sexta-feira, 17 de março de 2023

Nove horas e trinta minutos


Nove horas e trinta minutos. Estou vendo os ponteiros parados, no relógio de pulso. Quando deito, ele fica sobre a mesinha de cabeceira, pois acordo no meio da noite e olho o mostrador, nove e trinta. Quando levanto, ponho o relógio no bolso, de onde posso tirá-lo para ver as horas, nove e trinta. Foi a hora em que o relógio parou. Na esquina de Joaquim Nabuco com Vieira Souto.
Fico remoendo estupidamente o meu sofrimento, meu ódio sem objetivo, minha frustração. Não existe nada pior do que a pessoa ficar se lamentando, ou então dizendo que Deus assim quis, ou o Diabo — o que é a mesma coisa. Vou passar o resto da minha vida olhando a hora no relógio, nove e trinta, e me sentindo um miserável.
O advogado de Luciana me telefona. Quer me falar, um assunto importante, tem que ser pessoalmente. Vou ao seu escritório.
Não esperava encontrar a minha ex-mulher. Quando me vê, Luciana pergunta:
Já voltou ao local do crime, assassino?”
Dona Luciana, por favor...”, diz o advogado.
Não é isso o que todo assassino faz?”
Ela já me odiava antes, e o seu rancor, depois das nove horas e trinta minutos daquele dia, aumentou ainda mais.
Com licença, doutor, não aguento ficar perto desse monstro. Ele fez aquilo para se vingar de mim”, diz Luciana saindo da sala.
O advogado vai atrás dela. Volta algum tempo depois.
Ela está muito abalada com o que aconteceu.”
Eu sei. Vamos deixar o assunto que você queria discutir comigo para outra ocasião?”, pergunto.
Na próxima semana?”
Concordo com o advogado. Marcamos uma data, que anoto na agenda de bolso.
Quando nos separamos, seis meses antes de aquela desgraça acontecer, Luciana ficou com o apartamento, o sítio, o carro, a guarda da minha filha, nove horas e trinta minutos, obteve uma pensão que é a metade dos meus rendimentos mensais. O que mais Luciana quer? Quer me destruir.
Mas a reunião no escritório do advogado teve um lado bom. Tiro o relógio do bolso e olho para o mostrador. Nove e trinta. Luciana, com as suas ofensas sórdidas.
Já voltou ao local do crime, assassino?”, fez-me entender, pela primeira vez, o que o relógio me diz, com aquela hora que nunca muda. Agora sei por que olho constantemente para aquele mostrador de relógio. Eu tinha tudo à minha disposição, a hora e o local, todos os trunfos, só não sabia usá-los.
Fico acordado a noite inteira, tomando café, excitado. Saio de casa logo que o dia nasce, quero chegar na esquina de Joaquim Nabuco com Vieira Souto antes das sete, quando a mão das duas pistas da praia passa a ser na direção da cidade, e esperar que chegue a hora que o relógio parado marca. Mas constato, desesperado, que preciso comprar óculos novos para levar adiante o meu plano.
Vou ao oculista, mando fazer os óculos, fico irritado com a demora. Não posso, agora que tenho planos, desperdiçar tempo.
Volto, com os óculos novos, à esquina de Vieira Souto com Joaquim Nabuco. Consigo ver com nitidez os automóveis e suas placas. Não sai da minha mente o carro cinza ultrapassando, na curva, o outro que vinha por dentro. Eu reconhecerei o automóvel cinza, dirigido por um homem de cabelos curtos castanho-claros, de camisa social e gravata, que segura o volante com os braços estendidos, quando ele passar por ali novamente, às nove e trinta. O assassino sempre volta ao local do crime.
Fico na esquina com lápis e papel na mão, para anotar a chapa do carro e dar prosseguimento ao meu plano. Mas o carro não aparece. Às dez horas o trânsito volta ao normal, agora a pista de dentro não dá mão para a cidade, os carros não podem mais entrar à esquerda na Joaquim Nabuco em direção à cidade.
