Porque era sábado, a família podia despertar mais tarde e viver umas horas de descuido. O casal não iria ao trabalho nem o filho à escola; tinham os três mais tempo para si mesmos. A semana inteira viviam a fazer o que era preciso e assim, entre atos e palavras, tocavam-se apenas como as margens de um rio tocam a paisagem que seu curso delimita. O homem, o primeiro a acordar na casa, abriu a janela do quarto e deu com o sol já em seu esplendor, envolvendo os espaços com uma grossa demão de luz. Um dia como aquele era quase uma dor de tão lindo, quase não cabia no homem. Nem mesmo a janela suportava a claridade que a atravessava para iluminar, à cabeceira da cama, o rosto de sua mulher no travesseiro. E, mesmo sem abrir os olhos, a mulher sabia que lá fora — além de suas pálpebras e das paredes — o verão fulgurava acima das casas. Igual ao marido, ela despertou feliz, espreguiçou-se pronta para desfrutar aquele bônus da vida, experimentando no íntimo uma paz profunda e sentindo que as angústias continuavam dormentes, como se vigorassem em turno incompatível com a sua vigília — e, por isso mesmo, enquanto o destino se distraía, era hora de se entregar à felicidade. O menino ainda dormia. O homem trancou a porta do quarto à chave, voltou à cama e abraçou a mulher. Ficaram ali um tempo, enlaçados, desfrutando o langor de quem nada tem a fazer, senão prolongar o seu deleite. Àquela hora só havia espaço para a comunhão, e ela era tão visceral que o mínimo ruído a perturbaria. Se pudessem, desligariam o canto dos pássaros e o rumor da respiração arfante que eles mesmos produziam. Por fim, levantaram-se e foram tomar banho. Entraram no boxe, uniram-se sob o jato da ducha, e então igual a água caudalosa, a conversa brotou e foi escorrendo dos dois, sem pressa. Vestiram-se em seguida, sentindo a pele fresca como a manhã que continuava a vazar pela janela adentro, e que nem dava mostras de que envelhecia — era preciso cerrar bem os olhos para captar o seu avanço, lento. Os dois iam trocando impressões sobre fatos mundanos, esquecidos de que aqueles momentos passavam definitivamente. Descontraídos, queriam usufruir a manhã e, depois de arrumarem a cama, foram para a sala. De lá, ele saiu à varanda, apanhou o jornal entre os canteiros do jardim e sentou-se na cadeira para ler as notícias; ela seguiu para a cozinha e se pôs a preparar a mesa do café, não sem antes abrir a porta dos fundos. O sol se infiltrava por entre os galhos das árvores no quintal; o vento, vindo de longe, movia suavemente as folhas. Era a mesma cena, cotidiana, mas a mulher a mirava com olhos demorados, e assim as coisas ganhavam uma nova aura — ou a aura podia agora ser vista. O menino apareceu ali, subitamente, ainda de pijama, e ficou a ver o dia funcionando, como um brinquedo, lá fora. A mulher o enlaçou e disse, Bom dia, meu amor, e esse “meu amor” era tão sincero que, para um estranho, soaria falso — era unicamente dela e de seu filho —, e então perguntou-lhe, Dormiu bem?, e ele, movendo a cabeça num sim, afastou-se, atravessou a porta e foi até o quintal. Ela terminou de preparar o café, sem reparar no que o menino fazia, mas só de tê-lo ali, próximo, sua satisfação se alargava. Tanto quanto o marido na varanda e o filho no quintal, ela vivia o instante sem planos, e começou então a cantar baixinho, apenas para si, evitando quebrar aquela harmonia que reinava. Não demorou, estavam todos à mesa, a verdade no silêncio de cada um, e, enquanto conversavam uns assuntos que estavam à mão, os momentos vinham para que os provassem — à semelhança do pão e da manteiga. E, como tinham o sábado pela frente, o sol se aderia, inexorável, a todas as coisas, e as dores estavam adormecidas — logo despertariam, de modo inevitável —, eles, finalmente, se levantaram da mesa e foram fazer essas coisas que todos fazemos enquanto estamos vivos.
João Anzanello Carrascoza, in Aquela água toda
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