O
desafio de traduzir kafka
O
desafio da tradução criativa começa no momento em que constatamos
que a única língua inteiramente ao nosso alcance é aquela em que
de fato pensamos e vivemos. É esse limite imposto à elaboração da
experiência profunda que a tradução criativa tende a ignorar, pois
o que ela na realidade quer é se apropriar da intimidade objetivada
em outras línguas.
Acontece
que as chamadas verdades da imaginação poética são intratáveis e
quase nunca (ou pelo menos nem sempre) se deixam surpreender de uma
vez pelo salto de criação de quem traduz, na medida em que costumam
se entrincheirar justamente no que é intraduzível.
Só
de passagem, é fácil imaginar as agruras de um hipotético tradutor
nórdico dos “Poemas (s) da Cabra”, de João Cabral de Melo Neto,
diante de um verso como “se a serra é a terra a cabra é pedra”,
onde o acúmulo de consoantes duplas, por si só, parece encher de
pedregulho a boca do leitor, remetendo a mente e a sensibilidade, no
lance de uma única linha, para as asperezas do Nordeste brasileiro e
a tenacidade do ser que nele habita.
Foi
certamente em função de dificuldades desse tipo que Robert Frost
disse, com a maior seriedade, que poesia é aquilo que se perde nas
traduções. Todos nós estamos conscientes de que a matéria que a
poesia organiza, nos seus momentos de maior felicidade, atinge um
grau de condensação e complexidade na língua de partida que mesmo
a tradução mais laboriosa e competente não consegue igualar na
língua de chegada. Desse modo não parece pessimismo ou exagero
afirmar, como faz o comparatista Henry Gifford — cujas formulações
teóricas sucintas sustentam esse trabalho —, que a obra traduzida
nunca pode ser mais que uma pintura a óleo reproduzida em branco e
preto.
Constelação
de significados
Evidentemente
o exemplo extremo e mais radical das dificuldades de passagem
criativa da obra literária de um idioma para outro é dado pela
poesia, onde os riscos de empobrecimento involuntário do original
são muito maiores do que na prosa. Mas no fundo o que vale para a
poesia vale também para a ficção exigente — e com isso
descartamos a prosa orientada para o consumo fácil e sem compromisso
estético das histórias mastigadas dos best-sellers e afins.
A
experiência tanto dos críticos como dos leitores alertas mostra que
uma tradução razoavelmente correta de uma narrativa é capaz de
acompanhar de perto o texto-base, uma vez que nessa transposição se
perde pouco da sua estrutura e portanto pouco do seu sentido mais
geral — desde, é claro, que sejam mantidos no texto traduzido os
movimentos e as proporções básicas do original.
Mas
nem por isso deixa de ser um dado de realidade que a narrativa
traduzida fica isolada do seu contexto histórico mais amplo,
dissipando sem querer todo um repertório de alusões imanentes ao
seu sentido global de obra de arte, aqui entendida simultaneamente
como fenômeno estético e fato social.
Para
citar um exemplo à mão, basta lembrar a frase de abertura das
Memórias de um sargento de milícias — “Era no tempo do
rei” —, que já no primeiro compasso do romance cria uma
constelação de significados muito diferentes para um leitor
brasileiro e um leitor francês, visto que a sensibilidade histórica
do habitante da nação que foi colônia discrepa categoricamente da
do cidadão que se formou num país colonizador. Naturalmente os
exemplos dessa natureza podem ser multiplicados à vontade, seja na
direção que for.
Mas
também o tom ou a posição do narrador é determinante, na prosa de
ficção, não só do modo de compor a narrativa como dos efeitos que
ela intencionalmente produz, uma vez que é esse timbre de voz que
estabelece o ângulo através do qual o leitor entra numa história
para participar das suas peripécias.
