A
piedade é esse fato admirável, misterioso, pelo qual vemos a linha
de demarcação, que aos olhos da razão separa totalmente um ser do
outro, desaparecer e o eu não se tornar de modo algum o eu.
Só
a piedade é o princípio real de toda justiça livre e de toda
caridade verdadeira. A piedade é um fato incontestável da
consciência do homem; é-lhe essencialmente própria e não depende
de noções anteriores, de ideias a priori, religiões, dogmas,
mitos, educação e cultura; é o produto espontâneo, imediato,
inalienável da natureza; resiste a todas as provas, e mostra-se em
todos os tempos e em todos os países; em toda parte é invocada com
confiança, tão grande é a certeza de que ela existe em todos os
homens, e nunca é contada entre os “deuses estranhos”. O ente
que não conhece a piedade está fora da humanidade, e essa mesma
palavra humanidade é muitas vezes tomada como sinônimo de piedade.
Pode-se
objetar a toda boa ação que nasce unicamente das convicções
religiosas, que não é desinteressada, que procede do pensamento de
uma recompensa ou de um castigo que se espera, enfim, que não é
puramente moral. – Considerando-se o móbil moral da piedade, quem
ousaria contestar que em todas as épocas, em todos os povos, em
todas as situações da vida, em plena anarquia, no meio dos horrores
das revoluções e das guerras, nas grandes como nas pequenas coisas,
todos os dias, todas as horas, a piedade não prodigaliza os seus
efeitos benéficos e verdadeiramente maravilhosos, não impede muitas
injustiças, não provoca de improviso mais de uma boa ação sem
esperança de recompensa, e que em toda parte onde atua só
reconhecemos nela, com admiração e comoção, o puro valor moral
sem mistura?
Inveja
e piedade, todos têm em si esses dois sentimentos diametralmente
opostos; origina-os a comparação involuntária, inevitável da
nossa própria situação com a dos outros; segundo essa comparação,
reage sobre cada caráter individual um ou outro desses sentimentos,
torna-se uma disposição fundamental e a origem dos nossos atos. A
inveja só faz elevar, engrossar, consolidar o muro que se erguia
entre tu e eu; a piedade, pelo contrário, torna-o delgado e
transparente, por vezes derruba-o completamente, e dissipa-se, desse
modo, toda a diferença entre eu e os outros homens.
Quando
travamos conhecimento com um homem, não tratamos de lhe pesar a
inteligência, o valor moral, o que nos levaria a reconhecer-lhe a
maldade das intenções, a escassez da razão, a falsidade dos
raciocínios, e só nos despertaria desprezo e aversão;
consideremos, antes, os seus sofrimentos, misérias, angústias,
dores, e assim sentiremos quanto ele nos toca de perto; é então que
despertará a nossa simpatia e que, em lugar de ódio e de desprezo,
experimentaremos por ele essa piedade, que é o único ágape a que o
Evangelho nos convida.
Se
considerarmos a perversidade humana e nos dermos pressa em nos
indignar com ela, é preciso imediatamente lançar os olhos sobre a
miséria da existência humana e, reciprocamente, se a miséria nos
assusta, considerar a perversidade; achar-se-á então que se
equilibram uma à outra, e reconhecer-se-á a justiça eterna;
ver-se-á que o próprio mundo é o julgamento do mundo.
A
cólera, embora deveras legítima, acalma-se logo perante a ideia de
que aquele que nos ofendeu é um desgraçado. O que a chuva é para o
fogo é a piedade para a cólera. Aconselho àquele que não deseja
preparar-se remorsos que, quando pense em vingar cruelmente uma
injúria, imagine sob as mais vivas cores a sua vingança já
realizada, represente-se a sua vítima presa de sofrimentos físicos
e morais, em luta com a miséria e a necessidade, e diga a si
próprio: eis a minha obra. Se há alguma coisa no mundo que possa
extinguir a cólera é com certeza esse pensamento.
O
que faz que os pais tenham geralmente maior predileção pelos filhos
doentes é que a sua aparência solicita incessantemente a piedade.
A
piedade, princípio de toda moralidade, toma também os animais sob a
sua proteção, ao passo que os outros sistemas de moral europeia têm
para com eles pouquíssima responsabilidade e solicitude. A suposta
ausência de direitos dos animais, o preconceito de que o nosso
procedimento para com eles não tem importância moral, que não
existem, como se diz, deveres para com os animais, é justamente uma
ignorância revoltante, uma barbaridade do ocidente, cuja origem está
no judaísmo…
É
preciso recordar a esses desprezadores dos animais, a esses
ocidentais judaizados, que assim como eles foram amamentados pelas
mães, também o cão teve mãe que o amamentou.
A
piedade com os animais está tão intimamente ligada à bondade de
caráter que se pode afirmar que quem é cruel com os animais não
pode ser bom.
Uma
piedade sem limites para com todos os seres vivos é o penhor mais
firme e seguro do procedimento moral; isso não exige nenhuma
casuística. Pode-se ter a certeza de que aquele que a possui nunca
ofenderá ninguém, nem lhe causará dano nos seus direitos ou na sua
pessoa; pelo contrário, será indulgente para com todos, perdoará a
todos, prestará socorro ao seu semelhante na medida das suas forças,
e todos os seus atos terão o cunho da justiça e do amor pelo
próximo. Tentem alguma vez dizer: “Este homem é virtuoso, mas
desconhece inteiramente a piedade”, ou então: “É um homem
injusto e mau, contudo é muito sensível aos males alheios”; a
contradição, nesse caso, torna-se frisante. – Nem todos têm os
mesmos gostos; mas não conheço melhor súplica do que aquela com
que terminam as peças antigas do teatro índio (como outrora as
peças inglesas concluíam com estas palavras: “pelo rei”).
É
este o sentido:
“Que todos os seres vivos se conservem isentos de
dores!”
Arthur Schopenhauer, in As dores do mundo
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