domingo, 2 de abril de 2023

Alguns comentários pessoais sobre a tradução literária

O desafio de traduzir kafka

O desafio da tradução criativa começa no momento em que constatamos que a única língua inteiramente ao nosso alcance é aquela em que de fato pensamos e vivemos. É esse limite imposto à elaboração da experiência profunda que a tradução criativa tende a ignorar, pois o que ela na realidade quer é se apropriar da intimidade objetivada em outras línguas.
Acontece que as chamadas verdades da imaginação poética são intratáveis e quase nunca (ou pelo menos nem sempre) se deixam surpreender de uma vez pelo salto de criação de quem traduz, na medida em que costumam se entrincheirar justamente no que é intraduzível.
Só de passagem, é fácil imaginar as agruras de um hipotético tradutor nórdico dos “Poemas (s) da Cabra”, de João Cabral de Melo Neto, diante de um verso como “se a serra é a terra a cabra é pedra”, onde o acúmulo de consoantes duplas, por si só, parece encher de pedregulho a boca do leitor, remetendo a mente e a sensibilidade, no lance de uma única linha, para as asperezas do Nordeste brasileiro e a tenacidade do ser que nele habita.
Foi certamente em função de dificuldades desse tipo que Robert Frost disse, com a maior seriedade, que poesia é aquilo que se perde nas traduções. Todos nós estamos conscientes de que a matéria que a poesia organiza, nos seus momentos de maior felicidade, atinge um grau de condensação e complexidade na língua de partida que mesmo a tradução mais laboriosa e competente não consegue igualar na língua de chegada. Desse modo não parece pessimismo ou exagero afirmar, como faz o comparatista Henry Gifford — cujas formulações teóricas sucintas sustentam esse trabalho —, que a obra traduzida nunca pode ser mais que uma pintura a óleo reproduzida em branco e preto.

Constelação de significados

Evidentemente o exemplo extremo e mais radical das dificuldades de passagem criativa da obra literária de um idioma para outro é dado pela poesia, onde os riscos de empobrecimento involuntário do original são muito maiores do que na prosa. Mas no fundo o que vale para a poesia vale também para a ficção exigente — e com isso descartamos a prosa orientada para o consumo fácil e sem compromisso estético das histórias mastigadas dos best-sellers e afins.
A experiência tanto dos críticos como dos leitores alertas mostra que uma tradução razoavelmente correta de uma narrativa é capaz de acompanhar de perto o texto-base, uma vez que nessa transposição se perde pouco da sua estrutura e portanto pouco do seu sentido mais geral — desde, é claro, que sejam mantidos no texto traduzido os movimentos e as proporções básicas do original.
Mas nem por isso deixa de ser um dado de realidade que a narrativa traduzida fica isolada do seu contexto histórico mais amplo, dissipando sem querer todo um repertório de alusões imanentes ao seu sentido global de obra de arte, aqui entendida simultaneamente como fenômeno estético e fato social.
Para citar um exemplo à mão, basta lembrar a frase de abertura das Memórias de um sargento de milícias — “Era no tempo do rei” —, que já no primeiro compasso do romance cria uma constelação de significados muito diferentes para um leitor brasileiro e um leitor francês, visto que a sensibilidade histórica do habitante da nação que foi colônia discrepa categoricamente da do cidadão que se formou num país colonizador. Naturalmente os exemplos dessa natureza podem ser multiplicados à vontade, seja na direção que for.
Mas também o tom ou a posição do narrador é determinante, na prosa de ficção, não só do modo de compor a narrativa como dos efeitos que ela intencionalmente produz, uma vez que é esse timbre de voz que estabelece o ângulo através do qual o leitor entra numa história para participar das suas peripécias.