Metamorfosear
kafka
Nessa
linha de raciocínio, banal em teoria literária, uma tradução de
Kafka que desconsidere o teor da sua linguagem de protocolo,
incumbida no original de registrar, com a maior sem-cerimônia, os
acontecimentos mais insólitos, pode transformar (ou metamorfosear)
Kafka num escritor que ele não é nem nunca pretendeu ser, como por
exemplo um autor fantástico tout court. Pois o fascínio e a
novidade da escrita kafkiana derivam exatamente da colisão entre o
pormenor realista, beneficiado pela posição recuada do narrador, e
a fantasmagoria narrada, momento em que esta adquire, em termos
ficcionais, a credibilidade do real.
Mas
até uma tradução sensível a essas peculiaridades pode quebrar a
cara em obstáculos quase intransponíveis. Para mencionar somente
uma experiência pessoal, que talvez ilustre o que aqui se quer
dizer, ao traduzir A metamorfose tive de enfrentar algumas
armadilhas logo na primeira frase. Como muitos talvez se lembrem
(pois A metamorfose é um dos livros mais lidos do mundo),
essa frase afirma o seguinte: “Quando certa manhã Gregor Samsa
acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama
metamorfoseado num inseto monstruoso”.
A
primeira precaução tomada no trabalho foi incorporar ao texto a
tradução de todas as palavras da frase alemã, sem deixar nada de
fora por questão de economia ou limpeza, uma vez que em Kafka as
chamadas partículas de preenchimento representam uma espécie de
supérfluo indispensável. Procurou-se também estabelecer em
português uma ordem de palavras que não desse margem a equívocos
gratuitos, como por exemplo a sequência “encontrou-se em sua cama
metamorfoseado” em vez de “encontrou-se metamorfoseado em sua
cama”, visto não ser impossível em Kafka — embora aqui não
seja o caso — que alguém se metamorfoseasse numa cama.
Começa
mal e termina pior
Além
disso, traduzi verwandelt, do verbo verwandeln
(metamorfosear), por “metamorfoseado” e não por “transformado”,
como fizeram antes de mim outros tradutores, e isso pela razão óbvia
de que o título da novela é “Verwandlung” (metamorfose), já
consagrado em vários idiomas, e deliberadamente fortalecido na
oração que põe a narrativa em movimento. Sabe-se por outro lado
que essa frase de abertura é uma das mais drásticas da prosa
moderna, e que já está balizado o curso posterior da novela, que é
a progressiva liquidação do inseto Gregor pela família Samsa.
Com
efeito, aparecem no original, em rápida sucessão, três negações
representadas pelo prefixo alemão “un”: “unruhig”
(intranquilo), “ungeheuer” (enorme, gigantesco, monstruoso) e
“Ungeziefer” (inseto daninho que ataca pessoas, animais, plantas
e provisões). Muito bem: dessas três partículas de negação só
foi possível resgatar uma, a de “unruhig”, aqui traduzido por
“intranquilo” e não, como também já se fez entre nós, por
“agitado” ou coisa parecida. Mas certamente isso foi muito pouco,
já que A metamorfose, como se disse antes, é uma história que
começa mal e termina pior ainda, fato que os três ingredientes
verbais de negação se incumbem não só de antecipar, como também
de deixar literalmente marcado.
Entretanto,
as baixas sofridas pela tradução não pararam aí: de acordo com
pelo menos um intérprete importante de A metamorfose, tendo
sido Kafka um entomologista amador, não poderia ser casual o
emprego, já no pórtico da sua narrativa, do adjetivo “ungeheuer”,
que significa etimologicamente “não familiar”, infamiliaris
(portanto, “fora da família”), e do substantivo Ungeziefer,
cujo étimo remete à noção de “animal inadequado ou que não se
presta ao sacrifício”.
Direito
à sobrevivência
Ora,
para quem conhece o entrecho da novela, o acoplamento incisivo dessas
duas palavras já forneceria, num nível por assim dizer arqueológico
da linguagem, uma das mais perfeitas interpretações dessa tragédia
familiar kafkiana. Pois é justamente por causa da sua metamorfose em
inseto que Gregor deixa de se “sacrificar” pela família e é
“posto para fora dela até a morte”, como se fosse um parasita
que não pode ser parasitado. A única justificativa para essa
carência do texto traduzido é o fato de que nem o leitor alemão
médio seria capaz de perceber tais nuances eruditas.