O homem usava camisa social e gravata, devia ter um paletó ao lado, no banco, é assim que faço quando vou para o meu escritório dirigindo o meu carro.
No dia seguinte, novamente me posto na esquina, com lápis e papel na mão, muito antes do sentido do trânsito ser invertido, e só vou embora quando o tráfego volta ao normal. O carro não aparece, sei que não passou por mim.
Chego em casa deprimido. E se o horário e o trajeto dele são outros, se naquele dia ele estivesse indo pegar um avião no aeroporto Santos Dumont?
Um homem de cabelos curtos dirigindo um carro cinza. “O senhor não pode me dar mais algum esclarecimento?” perguntou o policial, “a marca do veículo, a placa?” Respondi que não sabia mais nada, só que o carro era cinza e a placa era do Rio. Esqueci de dizer que o homem usava gravata com camisa social e dirigia com os braços estendidos, mas o policial ia achar que isso também era pouco. Eu estava confuso, ainda atônito, sofrendo muito com o que aconteceu. Foi muito rápido, o carro abriu seu trajeto para fazer uma ultrapassagem e pegou a minha filha, atirando-a longe. Eu me sentia culpado por ter ficado aguardando, com ela ao meu lado, no asfalto da rua, ainda que junto da calçada, uma oportunidade para atravessar a Joaquim Nabuco. “Minha filha passava a semana comigo. O motorista nos viu, não podia deixar de nos ver.” O policial escutou calado. “Foi ela quem pediu para ir ao Arpoador de manhã”, acrescentei, como se coubesse ao policial me perdoar, inconscientemente tentando repartir minha culpa com a filha morta.
Agora sei por que me curvei sobre ela e tirei o seu relógio do pulso com o vidro partido. Foi um gesto mecânico, mas algo me fizera pegar o relógio ordinário que minha filha usava e não o cordão com uma medalhinha em torno do seu pescoço. O relógio era a pista para achar o criminoso. Demorei a descobrir isso, mas, agora que sei, preciso concentrar minhas forças, preservar minha lucidez para atingir meu objetivo, encontrar o assassino. Certamente ele não passou ainda naquela esquina porque o carro deve estar numa oficina, a sua lataria foi afetada com o choque. Nove horas e trinta minutos.
Dois dias mais tarde o carro aparece, já passa um pouco das nove e trinta, sinto uma espécie de euforia quando o vejo surgir, abrindo na curva da mesma maneira imprudente. Ao volante, o homem de cabelos curtos, camisa social e gravata, dirige com os braços estendidos, ele tem pressa, vejo o seu rosto, será que ainda se lembra que foi ali que matou uma criança? Não consigo anotar a placa, quis ver bem o homem, cometi um erro. Mas sei que ele vai voltar ao local do crime.
No dia seguinte, consigo anotar a placa do carro. Mas não vou dar essa informação à polícia. Vou descobrir, eu mesmo, o nome e endereço do dono do carro junto ao Departamento de Trânsito.
Não é difícil obter essas informações. O nome dele é Paulo Ramos. Mora na Barra. Quando ele chega na Joaquim Nabuco a sua pressa em chegar à cidade deve aumentar, está impaciente com o trânsito pesado daquela hora, quer aproveitar, além das duas pistas ao longo das praias do Leblon e de Ipanema, as pistas de Copacabana, no sentido da cidade, antes que uma delas feche, às dez horas. Se for preciso, mata alguém pelo caminho.
Pego o meu carro e vou para a porta do condomínio onde ele mora. Para chegar à avenida Sernambetiba ele tem que dirigir por uma estrada particular, sem habitações, com cerca de quinhentos metros. Vejo-o sair e tento segui-lo, mas ele corre muito, logo o perco de vista, na avenida. Isso não importa, sei a hora em que ele sai de casa.
Nunca matei ninguém. A maneira mais fácil é com uma arma de fogo. Sei como usá-las, já tive um revólver, dei para o caseiro do meu sítio, que agora é só da Luciana. Onde posso comprar uma arma? Alguém, no meu escritório, sabe? Estou de férias e apareço no trabalho para perguntar onde posso comprar um revólver. Perguntar a quem? São todos, como eu, burgueses pacatos que só pensam em ganhar dinheiro de uma maneira considerada honesta pela sociedade.
