E
para mim também. Não sei se algum leitor se lembra de um texto meu,
de 14 de novembro de 1970, em que eu convidava Carlos Drummond de
Andrade a visitar esta coluna, dando-me um poema seu. E que a
remuneração seria, é claro, para ele. Pois não é que Drummond
aceitou? Mas não quer remuneração: é flor dada.
E
é hoje mesmo que seu poema vem nos visitar, aqui, nesta mesma seção:
cuida assim no mesmo dia da sua coluna e cuida da minha, cavalheiro
que ajuda a dama a descer do cavalo.
Há
uma semana minha casa está em polvorosa. Tudo para preparar a
chegada do poema de um poeta que vocês e eu amamos, o maior poeta do
Brasil de todos os tempos. Mandei 15 faxineiros virem fazer rebrilhar
minha casa, o chão está nos espelhando. Tirei os cristais guardados
a mil chaves, fi-los refulgir e tilintar, para receber gélido
champanha. Mandei buscar da Escócia um uísque, mas acho que o poeta
não é de beber. Fui então ao Instituto do Café para eles me darem
café tipo exportação, esse café que é brasileiro e que no
entanto só se toma bem na Itália. Os 30 lustres da sala estão
todos nervosos e assanhados de tantos reflexos e disflexos e tantas
reverberações, brilhações e fulgurações, a résteas e raios, e
doidos pingentes trêmulos da mais alvoroçada claridade – tudo
iluminado, nada de pouca luz para recebermos o poema. As vidraças
estão tão transparentes de limpas que a gente pode até se enganar
e atravessá-las.
E
as flores? Todas as jarras da casa estão transbordando de flores,
montões de cravos vermelhos com corolas arrebitadas, botões
entreabertos de dúzias de rosas brancas e amarelas, e outras tão
vermelhas, das graúdas e quase comíveis. Mandei plantar depressa um
jasmineiro-trepadeira nas paredes do terraço, já com jasmim, mas de
perfume suave, só um pouco inebriante. Também mandei plantar no
canto da sala uma moita de avencas fresquíssimas que se dobram sobre
elas próprias em verdes curvas de suas milhares de folhinhas de
samambaias, moita que dá vontade de se pôr o rosto dentro dela e
receber em cheio o seu sensual agreste. Escolhi os eucaliptos os mais
altos, e eles ultrapassam o teto que mandei abrir para que as
estrelas da noite escura pisquem sobre nós. Sei que vocês estavam
esperando receber a visita sábado de manhã. Mas na verdade hoje é
noite e apesar da lua cheia o céu é escuro de uma pessoa se perder
com delícia no seu alto negrume.
E
que roupa usar? Uma túnica branca, não em sinal de pureza que não
tenho, mas porque túnica branca é bonito. Lamentei ter cortado meus
cabelos mas já era tarde, não dava tempo de mandá-los crescer.
E
eis-me sentada no sofá, esperando. Cada minuto que passa, ele não
vem. Temo que à última hora o poeta escolha melhor guarita para o
seu poema. Embora eu ache que nós, leitores meus e eu, temos feito
desta seção o melhor possível, começo a nos acusar da coluna ser
desigual, às vezes bem fraca, mas o poeta sabe que quem escreve com
frequência e dia certo é desigual. Será que ele escolheu a coluna
de Carlinhos de Oliveira?
Mas
tocam a campainha da porta. É o poeta que vos visita e me visita.
Ei-lo:
O
DEUS DE CADA HOMEM
Quando
digo “meu Deus”
afirmo
a propriedade.
Há
mil deuses pessoais
em
nichos da cidade.
Quando
digo “meu Deus”,
crio
cumplicidade.
Mais
fraco, sou mais forte
do
que a desirmandade.
Quando
digo “meu Deus”,
grito
minha orfandade.
O
rei que me ofereço
rouba-me
a liberdade.
Quando
digo “meu Deus”,
choro
minha ansiedade.
Não
sei que fazer dele
na
microeternidade.
Carlos
Drummond de Andrade
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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