Estendi-me
um pouco na apresentação desse exemplo pessoal para reforçar a
opinião, que evidentemente não é só minha, de que, mesmo sendo
escrupulosa, a tradução tende para algum tipo de perda ou
dispersão, na maior parte das vezes difícil de compensar; pois por
mais que o tradutor sinta e avalie “por dentro” o original, ele
está fadado a ceder ora a pressões da sua língua, ora ao caráter
muitas vezes inexpugnável da obra construída no idioma alheio.
Em
resumo, a tradução criativa (a única que se justifica em
literatura) é sem dúvida alguma uma das maneiras mais fecundas de
cultivar e socializar a Weltliteratur, combatendo na prática
o isolamento cultural que já se tornou uma forma objetiva de
anacronismo. Mas ela é necessariamente falível. Sendo assim, uma
vez reconhecido o limiar em que uma língua ainda é capaz de
absorver a experiência estético-social sedimentada em outra, o que
o tradutor imaginativo pode e deve tentar conseguir é implantar o
seu texto em algum lugar situado entre as duas literaturas, de tal
modo que ele não seja nem estranho nem familiar para o leitor a que
se destina.
De
resto, a única coisa que garante ao texto traduzido o direito à
sobrevivência é o senso de descoberta que ele mais ou menos
compartilha com o original — e, mesmo assim, enquanto perduram as
exigências específicas que, na época, a literatura faz da tradução
em nome das suas próprias necessidades. Talvez seja esse, na
realidade, o maior de todos os desafios que a tradução tem de
enfrentar.
Exercícios
de tradução
O
que aqui se apresenta de maneira meio sumária são três exemplos
diferentes de tradução, que refletem ou procuram refletir a
composição de três tipos diferentes de texto com um denominador
comum, que é o que se pode chamar de poesia das ideias.
O
primeiro exemplo é um poema epigramático de Brecht, e os outros
dois são peças curtas e monolíticas da primeira fase de Kafka.
O
poema de Brecht é um epitáfio que ele escreveu ao partir de Nova
York. Esse epitáfio deriva de outro, que é o famoso “Epitáfio
para M.”. O “Epitáfio para M.” diz o seguinte:
Aos
tubarões eu escapei
Os
tigres eu liquidei
Devorado
mesmo eu fui
Pelos
percevejos.
Os
exageros, intencionais nessa versão literal, servem apenas para
mostrar os torneios sintáticos usados por Brecht para formular o
enunciado, que se sustenta sobretudo na mudança da voz do verbo que
acompanha o argumento. Os dois primeiros verbos (escapei,
liquidei) chocam-se com o terceiro (fui devorado), que
apareceu de surpresa. A valentia para dar conta dos grandes
adversários (tubarões e tigres) não é suficiente para impedir a
derrota diante dos insetos (percevejos).
Quando
Brecht resolveu ir embora dos Estados Unidos, depois de perseguido
pela Comissão de Atividades Antinorte-americanas do senador
McCarthy, ele usou o mesmo padrão formal para escrever o “Epitáfio
ao partir de Nova York”, que é possível traduzir assim:
Fugi
aos tigres
Nutri
os percevejos
Fui
devorado
Pelas
mediocridades
Os
recursos de verso e linguagem são os mesmos, mas o sentido mudou.
Evidentemente isso acontece porque aquilo que no primeiro epitáfio
era um inimigo concreto, embora minúsculo (percevejos), aqui se
torna uma derivação abstrata: “fui devorado/ pelas
mediocridades”. Pelo cotejo entre os poemas, fica claro o que
Brecht quis dizer: as “mediocridades” (da comissão McCarthy)
devoraram o sujeito lírico tanto quanto antes os percevejos.
