quarta-feira, 19 de abril de 2023

Naufrágios | Capítulo 4


Os homens que haviam instalado armadilhas para os coelhos na floresta voltaram para a aldeia anunciando que tinham visto flores nas árvores de ume do vale.
A única maneira de os habitantes da aldeia verem flores era subindo as montanhas; o vento salgado que açoitava o vilarejo impedia que qualquer planta ou árvore que produzisse flores crescesse na costa. Na manhã seguinte o chefe da vila os instruiu a levar um dos idosos da aldeia até o vale. Quando o achado foi confirmado, o chefe ordenou que a produção de sal fosse interrompida. As flores das ameixeiras significavam o final do inverno e das esperanças de O-fune-sama aparecer. Os homens suspenderam os caldeirões com varas e os transportaram da praia para a casa do chefe da aldeia, onde foram lavados com água fresca e recobertos com óleo de peixe antes de ser guardados.
A aldeia estava envolta em tristeza. Quando as pessoas cruzavam com outras na trilha, mal trocavam alguma palavra, simplesmente acenavam em cumprimento.
A temperatura subiu e a neve que cobria a aldeia começou a derreter. Às vezes era possível ouvir o estrondo de avalanches nas montanhas. O vapor da neve subia dos vales profundamente escavados. Eram cada vez menos frequentes os dias de mar bravio, e por vezes uma névoa úmida pairava sobre o oceano. Diziam que os pessegueiros nas montanhas estavam florindo.
O chefe da aldeia ordenou que alguns homens e mulheres fossem vender o sal na aldeia vizinha. A mãe de Isaku foi uma das escolhidas. Carregando sacolas de palha cheias de sal nos ombros e se equilibrando com varas, eles avançaram lentamente em fila pela trilha entre os barrancos de neve em direção ao passo da montanha. Seis dias depois eles retornaram com sacolas de grãos amarradas às costas. Os grãos que foram divididos entre as famílias de acordo com o número de bocas a ser alimentadas.
No princípio de março, Isaku juntou-se aos outros na praia para orar por uma boa pesca naquele ano. Prepararam uma guirlanda sagrada de palha em um dos pequenos barcos, suspensa sobre uma rede quadrada de puçá feita de algodão, presa entre duas varas finas de bambu.
Quando o chefe da aldeia chegou à praia usando trajes cerimoniais, o barco foi empurrado para a água e seu dono pegou o remo enquanto a esposa grávida embarcava também. O barco afastou-se da praia, as varas de bambu balançando a cada vez que o homem remava, a rede ondulando suavemente na brisa. A cerca de quarenta metros da costa, o barco parou.
Olhando para o mar, a mulher se levantou e com um movimento giratório levantou a parte de baixo do quimono. Expondo o ventre protuberante e a genitália ao Deus do Mar, ela orou para que os peixes se reproduzissem e proliferassem. Isaku e os outros na praia mantiveram as palmas juntas, orando. A cada vez que a mulher rodava e erguia o quimono, expunha suas coxas grossas e as nádegas. Os movimentos da mulher continuaram até que o homem, segurando o remo em uma das mãos, derramou vinho de uma jarra no mar com a mão livre. Com isso, a mulher soltou o quimono e sentou-se novamente. Então o marido remou de volta para a praia. Depois de desembarcar, a mulher seguiu o chefe da aldeia até a casa dele, onde foi servida a ela uma refeição cerimonial.
Daquele dia em diante, exceto quando o mar estava bravo Isaku juntava-se aos outros pescadores na água. Como de hábito, naquela época do ano começavam a aparecer sardinhas grandes. A quantidade de peixes crescia a cada dia, e mal a linha era lançada ao mar, um peixe era fisgado. Havia muitos peixes de bom tamanho nesses cardumes, e eles lutavam para se libertar. Os peixes podiam ser comidos crus ou amassados em uma pasta com a qual eram produzidos bolinhos para ser servidos na sopa. Às vezes a mãe de Isaku os abria ao meio e os deixava secar, guardando os miúdos em uma cuia para usar como fertilizante nas plantações.
