terça-feira, 28 de março de 2023

Um presente para vocês

E para mim também. Não sei se algum leitor se lembra de um texto meu, de 14 de novembro de 1970, em que eu convidava Carlos Drummond de Andrade a visitar esta coluna, dando-me um poema seu. E que a remuneração seria, é claro, para ele. Pois não é que Drummond aceitou? Mas não quer remuneração: é flor dada.
E é hoje mesmo que seu poema vem nos visitar, aqui, nesta mesma seção: cuida assim no mesmo dia da sua coluna e cuida da minha, cavalheiro que ajuda a dama a descer do cavalo.
Há uma semana minha casa está em polvorosa. Tudo para preparar a chegada do poema de um poeta que vocês e eu amamos, o maior poeta do Brasil de todos os tempos. Mandei 15 faxineiros virem fazer rebrilhar minha casa, o chão está nos espelhando. Tirei os cristais guardados a mil chaves, fi-los refulgir e tilintar, para receber gélido champanha. Mandei buscar da Escócia um uísque, mas acho que o poeta não é de beber. Fui então ao Instituto do Café para eles me darem café tipo exportação, esse café que é brasileiro e que no entanto só se toma bem na Itália. Os 30 lustres da sala estão todos nervosos e assanhados de tantos reflexos e disflexos e tantas reverberações, brilhações e fulgurações, a résteas e raios, e doidos pingentes trêmulos da mais alvoroçada claridade – tudo iluminado, nada de pouca luz para recebermos o poema. As vidraças estão tão transparentes de limpas que a gente pode até se enganar e atravessá-las.
E as flores? Todas as jarras da casa estão transbordando de flores, montões de cravos vermelhos com corolas arrebitadas, botões entreabertos de dúzias de rosas brancas e amarelas, e outras tão vermelhas, das graúdas e quase comíveis. Mandei plantar depressa um jasmineiro-trepadeira nas paredes do terraço, já com jasmim, mas de perfume suave, só um pouco inebriante. Também mandei plantar no canto da sala uma moita de avencas fresquíssimas que se dobram sobre elas próprias em verdes curvas de suas milhares de folhinhas de samambaias, moita que dá vontade de se pôr o rosto dentro dela e receber em cheio o seu sensual agreste. Escolhi os eucaliptos os mais altos, e eles ultrapassam o teto que mandei abrir para que as estrelas da noite escura pisquem sobre nós. Sei que vocês estavam esperando receber a visita sábado de manhã. Mas na verdade hoje é noite e apesar da lua cheia o céu é escuro de uma pessoa se perder com delícia no seu alto negrume.
E que roupa usar? Uma túnica branca, não em sinal de pureza que não tenho, mas porque túnica branca é bonito. Lamentei ter cortado meus cabelos mas já era tarde, não dava tempo de mandá-los crescer.
E eis-me sentada no sofá, esperando. Cada minuto que passa, ele não vem. Temo que à última hora o poeta escolha melhor guarita para o seu poema. Embora eu ache que nós, leitores meus e eu, temos feito desta seção o melhor possível, começo a nos acusar da coluna ser desigual, às vezes bem fraca, mas o poeta sabe que quem escreve com frequência e dia certo é desigual. Será que ele escolheu a coluna de Carlinhos de Oliveira?
Mas tocam a campainha da porta. É o poeta que vos visita e me visita. Ei-lo:

O DEUS DE CADA HOMEM

Quando digo “meu Deus”
afirmo a propriedade.
Há mil deuses pessoais
em nichos da cidade.
Quando digo “meu Deus”,
crio cumplicidade.
Mais fraco, sou mais forte
do que a desirmandade.
Quando digo “meu Deus”,
grito minha orfandade.
O rei que me ofereço
rouba-me a liberdade.
Quando digo “meu Deus”,
choro minha ansiedade.
Não sei que fazer dele
na microeternidade.
Carlos Drummond de Andrade

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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