Metamorfosear kafka

Nessa linha de raciocínio, banal em teoria literária, uma tradução de Kafka que desconsidere o teor da sua linguagem de protocolo, incumbida no original de registrar, com a maior sem-cerimônia, os acontecimentos mais insólitos, pode transformar (ou metamorfosear) Kafka num escritor que ele não é nem nunca pretendeu ser, como por exemplo um autor fantástico tout court. Pois o fascínio e a novidade da escrita kafkiana derivam exatamente da colisão entre o pormenor realista, beneficiado pela posição recuada do narrador, e a fantasmagoria narrada, momento em que esta adquire, em termos ficcionais, a credibilidade do real.
Mas até uma tradução sensível a essas peculiaridades pode quebrar a cara em obstáculos quase intransponíveis. Para mencionar somente uma experiência pessoal, que talvez ilustre o que aqui se quer dizer, ao traduzir A metamorfose tive de enfrentar algumas armadilhas logo na primeira frase. Como muitos talvez se lembrem (pois A metamorfose é um dos livros mais lidos do mundo), essa frase afirma o seguinte: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”.
A primeira precaução tomada no trabalho foi incorporar ao texto a tradução de todas as palavras da frase alemã, sem deixar nada de fora por questão de economia ou limpeza, uma vez que em Kafka as chamadas partículas de preenchimento representam uma espécie de supérfluo indispensável. Procurou-se também estabelecer em português uma ordem de palavras que não desse margem a equívocos gratuitos, como por exemplo a sequência “encontrou-se em sua cama metamorfoseado” em vez de “encontrou-se metamorfoseado em sua cama”, visto não ser impossível em Kafka — embora aqui não seja o caso — que alguém se metamorfoseasse numa cama.

Começa mal e termina pior

Além disso, traduzi verwandelt, do verbo verwandeln (metamorfosear), por “metamorfoseado” e não por “transformado”, como fizeram antes de mim outros tradutores, e isso pela razão óbvia de que o título da novela é “Verwandlung” (metamorfose), já consagrado em vários idiomas, e deliberadamente fortalecido na oração que põe a narrativa em movimento. Sabe-se por outro lado que essa frase de abertura é uma das mais drásticas da prosa moderna, e que já está balizado o curso posterior da novela, que é a progressiva liquidação do inseto Gregor pela família Samsa.
Com efeito, aparecem no original, em rápida sucessão, três negações representadas pelo prefixo alemão “un”: “unruhig” (intranquilo), “ungeheuer” (enorme, gigantesco, monstruoso) e “Ungeziefer” (inseto daninho que ataca pessoas, animais, plantas e provisões). Muito bem: dessas três partículas de negação só foi possível resgatar uma, a de “unruhig”, aqui traduzido por “intranquilo” e não, como também já se fez entre nós, por “agitado” ou coisa parecida. Mas certamente isso foi muito pouco, já que A metamorfose, como se disse antes, é uma história que começa mal e termina pior ainda, fato que os três ingredientes verbais de negação se incumbem não só de antecipar, como também de deixar literalmente marcado.
Entretanto, as baixas sofridas pela tradução não pararam aí: de acordo com pelo menos um intérprete importante de A metamorfose, tendo sido Kafka um entomologista amador, não poderia ser casual o emprego, já no pórtico da sua narrativa, do adjetivo “ungeheuer”, que significa etimologicamente “não familiar”, infamiliaris (portanto, “fora da família”), e do substantivo Ungeziefer, cujo étimo remete à noção de “animal inadequado ou que não se presta ao sacrifício”.

