O
fantasma de sexualização esteve presente em minha vida a maior
parte do tempo, me fazendo ser um tanto solitária. Eu ia às
atividades do centro espírita — algumas consistiam em visitar
orfanatos e asilos —, saía com a minha mãe ou simplesmente ficava
em casa. Intuitivamente, eu tinha uma proteção “antimacho” que
me afastou de viver péssimas experiências — ou pelo menos evitou
muitas. A ilusão de um amor me completava de alguma maneira. Ninguém
que eu conhecia na vida real superava o amor imaginário que viria me
buscar em casa pra jantar e andaria de mãos dadas comigo,
acariciando meus cabelos antes de me beijar com carinho. Claro que
essa ilusão também me prejudicou, eu precisava aprender a lidar com
a realidade, mas a realidade que se apresentava consistia em forçação
de barra e mãos não requisitadas.
Não
é que eu estivesse fixada na fantasia. Acho que teria me entregado
facilmente a uma experiência amorosa real, com suas contradições,
mas era a realidade que insistia em não me olhar com olhos de amor.
Eu queria ser vista com delicadeza, encontrar alguém com quem falar
dos meus livros favoritos, da história triste do velhinho do asilo.
Claro que eu também desejava contato físico, mas não
exclusivamente.
Aos
dezenove anos, para esquecer o meu primeiro amor que não surgia, eu
saía sozinha. Claro, eu poderia ir ao pagode com minha irmã e as
amigas dela, mas não gostava, então preferia ficar nos bares de
mpb. As primeiras vezes foram legais, eu bebia suco e curtia as
músicas. Mas precisei parar de ir. Primeiro porque ainda não tinha
a confiança de sentar sozinha em uma mesa de bar, e não conseguia
bancar os comentários sobre mim. Segundo, porque alguns homens
começaram a enviar bebidas para a minha mesa, talvez julgando que eu
era uma prostituta à procura de clientes, e não uma jovem sonhadora
querendo se inebriar de canções de amor. Isso se repete até hoje,
são muitas as vezes que evito sair sem companhia ou me abstenho de
tomar um drink no hotel.
Nas
vezes em que fui sozinha a barzinhos, eu voltava andando pelo
calçadão da praia, observando todas as pessoas que pareciam viver
numa realidade paralela à minha. Mais do que felizes, elas pareciam
encaixadas à vida. Em geral, eu buscava todas as possibilidades para
não sentir a vida, simplesmente não me reconhecia como parte
integrante dela. Minhas amigas loiras estavam sempre com seus
namorados e, por mais que se decepcionassem também, sempre tinham
alguém para apresentar aos pais e de quem pegar emprestado o moletom
em um dia frio. Eu olhava os casais apaixonados nos banquinhos da
praia e aquilo parecia um sonho distante. Eu via as famílias
parecendo felizes andando pelos jardins, pessoas pedalando suas
bicicletas, mães correndo atrás de seus filhos esboçando sorrisos.
Havia casais namorando, pais e mães conversando com seus filhos, a
lua refletindo o mar. Eu não me reconhecia em nenhuma daquelas
pessoas.
Eu
queria viver um amor, vó, mas não queria que fosse qualquer amor.
Não ficava chateada se não beijasse ninguém numa festa, mas sim se
não beijasse o garoto que eu julgava ser legal. E eu nunca beijei o
garoto legal, sempre voltava pra casa pensando como teria sido. Uma
sensação de vazio me tomava.
Nas
poucas vezes que fui a bailes de Carnaval na adolescência ou quando
jovem adulta, os rapazes tentavam me beijar à força, tudo era muito
naturalizado. E foram várias as vezes em que ouvi, ao rejeitá-los:
“Está se achando, hein, neguinha? Você não é tudo isso”. Para
eles, eu deveria me sentir honrada em ser beijada à força ou
agradecer por eles passarem a mão em mim sem meu consentimento.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
Nenhum comentário:
Postar um comentário