(Percevejos e mediocridades inquisitoriais à la McCarthy são a
mesma coisa.) Noutras palavras, os termos desses dois poemas
cortantes de Brecht são quase os mesmos, os recursos de métrica e a
disposição dos verbos também, mas a ideia é diferente. Ou
seja: a poesia, neles, está contida mais na ideia veiculada pelas
palavras do que (por assim dizer) nas próprias palavras, que se
tornam transparentes. (Aliás, Brecht é sobretudo um poeta de
ideias — que domina soberbamente a linguagem.)
Vamos
a Kafka.
No
primeiro livro publicado por Kafka, intitulado Contemplação,
consta um texto breve chamado “As árvores”. Ele diz o seguinte:
Pois
somos como troncos de árvores na neve. Aparentemente eles jazem
soltos na superfície e com um pequeno empurrão deveria ser possível
afastá-los do caminho. Não, não é possível, pois estão
firmemente ligados ao solo. Mas veja, até isso é só aparente.
A
síntese poética se dá aqui na fluência da linguagem, que na sua
simplicidade aparente, que reflete o tema, remete a um núcleo de
significados complexos. Kafka parece perguntar — Afinal, o que nós
somos? Nós somos, diz ele, como troncos de árvore que ficam
visíveis num campo de neve. A visão que se tem desses troncos é a
de que eles estão soltos na superfície e podem ser deslocados com
um tranco. Mas não, não é assim — diz o sujeito lírico. Isso
não é possível porque os troncos estão com as raízes fincadas na
terra, ou seja, por baixo da neve. Essa visão, no entanto, também
parece falsa; na verdade ela é apenas uma aparência. Ou seja: nós
não sabemos o que somos. O que parece, nunca é.
Essa
paráfrase sumária tem um objetivo meramente explicativo; ela não
reproduz a múltipla integridade do texto. Olhado de perto, este é
ao mesmo tempo claro e evasivo. Contém duas visões sucessivas do
que nós somos, e a segunda nega a primeira. É certamente por isso
que as palavras-chave desse poema em prosa são o advérbio
aparentemente, no início, e o aparente (em alemão,
scheinbar) na última frase. A minha impressão é a de que é
difícil ser mais leve e menos superficial do que nesse texto do
jovem Kafka. A tradução tem de levar isso em consideração para se
constituir também como texto. Caso contrário, está tudo errado.
Uma
outra peça de Contemplação que tem afinidade com essa, mas
cuja poesia pesa menos na dialética das ideias do que no da
linguagem, é “Desejo de se tornar índio”. O título “Wunsch,
Indianer zu werden” tem dois r que já prefiguram a
fluidez e a velocidade do poema em prosa, que consta de apenas uma
frase. Na tradução eu encontrei um equivalente possível, embora
insuficiente, na repetição dos d: “Desejo de se tornar
índio”. O texto diz o seguinte:
Se
realmente se fosse um índio, desde logo alerta e, em cima do cavalo
na corrida, enviesado no ar, se estremecesse sempre por um átimo
sobre o chão trepidante, até que se largou a espora, pois não
havia espora, até que se jogou fora a rédea, pois não havia rédea,
e diante de si mal se viu o campo como pradaria ceifada rente, já
sem pescoço de cavalo nem cabeça de cavalo.
O
texto está construído a partir de uma hipótese (se alguém
realmente fosse um índio), hipótese que no curso da frase se torna
uma realidade (em cima do cavalo, na corrida, estremecendo sobre o
chão trepidante), para depois recuar para a hipótese do início, só
que desta vez mais inconsistente (largou a espora, pois não havia
espora, jogou fora a rédea, pois não havia rédea), até se
autoanular completamente: o cavalo do início da frase fica, no fim,
“sem pescoço de cavalo nem cabeça de cavalo”.
Isto
é: o índio já não tem cavalo, na verdade ele já não é nem um
índio que cavalga na pradaria, é apenas um desejo que se desvanece.
O fato, no entanto, é que, de todo esse processo de hipótese,
afirmação e negação, restou o poema em prosa, que é um corpo
feito de palavras. A velocidade com que se dá esse processo é
diagramada pela corrida exemplar da frase única. E se não for
possível captá-la na tradução, então não sobra nada do poema.
Modesto Carone, in Lição de Kafka
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