Quando a pesca de sardinha começou a ficar menos produtiva, cinco pessoas deixaram a aldeia, debaixo de chuva, para vender a si mesmos como servos. Entre eles estavam o pai de Sahei e a irmã de dezesseis anos de Tami. Eles foram acompanhados até a aldeia vizinha por membros da família que receberiam o pagamento do intermediário. A fila de chapéus de junco subiu pela trilha serpenteante montanha acima e parou mais ou menos na metade. Pareciam relutantes em deixar seu local de nascimento, sabendo que algumas pessoas morriam na servidão e que, mesmo que sobrevivessem, não veriam a aldeia outra vez até o contrato expirar. A fila de chapéus de junco moveu-se novamente, ondulando ao prosseguir até misturar-se ao cinza sujo da chuva.
Depois das sardinhas, as lulas começaram a aparecer. Isaku viu Sahei pescando lulas sem muita habilidade em seu barco. O pai de Sahei vendera-se em servidão por um período de cinco anos, mas diziam que em troca disso haviam trazido para casa apenas cinquenta momme de prata, menos do que o pai de Isaku havia recebido por três anos de trabalho. Muitos dos habitantes da aldeia concordavam que era um preço justo, considerando os ombros caídos e a constituição frágil do pai de Sahei. Sem o pai, o peso de cuidar da família estava agora nos ombros de Sahei.
Havia um ar atormentado no rosto dele enquanto trabalhava com a linha de pesca; seus olhos desconsolados voltaram-se na direção de Isaku.
Isaku avistou Tami percorrendo a linha da água à procura de mariscos e algas marinhas com as outras mulheres e crianças. A irmã mais velha de Tami havia sido vendida como serva por sete anos; quando terminasse o contrato, sua única chance de casamento seria com algum homem viúvo. Tami era desenvolvida; se mentisse sobre a idade, não seria difícil conseguir alguém que a quisesse como serva. Se Tami fosse vendida como serva, Isaku queria esperar pelo retorno dela ao final do contrato para se casar com ela. Mas uma esposa era essencial em uma casa; não havia modo de ele permanecer solteiro até ela voltar.
Isaku se concentrou em pegar lulas. Elas não seriam consumidas logo, seriam cortadas no meio e colocadas para secar. Havia lulas penduradas por todos os lados, em cordas, sob os telhados das casas, em espaços abertos próximos. O trecho da água à aldeia parecia uma colmeia em plena atividade.
Numa tarde no começo de abril, Isaku chegou em casa com o equipamento de pesca na mão, para encontrar o primo Takichi sentado com as costas contra a parede e os braços envolvendo os joelhos. A mãe de Isaku empacotava lulas secas e amarrava-as com fio, mas assim que viu o filho ela se levantou, amarrou uma cesta de bambu a cada extremidade de uma vara de carga e deixou a casa. Isaku fez o mesmo, seguindo a mãe até a praia com uma vara de carga com duas cestas de bambu nos ombros. Eles pegaram as lulas com puçás no fundo dos barcos e as colocaram em cestas, que depois foram penduradas nas varas de carga.
Takichi vai se casar amanhã, por isso vai ficar conosco esta noite — disse a mãe quando voltavam para casa.
Então Kura e Takichi estavam finalmente se unindo, pensou Isaku. Os dois estavam com dezessete anos. Kura era a moça de constituição mais forte de toda a aldeia, e era também alta. Ela usava sandálias de palha tamanho extra-grande e costumava realizar o trabalho pesado junto com os homens. Em contraste, Takichi era insignificante. Ele poderia ser um pescador nato, mas sua constituição era muito frágil. Com seu rosto longo e fino e o andar de pombo, havia pouco nele de masculino.
Isaku sempre ouvia o rumor de que eles tinham se conhecido na floresta, por acaso, quando recolhiam lenha. Todos diziam que fora Takichi quem havia sido seduzido. Mas tais encontros na floresta eram malvistos, assim Takichi concordou com o pedido da família e passou a visitar Kura regularmente de noite.
Um bom tempo se passou desde que o pai e o irmão mais velho de Takichi tinham sido tragados pelo mar enquanto pescavam, e ele agora vivia com a mãe, que passava a maior parte do tempo deitada, reclamando de dores nas costas encurvadas. Diziam que a mãe de Takichi estava muito ansiosa para ver o filho casado com uma mulher jovem e forte como Kura e passava todo o tempo dizendo para ele ir à casa da garota.
