podiam ser comidos crus ou
amassados em uma pasta com a qual eram produzidos bolinhos para ser
servidos na sopa. Às vezes a mãe de Isaku os abria ao meio e os
deixava secar, guardando os miúdos em uma cuia para usar como
fertilizante nas plantações.
Quando
a pesca de sardinha começou a ficar menos produtiva, cinco pessoas
deixaram a aldeia, debaixo de chuva, para vender a si mesmos como
servos. Entre eles estavam o pai de Sahei e a irmã de dezesseis anos
de Tami. Eles foram acompanhados até a aldeia vizinha por membros da
família que receberiam o pagamento do intermediário. A fila de
chapéus de junco subiu pela trilha serpenteante montanha acima e
parou mais ou menos na metade. Pareciam relutantes em deixar seu
local de nascimento, sabendo que algumas pessoas morriam na servidão
e que, mesmo que sobrevivessem, não veriam a aldeia outra vez até o
contrato expirar. A fila de chapéus de junco moveu-se novamente,
ondulando ao prosseguir até misturar-se ao cinza sujo da chuva.
Depois
das sardinhas, as lulas começaram a aparecer. Isaku viu Sahei
pescando lulas sem muita habilidade em seu barco. O pai de Sahei
vendera-se em servidão por um período de cinco anos, mas diziam que
em troca disso haviam trazido para casa apenas cinquenta momme
de prata, menos do que o pai de Isaku havia recebido por três anos
de trabalho. Muitos dos habitantes da aldeia concordavam que era um
preço justo, considerando os ombros caídos e a constituição
frágil do pai de Sahei. Sem o pai, o peso de cuidar da família
estava agora nos ombros de Sahei.
Havia
um ar atormentado no rosto dele enquanto trabalhava com a linha de
pesca; seus olhos desconsolados voltaram-se na direção de Isaku.
Isaku
avistou Tami percorrendo a linha da água à procura de mariscos e
algas marinhas com as outras mulheres e crianças. A irmã mais velha
de Tami havia sido vendida como serva por sete anos; quando
terminasse o contrato, sua única chance de casamento seria com algum
homem viúvo. Tami era desenvolvida; se mentisse sobre a idade, não
seria difícil conseguir alguém que a quisesse como serva. Se Tami
fosse vendida como serva, Isaku queria esperar pelo retorno dela ao
final do contrato para se casar com ela. Mas uma esposa era essencial
em uma casa; não havia modo de ele permanecer solteiro até ela
voltar.
Isaku
se concentrou em pegar lulas. Elas não seriam consumidas logo,
seriam cortadas no meio e colocadas para secar. Havia lulas
penduradas por todos os lados, em cordas, sob os telhados das casas,
em espaços abertos próximos. O trecho da água à aldeia parecia
uma colmeia em plena atividade.
Numa
tarde no começo de abril, Isaku chegou em casa com o equipamento de
pesca na mão, para encontrar o primo Takichi sentado com as costas
contra a parede e os braços envolvendo os joelhos. A mãe de Isaku
empacotava lulas secas e amarrava-as com fio, mas assim que viu o
filho ela se levantou, amarrou uma cesta de bambu a cada extremidade
de uma vara de carga e deixou a casa. Isaku fez o mesmo, seguindo a
mãe até a praia com uma vara de carga com duas cestas de bambu nos
ombros. Eles pegaram as lulas com puçás no fundo dos barcos e as
colocaram em cestas, que depois foram penduradas nas varas de carga.
— Takichi
vai se casar amanhã, por isso vai ficar conosco esta noite — disse
a mãe quando voltavam para casa.
Então
Kura e Takichi estavam finalmente se unindo, pensou Isaku. Os dois
estavam com dezessete anos. Kura era a moça de constituição mais
forte de toda a aldeia, e era também alta. Ela usava sandálias de
palha tamanho extra-grande e costumava realizar o trabalho pesado
junto com os homens. Em contraste, Takichi era insignificante. Ele
poderia ser um pescador nato, mas sua constituição era muito
frágil. Com seu rosto longo e fino e o andar de pombo, havia pouco
nele de masculino.
Isaku
sempre ouvia o rumor de que eles tinham se conhecido na floresta, por
acaso, quando recolhiam lenha. Todos diziam que fora Takichi quem
havia sido seduzido. Mas tais encontros na floresta eram malvistos,
assim Takichi concordou com o pedido da família e passou a visitar
Kura regularmente de noite.
Um
bom tempo se passou desde que o pai e o irmão mais velho de Takichi
tinham sido tragados pelo mar enquanto pescavam, e ele agora vivia
com a mãe, que passava a maior parte do tempo deitada, reclamando de
dores nas costas encurvadas. Diziam que a mãe de Takichi estava
muito ansiosa para ver o filho casado com uma mulher jovem e forte
como Kura e passava todo o tempo dizendo para ele ir à casa da
garota.