Direito à sobrevivência

Ora, para quem conhece o entrecho da novela, o acoplamento incisivo dessas duas palavras já forneceria, num nível por assim dizer arqueológico da linguagem, uma das mais perfeitas interpretações dessa tragédia familiar kafkiana. Pois é justamente por causa da sua metamorfose em inseto que Gregor deixa de se “sacrificar” pela família e é “posto para fora dela até a morte”, como se fosse um parasita que não pode ser parasitado. A única justificativa para essa carência do texto traduzido é o fato de que nem o leitor alemão médio seria capaz de perceber tais nuances eruditas.
Estendi-me um pouco na apresentação desse exemplo pessoal para reforçar a opinião, que evidentemente não é só minha, de que, mesmo sendo escrupulosa, a tradução tende para algum tipo de perda ou dispersão, na maior parte das vezes difícil de compensar; pois por mais que o tradutor sinta e avalie “por dentro” o original, ele está fadado a ceder ora a pressões da sua língua, ora ao caráter muitas vezes inexpugnável da obra construída no idioma alheio.
Em resumo, a tradução criativa (a única que se justifica em literatura) é sem dúvida alguma uma das maneiras mais fecundas de cultivar e socializar a Weltliteratur, combatendo na prática o isolamento cultural que já se tornou uma forma objetiva de anacronismo. Mas ela é necessariamente falível. Sendo assim, uma vez reconhecido o limiar em que uma língua ainda é capaz de absorver a experiência estético-social sedimentada em outra, o que o tradutor imaginativo pode e deve tentar conseguir é implantar o seu texto em algum lugar situado entre as duas literaturas, de tal modo que ele não seja nem estranho nem familiar para o leitor a que se destina.
De resto, a única coisa que garante ao texto traduzido o direito à sobrevivência é o senso de descoberta que ele mais ou menos compartilha com o original — e, mesmo assim, enquanto perduram as exigências específicas que, na época, a literatura faz da tradução em nome das suas próprias necessidades. Talvez seja esse, na realidade, o maior de todos os desafios que a tradução tem de enfrentar.

Exercícios de tradução

O que aqui se apresenta de maneira meio sumária são três exemplos diferentes de tradução, que refletem ou procuram refletir a composição de três tipos diferentes de texto com um denominador comum, que é o que se pode chamar de poesia das ideias.
O primeiro exemplo é um poema epigramático de Brecht, e os outros dois são peças curtas e monolíticas da primeira fase de Kafka.
O poema de Brecht é um epitáfio que ele escreveu ao partir de Nova York. Esse epitáfio deriva de outro, que é o famoso “Epitáfio para M.”. O “Epitáfio para M.” diz o seguinte:

Aos tubarões eu escapei
Os tigres eu liquidei
Devorado mesmo eu fui
Pelos percevejos.

Os exageros, intencionais nessa versão literal, servem apenas para mostrar os torneios sintáticos usados por Brecht para formular o enunciado, que se sustenta sobretudo na mudança da voz do verbo que acompanha o argumento. Os dois primeiros verbos (escapei, liquidei) chocam-se com o terceiro (fui devorado), que apareceu de surpresa. A valentia para dar conta dos grandes adversários (tubarões e tigres) não é suficiente para impedir a derrota diante dos insetos (percevejos).
Quando Brecht resolveu ir embora dos Estados Unidos, depois de perseguido pela Comissão de Atividades Antinorte-americanas do senador McCarthy, ele usou o mesmo padrão formal para escrever o “Epitáfio ao partir de Nova York”, que é possível traduzir assim:

Fugi aos tigres
Nutri os percevejos
Fui devorado
Pelas mediocridades

Os recursos de verso e linguagem são os mesmos, mas o sentido mudou. Evidentemente isso acontece porque aquilo que no primeiro epitáfio era um inimigo concreto, embora minúsculo (percevejos), aqui se torna uma derivação abstrata: “fui devorado/ pelas mediocridades”. Pelo cotejo entre os poemas, fica claro o que Brecht quis dizer: as “mediocridades” (da comissão McCarthy) devoraram o sujeito lírico tanto quanto antes os percevejos. (Percevejos e mediocridades inquisitoriais à la McCarthy são a mesma coisa.) Noutras palavras, os termos desses dois poemas cortantes de Brecht são quase os mesmos, os recursos de métrica e a disposição dos verbos também, mas a ideia é diferente. Ou seja: a poesia, neles, está contida mais na ideia veiculada pelas palavras do que (por assim dizer) nas próprias palavras, que se tornam transparentes. (Aliás, Brecht é sobretudo um poeta de ideias — que domina soberbamente a linguagem.)
Vamos a Kafka.
No primeiro livro publicado por Kafka, intitulado Contemplação, consta um texto breve chamado “As árvores”. Ele diz o seguinte:

