Um
dos principais erros do ansioso é procurar “veneno” em seus
parceiros amorosos. Aquela pessoa solar não tem nenhuma graça.
Aquela pessoa equilibrada, solidificada, bonançosa, que realmente
acredita em coisas a ponto de ficar bem porque acredita
em coisas (tipo “esse livro do Osho mudou a minha vida”),
é chata. E, sim, concordo com você, meio limitada.
Mas
pense bem: você é um trem fantasma descarrilado cujo condutor está
de ponta-cabeça. Claro que, se outro trem fantasma descarrilado com
condutor de ponta-cabeça cruzar seu caminho, vai ser uma explosão
louca de sabores densos e picantes. Você morrerá inúmeras vezes,
mas terá valido a pena. E a coisa toda vicia num grau, que periga
você levantar feito um joão bobo, lá do trilho mesmo,
ensanguentado, e implorar mais. E depois mais um pouco. O sexo entre
dois seres atormentados e pré-suicidas é o único sexo possível, o
resto é amorzinho para fazer nenê.
Só
que para tudo, chega. E é nessa hora do “para tudo, chega” que
muitos arrumam o famoso cônjuge “ele faz muito bem pra mim”.
Aquele que não é o sexo do ano, não é a longa conversa “vamos
rir até quatro da manhã de como somos meio infelizes”, mas
melhora sua ansiedade, melhora seu pânico, diminui a sua vontade de
fazer minicortes pelo seu próprio corpo. Em contrapartida, esse
cônjuge “play feliz”, com frequência uma pessoa besta, sempre
pronta para correr no parque ou bem-disposta para dar carona a algum
velhinho que mora fora do centro expandido, um “gente boa mode on
histericamente em paz” ligado na tomada o dia inteiro para
purificar o ar da casa, com frequência esse cara é tão sem-sal,
mas tão sem-sal, que a única graça e função dele na vida é “ser
o parceiro que acalma o doido”. Do doido nós gostamos, já a
menina quieta sorridente, o rapaz “peraí que te ajudo enquanto
assovio um sambinha”, os civis de um modo geral, nós aturamos
porque eles limpam caso o doido suje a nossa sala.
Mas
essas pessoas, por não terem “a doencinha”, a doencinha que dá
a liga, o veneno entre dois estragadinhos da cabeça, o ponto de
encontro espetacular entre duas mentes atormentadas, a maior explosão
sexual de todas, essas pessoas não têm graça. Transar com um cara
gente boa é legal. Transar com um maluco é o motivo pelo qual
inventaram o sexo. Enfim, tudo isso te levará a fugir das encrencas.
Mas em círculos.
Você
vai dar tempos, intervalos, respiros, construir moradias com esses
seres maravilhosos “que te fazem bem”. Mas a quem queremos
enganar que isso vai durar? Ou melhor, isso vai durar pra cacete,
talvez seja a única coisa que realmente dure na sua vida, mas a quem
queremos enganar que você está arrematado e saciado? A quem
queremos enganar que as palavras “pleno” e “feliz” não te
fazem torcer os olhinhos como descrentes paninhos de chão que nem
depois da água sanitária deixaram de ser sujos? A quem você quer
enganar que não vai pular a cerca? Não vai encher a cara ou tomar
um tarjinha-preta de tão insuportável que está ser felizinho e ter
arrumado esse cônjuge-mãe? Felicidade só existe quando é “inha”.
Porque “feliz pra cacete” dá uma tristeza enorme.
Enfim,
se é veneno o que você busca nas relações, sua vida será
preenchida, assim como a minha, por doces rapazes alucinados,
especialistas em enxergar a própria loucura refletida na consorte do
mês. Eles vão terminar com você por mensagem de texto dizendo:
“não dá, você é louca”, e você vai ficar supertensa, achando
que eles têm razão… Daí, quando estiver tomando remédios fortes
por mais de um ano, você vai descobrir que a mensagem foi enviada do
manicômio onde os fofos estavam internados. Então, repete comigo:
“louco é o outro”.
Vejamos
alguns dos meus casos. Tive um namorado que odiava minhas bolsas. Ele
sempre me dizia: “você é bonita e tal, mas falta feminilidade”.
E daí ele ia comigo comprar bolsas. Eu escolhia uma coisa horrorosa,
cheia de franjas e brilhos e pedras, e ele dizia: “é, acho que
pode te deixar mais feminina”. Um dia ele terminou o namoro dizendo
que eu era extremamente macha.
Eu
gostava desse namorado, então fiquei péssima e por meses me culpei.
Minhas amigas falavam: “suas mãos são pequenas e macias, você
usa batom rosinha, passa perfume para ficar sozinha em casa, você é
supermocinha, esse cara que é maluco”. Mas não tinha jeito.
Comecei a achar que o problema estava na minha falta de feminilidade,
e cheguei a sonhar, mais de uma vez, que tinha um pênis e que o
cortava e jogava para que minha cachorra o trouxesse de volta.
