Isaku
acomodou a carga de galhos secos nos ombros e começou a descer a
trilha. O mar estava ficando mais agitado sob o céu brilhante e
avermelhado. As ondas já vinham com espuma desde lá de longe, e
arrebentavam com força contra a praia e o cabo. A entrada do inverno
era geralmente marcada por quatro dias de mar bravio seguidos por
dois de calmaria; nos últimos três dias a agitação do mar havia
impedido a pescaria. Havia pedras expostas ao longo de toda a trilha,
e Isaku lutava para não tropeçar e cair sob o peso da carga.
Os
telhados das casas apareceram à vista. A mãe de Isaku encontrava-se
junto à porta dos fundos, acenando para ele se apressar. Ela parecia
ter algo urgente a dizer. Apoiando-se em uma vara que usava para
manter o equilíbrio, ele aproximou-se da casa.
— Chegou
uma mensagem dizendo que o chefe da aldeia quer ver você. Vá para
lá imediatamente — disse a mãe, afobada.
Apesar
de Isaku já ter visto o chefe da aldeia, nunca tinha falado com ele
e por isso não podia imaginar por que estava sendo chamado.
— Vá
logo! — disse a mãe, tirando a carga dos ombros dele, algo que
jamais havia feito antes, e dando-lhe um forte tapa na parte de trás
da cabeça para apressá-lo. Isaku cambaleou adiante pela trilha. A
tonalidade vermelha no céu estava desaparecendo, e o mar começava a
ficar escuro. A costa encontrava-se toda molhada por causa do borrifo
das ondas.
Ele
correu pela trilha e subiu os degraus de pedra. Um velho que
trabalhava para a família do chefe da aldeia recolhia grãos que
tinham sido espalhados em uma esteira de palha.
Isaku
entrou na casa e se abaixou, curvando-se em reverência. O chefe da
aldeia encontrava-se sentado diante do fogo. Isaku disse quem era com
a voz hesitante, os joelhos tremendo com a certeza de que seria
admoestado por alguma ofensa que cometera sem saber.
— A
começar por hoje, você vai trabalhar nos caldeirões de sal. Vai
ser sua primeira noite, por isso você irá com Kichizo e pedirá que
ele lhe ensine tudo. Depois, será por sua conta. Não deixe o fogo
apagar.
O
chefe da aldeia tinha uma voz fina e aguda como a de uma criança.
Isaku fez outra reverência, tocando o chão com a testa.
— Pode
ir.
Ainda
ajoelhado, Isaku recuou de costas pela entrada, levantou-se e partiu.
Seu
rosto ficou avermelhado com a excitação, enquanto a tensão se
esvaía. A ordem de trabalhar toda a noite no caldeirão de sal
significava que ele era reconhecido como um adulto. Sabia que isso
iria acontecer desde que permitiram que ajudasse na cremação, mas
ter a confirmação o enchia de uma alegria irreprimível. Ele correu
pela trilha da costa até sua casa. A essa altura o céu já tinha
ficado escuro.
Isaku
deixou a casa carregando uma tocha acesa. Quando a mãe ficou sabendo
que recebera a ordem de cuidar das fogueiras sob os caldeirões, ela
ficou animada, o que era muito incomum, e preparou feijão para ele
comer durante a noite. A chama da tocha ondulava ao vento. Ele deixou
a trilha e seguiu para a praia. Podia ver o brilho do fogo adiante na
praia e sentiu que havia alguém ali.
Isaku
se apressou. O olho são do homem encontrava-se fixo em Isaku. O
outro era branco e opaco, tendo perdido o brilho havia muito. Isaku
considerou-se felizardo por ter Kichizo, que era um bom amigo de seu
pai, para iniciá-lo.
Pedras
de bom tamanho haviam sido arranjadas em dois pontos da área arenosa
da praia para servir como base para os dois grandes caldeirões. Sob
um deles, a lenha já queimava.
— Acenda
o outro também — disse Kichizo, olhando para a segunda panela
imensa a cerca de dez metros de distância.
