Em
plena ditadura militar, esta original balada pop, quase um pastiche
irônico de Bob Dylan e Roberto Carlos, ousou questionar, pelo
deboche e o sarcasmo, o “milagre econômico” e o Brasil Grande da
ditadura. Narrada na primeira pessoa, em tom confessional e fazendo
paralelos com a vida do cantor, a letra desfila as conquistas e as
dúvidas de um sujeito “bem-sucedido”, com salário no banco,
carro do ano, apartamento em Ipanema, “depois de passar fome por
dois anos na Cidade Maravilhosa”. As realizações materiais e os
sonhos de consumo não anestesiam a indignação do personagem com a
miséria, as mentiras e as ilusões que o cercam. Miséria também
moral e espiritual, de um “ser humano ridículo, limitado / que só
usa dez por cento de sua cabeça animal”.
“Ouro
de tolo” foi instantâneo e retumbante sucesso popular, da noite
para o dia transformou Raul num ídolo pop, graças ao humor
sarcástico e contundente da letra, à melodia envolvente e ao
arranjo que misturava elementos de balada romântica, folk, toada
sertaneja e poesia de cordel.
“Eu
é que não me sento / no trono de um apartamento / com a boca
escancarada cheia de dentes / esperando a morte chegar”, provocava
Raul.
Na
virada dos anos 1950 para os 1960, enquanto muitos de seus
contemporâneos e futuros colegas na música se encantavam com a voz
e o violão de João Gilberto, o jovem Raul Santos Seixas (1945-1989)
estava ligado no rock elétrico de Elvis Presley e companhia e foi o
sócio no 1 do Elvis Presley Fã-Clube da Bahia.
A
partir da segunda metade dos anos 1960, quando colegas de geração,
como Caetano, Gil, Chico, Edu Lobo e Milton Nascimento, começavam a
conquistar o Brasil consagrados nos grandes festivais de música,
Raul ralava no underground com seus primeiros grupos de rock. Ainda
em Salvador, à frente da banda Raulzito e Os Panteras, conseguiu um
contrato com a gravadora Odeon, mas, lançado em 1968, o disco
homônimo passou em branco.
Em
1971, voltou a investir em sua carreira, no disco coletivo Sociedade
da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10, ao lado de
Miriam Batucada, Sérgio Sampaio e Edy Star. Hoje cultuado e já
anunciando algo do estilo que o consagraria em seguida, o projeto
fracassou nas rádios e nas lojas.
Em
1972, Raul classificou duas músicas para a final brasileira do
Festival Internacional da Canção, “Let me sing, let me sing”,
metade rock e metade baião, que ele mesmo cantou, com um look de
Elvis Presley, e “Eu sou eu, Nicuri é o Diabo”, com o grupo Os
Lobos. Não ganhou, mas conquistou o público e a imprensa e ganhou
um contrato da Philips/Polygram, então a principal gravadora da MPB.
Assim
como no álbum coletivo, essas duas canções apontavam para a fusão
orgânica de pop e ritmos nordestinos que “Ouro de tolo” iria
consolidar. Lançada num compacto em maio de 1973, abriu caminho para
o revolucionário álbum Krig-ha, Bandolo!, que chegou ao
mercado dois meses depois. Mais do que sinônimo de rock no Brasil,
depois desse pulo de pantera, ele criou seu próprio e inconfundível
estilo que até hoje ecoa no grito de guerra de seus fãs em shows de
qualquer artista: Toca Raul!
Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil
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