Talvez o Vlamir possa me ajudar. Vlamir era um profissional competente, as drogas acabaram com ele, deve conhecer gente do baixo mundo, seus fornecedores Encontrei-o recentemente, ele me disse que estava desempregado, perguntou se eu podia ajudá-lo. Tenho o seu telefone. Está na agenda. Marco um encontro com ele na minha casa.
Estou mal”, diz Vlamir, quando pergunto como vão as coisas.
Vê-se, pela sua cara, que está doente. Mas não posso perder tempo com comiserações.
Preciso de um favor seu.”
Você? Favor meu? Se puder eu faço. Estou lhe devendo, mas vou pagar aquela grana que me emprestou.”
Esquece isso. O favor que vou lhe pedir tem uma grande urgência. Preciso de um revólver. Em bom estado. Com os projéteis.”
Um revólver? Para que você quer um revólver?”
Isso não lhe interessa. Você pode ou não pode? Com um dos seus amigos? Pago qualquer preço.”
Vou ver.”
Quero que você responda agora.”
Conheço um cara...”
Fala com ele. Hoje. Tenho muita pressa.”
Você pode me adiantar algum?”
Posso.”
Dou a ele uma boa quantia. “Não me interessa o que vai custar. Pago a diferença quando você me entregar a arma.”
Pode confiar em mim. Não vou, não vou...”
Sei que você não vai gastar esse dinheiro de maneira errada... Você não é burro, sabe que depois terá bem mais.”
Eu não sou burro” ele repete, “sou tudo, menos burro.”
No dia seguinte, Vlamir volta a se encontrar comigo. Minha encomenda está embrulhada num papel pardo. É uma arma pequena, em bom estado, parece nova, e os projéteis também. Calibre 22, mas serve, é até melhor, faz menos barulho. Vlamir menciona o valor total da transação. Sei que uma parte do dinheiro que estou lhe dando será gasto com drogas, mas não me importo, ele merece a sua gratificação.
Se você se meter em alguma encrenca me deixa de fora, já estou muito ferrado”, ele diz.
Eu confiei em você, é a sua vez de confiar em mim, não se preocupe.”
Você vai matar alguém?”
Um cachorro.”
Isso não é nada.”
Não, não é nada.”
Mas eu não mataria um cachorro”, Vlamir diz, se despedindo de mim.
Nem eu mataria um cachorro, digo em voz alta, enquanto carrego o tambor do revólver. Ultimamente dei para falar sozinho.
Estou no meu carro, de paletó e gravata, óculos sem aro, com uma caixa na mão, na estrada por onde Paulo Ramos tem que passar, depois que sai do condomínio. Quando o carro dele surge, buzino, fazendo um gesto para ele parar o carro. Salto, carregando a caixa comigo.
O nome do senhor é Paulo Ramos?”
Sim.”
Jamais esquecerei aquela cara de cabelos curtos castanho-claros, a camisa social com gravata. Noto o paletó no banco ao lado. Tranquilo, com as mãos no volante, ele olha a figura respeitável, prestativa e inofensiva ao lado do seu carro.
Tenho uma encomenda para o senhor”, digo, abrindo a caixa.
Ele começa a dizer algo, mas é interrompido pelo primeiro tiro, dado no seu rosto. O estampido não é muito forte. Esvazio o tambor, mais dois tiros na cabeça, e três no peito.
Entro no meu carro e vou embora. Se alguém ouviu os tiros, não veio ver do que se tratava.
Estou dirigindo na Sernambetiba. A quantidade de carros vai aumentando, todo mundo correndo, querendo chegar logo, mas eu já cheguei aonde queria e não tenho pressa.
Ligo o rádio.
Depois de amanhã é dia de Natal. Jamais gostei desse dia, mas acho que neste ano vou gostar. Estou falando sozinho, no carro.

Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas

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