Isaku
respondeu de forma exagerada, pegando uma braçada de galhos secos de
sob uma esteira de palha, girando para colocá-los nas costas, e foi
até o segundo caldeirão. Colocou os galhos na área protegida pelas
pedras e os acendeu o fogo com um graveto em brasa tirado da primeira
fogueira. Os galhos estalaram ao pegar fogo. Isaku jogou mais lenha
no fogo.
As
chamas erguiam-se sob os dois caldeirões, tremeluzindo ao vento do
mar e lançando fagulhas na areia. Isaku olhou para as chamas
enquanto estava ali sentado perto de Kichizo em um tronco colocado
dentro de uma cabana de madeira.
Vários
anos antes, Kichizo tivera uma doença no olho que o deixara
incapacitado para pescar, forçando-o a vender a esposa em servidão
por três anos. Ela retornara à vila depois de terminar o contrato
no porto no extremo sul da ilha, mas só voltara seis meses depois de
seu contrato ter acabado, e Kichizo desconfiara que ela tivesse
ficado com outro homem, durante esse tempo.
Se
era verdade ou não, ninguém sabia, mas havia rumores entre os
habitantes da aldeia de que ela tinha tido um bebê e por isso
prolongara o contrato.
Kichizo
havia batido nela com violência, e em um acesso de fúria chegara ao
extremo de cortar os cabelos dela. Em ocasiões como essa, quando a
mulher fora correndo para a casa de Isaku, o pai e mãe dele
intervieram. Kichizo parara de bater na mulher apenas quando o chefe
da aldeia interferira e o admoestara severamente. Depois disso ele se
tornara um homem taciturno, de poucas palavras. Costumava ir sempre à
noite visitar a casa de Isaku, às vezes levando vinho feito de
milho. Ele se sentava lá em silêncio, assentindo enquanto ouvia as
histórias de pescador do pai de Isaku.
— Você
sabe por que fazemos o sal na praia, não sabe? — disse Kichizo, o
olho são fixo em Isaku.
O
suprimento anual de sal seria produzido e então distribuído de
acordo com o número de pessoas de cada família. Mas Isaku percebeu
que havia algum outro motivo para a pergunta de Kichizo.
— É
para chamar O-fune-sama, não é? — disse ele, olhando
diretamente para Kichizo. Kichizo não disse nada, desviando o olho
para os caldeirões. Por sua expressão, Isaku sentiu que sua
resposta não fora satisfatória.
Isaku
imaginara que a ordem do chefe da aldeia significava que ele tivesse
de aprender tudo sobre cuidar dos caldeirões de sal. Ainda não
compreendia muita coisa sobre os rituais da vila, mas agora que era
um adulto não podia mais se permitir continuar sendo ignorante.
Depois daquela noite ele teria de cuidar sozinho do fogo sob os
caldeirões, portanto precisava fazer com que Kichizo lhe contasse
tudo.
— Serve
como oferenda para que O-fune-sama venha para a costa?
— Não
é só uma oferenda. Serve para atrair barcos que passem ao longo da
costa — disse Kichizo, impaciente.
— Para
atrair barcos?
— Isso
mesmo. Quando o vento noroeste começa a soprar, o mar fica bravo e
mais barcos têm problemas. À noite quando as ondas começam a
passar sobre os tombadilhos, eles chegam a jogar carga no mar para
diminuir o peso. Em momentos como esse, os tripulantes avistam a luz
dos caldeirões e pensam que são casas na costa. Então viram o
barco na direção da costa.
O
olho são de Kichizo brilhou como se ele estivesse estudando Isaku,
que olhou para Kichizo antes de se voltar para o mar. Ele podia
perceber a linha onde o céu estrelado encontrava a água escura.
Havia um recife vasto e intrincado oculto sob a superfície da água.
Quando saíam para pescar, os homens da aldeia contornavam as pedras
com seus barcos, mas um navio grande entrando naquelas águas
inevitavelmente teria o casco rasgado.
Isaku
refletiu que estava finalmente começando a compreender. Tinha
deduzido que os caldeirões de sal fossem parte de um ritual
realizado com a esperança de que os barcos se acidentassem, mas
agora percebia que eles também serviam para atrair os barcos para os
recifes.