Esse
namorado, vamos chamá-lo de Daniel (adoro que esse é exatamente o
nome dele e eu estou realmente expondo a criatura, dane-se), dizia
que minha dificuldade em usar salto alto estragou nosso romance. Eu
sempre preferi sapatilhas fofas e confortáveis. Não era tipo um
chinelão da tia Cidinha, era uma sapatilha que tinha lá seus
mistérios, tachinhas ou bolinhas, ou deixava levemente à mostra
unhas pintadas, vai vendo. Mas ele via em mim um Kichute, não tinha
jeito.
Um
dia me enchi de pulseiras e brincos e colares pesados (eu andava na
rua fazendo tanto barulho que todo mundo olhava achando que era o
realejo com o periquito da sorte), meti um salto agulha gigante (que
me faria frequentar a fisioterapia por semanas), lancei um batom
vermelho na boca, borrifei meio litro de perfume caro no meio dos
seios e em outras áreas estratégicas, mandei ver num decotão e fui
até a casa dele. Ele riu por um bom tempo (de fato eu estava
ridícula, parecendo um requeijão fechado a vácuo, tão colada era
a roupa) e me pediu que “tomasse cuidado para não escorregar no
piso da casa dele”. E ficou olhando para o chão, cheio de amor,
querendo que eu “entendesse algo sem que ele precisasse falar”.
Achei que era algo como “vai, fica de quatro nesse piso, sua gata
feminina louca”, mas era pior: ele queria que eu notasse como o
piso da casa dele brilhava.
Foi
quando ele me contou de Larinha, moça rica do interior de Minas a
quem acabara de conhecer. Ela estava em São Paulo para estudar
“design de sabonetes”. Era rica: um ponto. Era caipira: dois
pontos. Tinha uma profissão cretina de moças ricas e caipiras que
no fundo não sabem fazer uma caralha da vida e fingem fazer algo até
que possam enfim exercer a única função que realmente importa para
elas que é ser mulher de homem rico para perpetuar a riqueza da
família: três pontos. E tinha descoberto um troço que fazia
“reviver os tacos de madeira” e tinha, naquela manhã, esfregado
a maravilha em toda a casa do Daniel. Ou seja, uma escravinha: cem
pontos. Mano, eu podia colocar franjinhas e tachinhas e strass e
pedrarias na virilha que aquele cara jamais veria “uma mulher
feminina” em mim. Ele me disse que eu era louca e que por isso não
havia dado certo.
Antes
do Daniel, namorei um cara que falava sozinho enquanto dormia. Vamos
chamá-lo de André (adoro que esse é mesmo o nome dele). Eram altos
papos. Ele contava, entre roncos e relinchos, como organizou a sua
estante de livros. Primeiro os clássicos, depois os “vivos que
valem a pena”, depois os de cinema. Até que um dia ele
simplesmente parou de dormir. Não dormiu dois dias, daí viraram
cinco dias, daí viraram nove.
Ele
usava as madrugadas para ler livros ao mesmo tempo que via filmes ao
mesmo tempo que organizava a área de trabalho do computador ao mesmo
tempo que falava com sete pessoas pelo inbox do Facebook ao mesmo
tempo que baixava músicas ao mesmo tempo que… Numa dessas conheceu
uma mulher igual a ele e os dois ficaram várias madrugadas inteiras
se falando por todas as infinitas plataformas de internet.
Um
dia pedi a ele que voltasse a dormir na casa dele porque estava
puxado manter em meu apartamento um homem que não dormia havia dez
dias e ficava com todas as luzes acesas, TV e micro-ondas fazendo
barulho, e me traía virtualmente. Ele fez as malas, me chamou de
“muito ansiosa, precisa aprender a relaxar”, e assim acabou.
Anos
depois comecei a namorar o Carlos (vamos chamá-lo por seu nome
verdadeiro). Ele me dizia diariamente que eu era louca e que teríamos
que terminar, mas… 1) gostava de chorar nu na minha varanda logo
depois que a gente transava porque percebia que um dia seu pai
morreria; 2) me levou a uma galeria de arte e, ao ver a dona do
lugar, com quem “tinha uma relação estremecida”, saiu correndo
e me largou lá por meia hora, e depois me deu um esporro porque não
o esperei voltar quando estivesse mais calmo; 3) acordava de
madrugada para tentar desemperrar janelas que não estavam
emperradas; 4) só colecionava arte de gente que já tinha morrido
porque “vivo não sabe o que está fazendo”; 5) sofreu um
sequestro-relâmpago com outra mulher e, quando os libertaram, me
ligou para que eu fosse buscá-los.
Namorei
também o Guto, que “odiava criança, odiava morar junto, odiava
trabalhar, odiava namorar, odiava cinema, odiava show, odiava beijar
na boca toda hora” e terminou comigo porque era impossível me
agradar. E, por favor, vamos dar ao Gabriel o prêmio “melhor
namorado louco que terminou comigo dizendo que a louca era eu”.
Gabriel não aguentava mais sentir que eu o estava observando,
“querendo escrever sobre ele”, enquanto ele apenas bebia água ou
fazia xixi. Disse que começou a se “autonarrar” vinte e quatro
horas por dia porque imaginava que eu passava vinte e quatro horas
por dia observando todos os seus movimentos para depois escrever um
livro sobre ele. Kikito egocêntrico para ele. Palma de Ouro ególatra
para ele. E o pior é que ele tinha razão.
Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu
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