quarta-feira, 19 de abril de 2023

A Moral | II – A Piedade

A piedade é esse fato admirável, misterioso, pelo qual vemos a linha de demarcação, que aos olhos da razão separa totalmente um ser do outro, desaparecer e o eu não se tornar de modo algum o eu.
Só a piedade é o princípio real de toda justiça livre e de toda caridade verdadeira. A piedade é um fato incontestável da consciência do homem; é-lhe essencialmente própria e não depende de noções anteriores, de ideias a priori, religiões, dogmas, mitos, educação e cultura; é o produto espontâneo, imediato, inalienável da natureza; resiste a todas as provas, e mostra-se em todos os tempos e em todos os países; em toda parte é invocada com confiança, tão grande é a certeza de que ela existe em todos os homens, e nunca é contada entre os “deuses estranhos”. O ente que não conhece a piedade está fora da humanidade, e essa mesma palavra humanidade é muitas vezes tomada como sinônimo de piedade.
Pode-se objetar a toda boa ação que nasce unicamente das convicções religiosas, que não é desinteressada, que procede do pensamento de uma recompensa ou de um castigo que se espera, enfim, que não é puramente moral. – Considerando-se o móbil moral da piedade, quem ousaria contestar que em todas as épocas, em todos os povos, em todas as situações da vida, em plena anarquia, no meio dos horrores das revoluções e das guerras, nas grandes como nas pequenas coisas, todos os dias, todas as horas, a piedade não prodigaliza os seus efeitos benéficos e verdadeiramente maravilhosos, não impede muitas injustiças, não provoca de improviso mais de uma boa ação sem esperança de recompensa, e que em toda parte onde atua só reconhecemos nela, com admiração e comoção, o puro valor moral sem mistura?
Inveja e piedade, todos têm em si esses dois sentimentos diametralmente opostos; origina-os a comparação involuntária, inevitável da nossa própria situação com a dos outros; segundo essa comparação, reage sobre cada caráter individual um ou outro desses sentimentos, torna-se uma disposição fundamental e a origem dos nossos atos. A inveja só faz elevar, engrossar, consolidar o muro que se erguia entre tu e eu; a piedade, pelo contrário, torna-o delgado e transparente, por vezes derruba-o completamente, e dissipa-se, desse modo, toda a diferença entre eu e os outros homens.
Quando travamos conhecimento com um homem, não tratamos de lhe pesar a inteligência, o valor moral, o que nos levaria a reconhecer-lhe a maldade das intenções, a escassez da razão, a falsidade dos raciocínios, e só nos despertaria desprezo e aversão; consideremos, antes, os seus sofrimentos, misérias, angústias, dores, e assim sentiremos quanto ele nos toca de perto; é então que despertará a nossa simpatia e que, em lugar de ódio e de desprezo, experimentaremos por ele essa piedade, que é o único ágape a que o Evangelho nos convida.
Se considerarmos a perversidade humana e nos dermos pressa em nos indignar com ela, é preciso imediatamente lançar os olhos sobre a miséria da existência humana e, reciprocamente, se a miséria nos assusta, considerar a perversidade; achar-se-á então que se equilibram uma à outra, e reconhecer-se-á a justiça eterna; ver-se-á que o próprio mundo é o julgamento do mundo.
A cólera, embora deveras legítima, acalma-se logo perante a ideia de que aquele que nos ofendeu é um desgraçado. O que a chuva é para o fogo é a piedade para a cólera. Aconselho àquele que não deseja preparar-se remorsos que, quando pense em vingar cruelmente uma injúria, imagine sob as mais vivas cores a sua vingança já realizada, represente-se a sua vítima presa de sofrimentos físicos e morais, em luta com a miséria e a necessidade, e diga a si próprio: eis a minha obra. Se há alguma coisa no mundo que possa extinguir a cólera é com certeza esse pensamento.
O que faz que os pais tenham geralmente maior predileção pelos filhos doentes é que a sua aparência solicita incessantemente a piedade.
A piedade, princípio de toda moralidade, toma também os animais sob a sua proteção, ao passo que os outros sistemas de moral europeia têm para com eles pouquíssima responsabilidade e solicitude. A suposta ausência de direitos dos animais, o preconceito de que o nosso procedimento para com eles não tem importância moral, que não existem, como se diz, deveres para com os animais, é justamente uma ignorância revoltante, uma barbaridade do ocidente, cuja origem está no judaísmo…
É preciso recordar a esses desprezadores dos animais, a esses ocidentais judaizados, que assim como eles foram amamentados pelas mães, também o cão teve mãe que o amamentou.
A piedade com os animais está tão intimamente ligada à bondade de caráter que se pode afirmar que quem é cruel com os animais não pode ser bom.
Uma piedade sem limites para com todos os seres vivos é o penhor mais firme e seguro do procedimento moral; isso não exige nenhuma casuística. Pode-se ter a certeza de que aquele que a possui nunca ofenderá ninguém, nem lhe causará dano nos seus direitos ou na sua pessoa; pelo contrário, será indulgente para com todos, perdoará a todos, prestará socorro ao seu semelhante na medida das suas forças, e todos os seus atos terão o cunho da justiça e do amor pelo próximo. Tentem alguma vez dizer: “Este homem é virtuoso, mas desconhece inteiramente a piedade”, ou então: “É um homem injusto e mau, contudo é muito sensível aos males alheios”; a contradição, nesse caso, torna-se frisante. – Nem todos têm os mesmos gostos; mas não conheço melhor súplica do que aquela com que terminam as peças antigas do teatro índio (como outrora as peças inglesas concluíam com estas palavras: “pelo rei”).
É este o sentido: 
“Que todos os seres vivos se conservem isentos de dores!”

Arthur Schopenhauer, in As dores do mundo

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