Na
noite anterior ao casamento o homem tinha de ficar fora de casa e no
dia do casamento suas parentes jovens do sexo feminino o
acompanhariam até a casa da noiva para tomar parte no jantar de
despedida e então levavam a noiva e os pais dela à casa do noivo.
Ali a noiva, adequadamente adornada para a ocasião, trocava taças
nupciais com a sogra, e depois disso a cerimônia começava e a sogra
serviria à noiva uma cuia de madeira com uma farta porção de
arroz. Enquanto isso acontecia, o noivo permanecia ausente, voltando
para casa tarde da noite para consumar o casamento.
A
casa de Isaku tinha sido escolhida porque Takichi se sentiria bem
ficando com parentes.
Isaku
e a mãe carregaram as lulas para casa. A expressão da mãe sugeria
que ela estava feliz com o resultado da pesca do dia. Takichi
levantou-se junto da parede e perguntou:
— Posso
fazer algo para ajudar?
— Um
homem que está para se casar não precisa levantar um dedo. Fique
quieto e pense na caiada do vestido de sua noiva.
Visivelmente
aliviado, Takichi sentou-se novamente. O vapor começou a subir da
sopa de legumes na panela sobre o fogo, e Takichi juntou-se a Isaku e
à família ao redor do fogão. Havia uma certa falta de calor na
casa desde que o pai fora para a servidão, mas de alguma forma a
presença de Takichi colaborou para tornar o clima mais aconchegante.
O irmão e a irmã mais novos de Isaku olhavam com curiosidade na
direção do hóspede. Ocasionalmente, como se estivesse se lembrando
de alguma coisa, a sombra de um sorriso aparecia no rosto de Takichi
enquanto ele comia. Depois da refeição a mãe de Isaku pegou uma
faca e começou a limpar as lulas na parte da casa com chão de
terra.
Isaku
sentou-se do lado oposto ao primo e perto do fogo. Queria perguntar
como Takichi tinha cortejado Kura e como havia feito amor com ela,
mas se conteve com medo da ira da mãe.
Isaku
perguntou a Takichi sobre a pesca do saury, cuja temporada logo
deveria começar. Durante a estação chuvosa do ano anterior, Isaku
tinha saído atrás desses peixes, mas não conseguira pescar nada,
apesar de as águas estarem supostamente fervilhando com eles.
Takichi, por outro lado, sempre se mostrara um ótimo pescador, e
Isaku invejava o modo como o primo conseguia obter provisões para a
velha mãe.
— Depois
que você pegar o jeito, vai conseguir pegá-los até de olhos
vendados — disse Takichi suavemente.
— Eu
não consigo. Mas tenho de tentar e conseguir pegar tantos quanto
possível para evitar que meus irmãos morram de fome.
Takichi
olhou para o primo obviamente incomodado e disse:
— Quando
começarmos a pescar, leve seu barco para perto do meu e eu lhe
mostrarei.
— Por
favor! — implorou Isaku.
O
cheiro desagradável das lulas começava a impregnar fortemente o ar.
Na
tarde seguinte a mãe de Isaku saiu para se encontrar com parentes na
casa de Takichi enquanto Isaku ficou em casa, limpando as lulas no
lugar dela. Ela voltou depois do anoitecer, o rosto vermelho e
inchado por causa do vinho.
— Já
deve estar na hora de você ir se ocupar com sua esposa — disse ela
para Takichi, que estava sentado perto do fogão.
Ele
assentiu, agradeceu à tia por permitir que passasse a noite e
partiu.
A
mãe de Isaku sentou-se na esteira de palha. Isaku estava sentado
perto do fogo, e quando olhou para o rosto da mãe, que brilhava por
um instante à luz do fogo, ficou assustado com a estranha expressão
nos olhos dela. Estavam vidrados e marejados de lágrimas. Ele
calculou que ela estivesse pensando no pai e na irmãzinha morta.
Quando
grupos de habitantes da vila iam para a aldeia vizinha para vender
peixe seco ou sal, eles sempre falavam com o intermediário de
contratos de servidão. Era o único meio de ter notícias de seus
parentes cumprindo contratos. Às vezes ouviam relatos de morte, ou a
notícia de que a pessoa estava doente. Sem exceção, aqueles que
adoeciam acabavam morrendo, mas mesmo sabendo disso a família rezava
pela recuperação do parente. Não havia notícias sobre o pai de
Isaku, o que significava, quase com certeza, que ele estava bem e
trabalhando em algum lugar.
Isaku
afastou-se do fogo e se enrolou sob sua coberta de palha, os olhos
semicerrados enquanto fitava o rosto da mãe. [...]
Akira Yoshimura, in Naufrágios
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