Pois somos como troncos de árvores na neve. Aparentemente eles jazem soltos na superfície e com um pequeno empurrão deveria ser possível afastá-los do caminho. Não, não é possível, pois estão firmemente ligados ao solo. Mas veja, até isso é só aparente.

A síntese poética se dá aqui na fluência da linguagem, que na sua simplicidade aparente, que reflete o tema, remete a um núcleo de significados complexos. Kafka parece perguntar — Afinal, o que nós somos? Nós somos, diz ele, como troncos de árvore que ficam visíveis num campo de neve. A visão que se tem desses troncos é a de que eles estão soltos na superfície e podem ser deslocados com um tranco. Mas não, não é assim — diz o sujeito lírico. Isso não é possível porque os troncos estão com as raízes fincadas na terra, ou seja, por baixo da neve. Essa visão, no entanto, também parece falsa; na verdade ela é apenas uma aparência. Ou seja: nós não sabemos o que somos. O que parece, nunca é.
Essa paráfrase sumária tem um objetivo meramente explicativo; ela não reproduz a múltipla integridade do texto. Olhado de perto, este é ao mesmo tempo claro e evasivo. Contém duas visões sucessivas do que nós somos, e a segunda nega a primeira. É certamente por isso que as palavras-chave desse poema em prosa são o advérbio aparentemente, no início, e o aparente (em alemão, scheinbar) na última frase. A minha impressão é a de que é difícil ser mais leve e menos superficial do que nesse texto do jovem Kafka. A tradução tem de levar isso em consideração para se constituir também como texto. Caso contrário, está tudo errado.
Uma outra peça de Contemplação que tem afinidade com essa, mas cuja poesia pesa menos na dialética das ideias do que no da linguagem, é “Desejo de se tornar índio”. O título “Wunsch, Indianer zu werden” tem dois r que já prefiguram a fluidez e a velocidade do poema em prosa, que consta de apenas uma frase. Na tradução eu encontrei um equivalente possível, embora insuficiente, na repetição dos d: “Desejo de se tornar índio”. O texto diz o seguinte:

Se realmente se fosse um índio, desde logo alerta e, em cima do cavalo na corrida, enviesado no ar, se estremecesse sempre por um átimo sobre o chão trepidante, até que se largou a espora, pois não havia espora, até que se jogou fora a rédea, pois não havia rédea, e diante de si mal se viu o campo como pradaria ceifada rente, já sem pescoço de cavalo nem cabeça de cavalo.

O texto está construído a partir de uma hipótese (se alguém realmente fosse um índio), hipótese que no curso da frase se torna uma realidade (em cima do cavalo, na corrida, estremecendo sobre o chão trepidante), para depois recuar para a hipótese do início, só que desta vez mais inconsistente (largou a espora, pois não havia espora, jogou fora a rédea, pois não havia rédea), até se autoanular completamente: o cavalo do início da frase fica, no fim, “sem pescoço de cavalo nem cabeça de cavalo”.
Isto é: o índio já não tem cavalo, na verdade ele já não é nem um índio que cavalga na pradaria, é apenas um desejo que se desvanece. O fato, no entanto, é que, de todo esse processo de hipótese, afirmação e negação, restou o poema em prosa, que é um corpo feito de palavras. A velocidade com que se dá esse processo é diagramada pela corrida exemplar da frase única. E se não for possível captá-la na tradução, então não sobra nada do poema.

Modesto Carone, in Lição de Kafka

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