Na noite anterior ao casamento o homem tinha de ficar fora de casa e no dia do casamento suas parentes jovens do sexo feminino o acompanhariam até a casa da noiva para tomar parte no jantar de despedida e então levavam a noiva e os pais dela à casa do noivo. Ali a noiva, adequadamente adornada para a ocasião, trocava taças nupciais com a sogra, e depois disso a cerimônia começava e a sogra serviria à noiva uma cuia de madeira com uma farta porção de arroz. Enquanto isso acontecia, o noivo permanecia ausente, voltando para casa tarde da noite para consumar o casamento.
A casa de Isaku tinha sido escolhida porque Takichi se sentiria bem ficando com parentes.
Isaku e a mãe carregaram as lulas para casa. A expressão da mãe sugeria que ela estava feliz com o resultado da pesca do dia. Takichi levantou-se junto da parede e perguntou:
Posso fazer algo para ajudar?
Um homem que está para se casar não precisa levantar um dedo. Fique quieto e pense na caiada do vestido de sua noiva.
Visivelmente aliviado, Takichi sentou-se novamente. O vapor começou a subir da sopa de legumes na panela sobre o fogo, e Takichi juntou-se a Isaku e à família ao redor do fogão. Havia uma certa falta de calor na casa desde que o pai fora para a servidão, mas de alguma forma a presença de Takichi colaborou para tornar o clima mais aconchegante. O irmão e a irmã mais novos de Isaku olhavam com curiosidade na direção do hóspede. Ocasionalmente, como se estivesse se lembrando de alguma coisa, a sombra de um sorriso aparecia no rosto de Takichi enquanto ele comia. Depois da refeição a mãe de Isaku pegou uma faca e começou a limpar as lulas na parte da casa com chão de terra.
Isaku sentou-se do lado oposto ao primo e perto do fogo. Queria perguntar como Takichi tinha cortejado Kura e como havia feito amor com ela, mas se conteve com medo da ira da mãe.
Isaku perguntou a Takichi sobre a pesca do saury, cuja temporada logo deveria começar. Durante a estação chuvosa do ano anterior, Isaku tinha saído atrás desses peixes, mas não conseguira pescar nada, apesar de as águas estarem supostamente fervilhando com eles. Takichi, por outro lado, sempre se mostrara um ótimo pescador, e Isaku invejava o modo como o primo conseguia obter provisões para a velha mãe.
Depois que você pegar o jeito, vai conseguir pegá-los até de olhos vendados — disse Takichi suavemente.
Eu não consigo. Mas tenho de tentar e conseguir pegar tantos quanto possível para evitar que meus irmãos morram de fome.
Takichi olhou para o primo obviamente incomodado e disse:
Quando começarmos a pescar, leve seu barco para perto do meu e eu lhe mostrarei.
Por favor! — implorou Isaku.
O cheiro desagradável das lulas começava a impregnar fortemente o ar.
Na tarde seguinte a mãe de Isaku saiu para se encontrar com parentes na casa de Takichi enquanto Isaku ficou em casa, limpando as lulas no lugar dela. Ela voltou depois do anoitecer, o rosto vermelho e inchado por causa do vinho.
Já deve estar na hora de você ir se ocupar com sua esposa — disse ela para Takichi, que estava sentado perto do fogão.
Ele assentiu, agradeceu à tia por permitir que passasse a noite e partiu.
A mãe de Isaku sentou-se na esteira de palha. Isaku estava sentado perto do fogo, e quando olhou para o rosto da mãe, que brilhava por um instante à luz do fogo, ficou assustado com a estranha expressão nos olhos dela. Estavam vidrados e marejados de lágrimas. Ele calculou que ela estivesse pensando no pai e na irmãzinha morta.
Quando grupos de habitantes da vila iam para a aldeia vizinha para vender peixe seco ou sal, eles sempre falavam com o intermediário de contratos de servidão. Era o único meio de ter notícias de seus parentes cumprindo contratos. Às vezes ouviam relatos de morte, ou a notícia de que a pessoa estava doente. Sem exceção, aqueles que adoeciam acabavam morrendo, mas mesmo sabendo disso a família rezava pela recuperação do parente. Não havia notícias sobre o pai de Isaku, o que significava, quase com certeza, que ele estava bem e trabalhando em algum lugar.
Isaku afastou-se do fogo e se enrolou sob sua coberta de palha, os olhos semicerrados enquanto fitava o rosto da mãe. [...]

Akira Yoshimura, in Naufrágios

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