Se
o único objetivo fosse a produção do sal, então fazê-lo durante
o dia seria muito mais conveniente; mas agora ele compreendia por que
aquilo era feito sempre à noite. Além disso, ficou claro para ele
por que as fogueiras não eram acesas em noites calmas; os barcos não
teriam problemas navegando no mar calmo.
— O
fogo está apagando — disse Kichizo, levantando-se.
Isaku
se levantou e seguiu Kichizo, pegando um punhado de lenha de sob a
esteira de palha. Foi até o caldeirão da direita e jogou a lenha
sob ele.
Diziam
que marinheiros em má situação durante uma tempestade noturna eram
capazes de fazer qualquer coisa para sobreviver. Eles jogavam a carga
no mar, cortavam seus cabelos e rezavam para os deuses pedindo
proteção, e se o barco parecesse mesmo estar a ponto de virar, eles
até cortavam o mastro para mantê-lo estável. Para eles, as
fogueiras sob os caldeirões na praia poderiam muito bem parecer
luzes de casas na costa. Não havia dúvida de que eles pensariam que
suas preces tinham sido atendidas e virariam o navio na direção das
luzes.
A
madeira foi envolvida pelas chamas.
Quando
Isaku retornou para a pequena cabana, Kichizo sentou-se no tronco e
empilhou galhinhos secos na areia. Ele os acendeu e colocou mais
lenha por cima. Isaku aqueceu as mãos ao fogo. O vento de súbito
ficou mais frio.
— Estes
fogos vão trazer O-fune-sama, não vão? — perguntou Isaku
com um brilho nos olhos ao fitar Kichizo.
Kichizo
assentiu.
— Não
aconteceu nos últimos anos, mas quando eles vêm, vêm sempre um
depois do outro. Quando comecei a sair para pescar com seu pai, eles
vieram quatro anos seguidos. Quando eu tinha onze anos, tivemos três
em um só inverno. Tudo por causa destes fogos. Naqueles dias ninguém
precisava ser vendido como servo — disse ele em voz baixa.
Isaku
imaginou que Kichizo estivesse falando tanto assim porque se sentia à
vontade com o filho do amigo. Apesar de ter perdido a visão de um
olho, se O-fune-sama tivesse vindo, ele não teria sido
forçado a vender a esposa como serva e o casamento deles não teria
sido arruinado.
Isaku
olhou para o mar. Pensou em Tami, a terceira filha de Senkichi. A
filha mais velha já tinha sido vendida, e agora havia rumores de que
a segunda filha seguiria o mesmo caminho para a servidão. Se não
houvesse uma dádiva do mar nos próximos anos, sem dúvida
aconteceria o mesmo com Tami.
Isaku
ficou agitado. Se um barco tivesse sido atraído para os recifes, seu
pai também não teria sido forçado a se vender. A vida dos
habitantes da aldeia dependiam da vinda de O-fune-sama.
— Fazemos
sal desse modo para garantir que os fogos não se apaguem e para
fazer O-fune-sama vir. — O olho de Kichizo refletia o brilho
vermelho das chamas do fogo.
— Fico
imaginando se virá algum neste inverno — disse Isaku, olhando para
o mar.
— Quem
sabe... Quando o vento começa a soprar do noroeste, eles ficam
assustados e os navios não saem do porto. Mas mesmo assim, quando
têm carga para levar, eles esperam um dia mais calmo para partir. A
maioria dos barcos carrega arroz — murmurou Kichizo.
A
sonolência tomou conta de Isaku quando se aqueceu ao fogo. Seu corpo
estava entorpecido, e as pálpebras começavam a ficar pesadas. Se
ele adormecesse, sem dúvida seria dispensado da tarefa de cuidar do
fogo do sal, e sua mãe ficaria furiosa e bateria nele. Só de pensar
em tal desgraça ficava aterrorizado.
Isaku
se levantou e correu para fora da cabana. Um vento frio soprava do
mar. Ele ergueu-se na ponta dos pés e olhou dentro do caldeirão.
Nuvens de vapor erguiam-se enquanto a água salgada evaporava. Ele
verificou o fogo, então pegou vários pedaços de lenha e os jogou
sob os caldeirões. No instante seguinte não sentia mais sono.
Akira Yoshimura, in Naufrágios
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