Sim
senhor, amávamos. Agora, que todas as leis sociais no-lo impediam,
agora é que nos amávamos deveras. Achávamo-nos jungidos um ao
outro, como as duas almas que o poeta encontrou no Purgatório: Di
pari, come buoi, che vanno a giogo; e digo mal, comparando-nos a
bois, porque nós éramos outra espécie de animal menos tardo, mais
velhaco e lascivo. Eis-nos a caminhar sem saber até onde, nem por
que estradas escusas; problema que me assustou, durante algumas
semanas, mas cuja solução entreguei ao destino. Pobre Destino!
Onde
andarás agora, grande procurador dos negócios humanos? Talvez
estejas a criar pele nova, outra cara, outras maneiras, outro nome, e
não é impossível que... Já me não lembra onde estava... Ah! nas
estradas escusas. Disse eu comigo que já agora seria o que Deus
quisesse. Era a nossa sorte amar-nos; se assim não fora, como
explicaríamos a valsa e o resto?
Virgília
pensava a mesma coisa. Um dia, depois de me confessar que tinha
momentos de remorsos, como eu lhe dissesse que, se tinha remorsos, é
porque me não tinha amor, Virgília cingiu-me com os seus magníficos
braços, murmurando:
– Amo-te,
é a vontade do céu.
E
esta palavra não vinha à toa; Virgília era um pouco religiosa. Não
ouvia missa aos domingos, é verdade, e creio até que só ia às
igrejas em dia de festa, e quando havia lugar vago em alguma tribuna.
Mas rezava todas as noites, com fervor, ou pelo menos, com sono.
Tinha medo às trovoadas; nessas ocasiões, tapava os ouvidos, e
resmoneava todas as orações do catecismo. Na alcova dela havia um
oratoriozinho de jacarandá, obra de talha, de três palmos de
altura, com três imagens dentro; mas não falava dele às amigas; ao
contrário, tachava de beatas as que eram só religiosas. Algum tempo
desconfiei que havia nela certo vexame de crer, e que a sua religião
era uma espécie de camisa de flanela preservativa e clandestina; mas
evidentemente era engano meu.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
Nenhum comentário:
Postar um comentário