É
provável que algum professor tenha escrito um livro sobre o assunto,
mas, se escreveu, não chegou até nós. “As paixões das artes”
seria, mais ou menos, o seu título, e trataria dos namoros entre a
música, a literatura, a escultura e a arquitetura e dos efeitos que
as artes tiveram umas sobre as outras ao longo do tempo. Na falta de
uma tal pesquisa, parece que a literatura tem sido a mais sociável e
porosa de todas: a escultura influenciou a literatura grega; a
música, a elisabetana; a arquitetura, a literatura inglesa do século
XVIII; e, agora, sem dúvida, estamos sob o domínio da pintura. Se
todas as pinturas modernas fossem destruídas, um crítico do século
XXV seria capaz de deduzir, com base apenas nos livros de Proust, a
existência de Matisse, Cézanne, Derain e Picasso; ele seria capaz
de dizer, com esses volumes à sua frente, que pintores
extraordinariamente originais e fortes deviam estar, na sala ao lado,
cobrindo uma tela atrás da outra, apertando um tubo atrás do outro.
Contudo,
é extremamente difícil precisar o ponto exato em que a pintura se
fez sentir na obra de um escritor tão completo. Nos escritores
parciais e incompletos, isso é muito fácil de ser detectado. O
mundo está cheio, neste momento, de aleijados, vítimas da arte da
pintura, que pintam maçãs, rosas, aparelhos de porcelana, romãs,
tamarindos e jarrões de vidro tão bem quanto palavras poderiam
pintá-los, o que quer dizer, é claro, que não muito bem. Podemos
com certeza dizer que um escritor cuja escrita apela principalmente
ao olho é um mau escritor; que se, ao narrar, digamos, um encontro
num jardim, ele descreve rosas, lírios, cravos e sombras na grama,
de maneira que possamos vê-los, mas deixa que deles se infiram
ideias, motivos, impulsos e emoções, é porque ele é incapaz de
usar seu meio para os propósitos para os quais ele foi criado e é,
como escritor, um homem sem pernas.
Mas
é impossível fazer essa acusação contra Proust, Hardy, Flaubert
ou Conrad. Eles utilizam os olhos sem, de forma alguma, incapacitar a
pena, e os utilizam de uma maneira que nenhum romancista antes deles
utilizou. Charcos e bosques, mares tropicais, navios, ancoradouros,
salas de visita, flores, roupas, atitudes, efeitos de luz e sombra –
eles nos dão tudo isso com uma precisão e uma sutileza que nos faz
exclamar que agora, finalmente, os escritores começaram a usar os
olhos. Não que, na verdade, qualquer desses grandes escritores pare
por um momento para descrever um jarro de cristal como se fosse um
fim em si mesmo; os jarros em cima das lareiras são sempre vistos
através dos olhos das mulheres presentes na sala. A cena toda,
embora sólida e pictorialmente construída, é sempre dominada por
uma emoção que não tem nada a ver com o olho. Mas foi o olho que
fertilizou seu pensamento; foi o olho, em Proust, sobretudo, que veio
em socorro dos outros sentidos, combinou-se com eles, produzindo
efeitos de extrema beleza e de uma sutileza até então desconhecida.
Eis aqui uma cena num teatro, por exemplo. Precisamos compreender as
emoções de um jovem cavalheiro provocadas por uma dama num camarote
abaixo. Com uma abundância de imagens e comparações, somos levados
a apreciar as formas, as cores, a própria fibra e a textura dos
assentos de pelúcia e os vestidos das damas e a debilidade ou a
força, o brilho ou o colorido, da luz. Ao mesmo tempo que nossos
sentidos absorvem tudo isso, nossas mentes vão cavando túneis,
lógica e intelectualmente, na obscuridade das emoções do jovem
cavalheiro que, à medida que se ramificam e modulam e se estendem
para cada vez mais longe, penetram, afinal, tão profundamente,
desaparecem num fragmento tão minúsculo de significado, que mal
conseguimos continuar acompanhando não fosse pelo fato de que, de
repente, num lampejo atrás do outro, numa metáfora atrás da outra,
o olho ilumina aquela caverna de escuridão, mostrando-nos as formas
brutas, tangíveis, materiais dos pensamentos incorpóreos pendentes
como morcegos da escuridão primeva na qual a luz nunca antes
entrara.
Um
escritor tem, assim, necessidade de um terceiro olho cuja função é
acudir os outros sentidos quando eles gritam por socorro. Mas é
muito duvidoso que ele logo aprenda qualquer coisa da pintura. De
fato, parece ser verdade que os escritores são, entre todos os
críticos das pinturas, os piores – os mais preconceituosos, os
mais parciais em seus julgamentos; se os abordarmos em galerias,
desarmarmos suas desconfianças e fizermos com que nos digam
honestamente o que lhes agrada nas pinturas, eles confessarão que
não é, de jeito nenhum, a arte da pintura. Eles não estão ali
para compreender os problemas da arte da pintura. Eles estão atrás
de algo que possa ser útil para eles próprios. É apenas assim que
podem converter essas imensas galerias de câmaras de tortura feitas
de enfado e desespero em corredores alegres, em lugares agradáveis
cheios de pássaros, em santuários onde o silêncio reina supremo.
Livres para seguir seu próprio caminho, para selecionar e escolher
como quiserem, eles acham as pinturas modernas, dizem eles, muito
úteis, muito estimulantes. Cézanne, por exemplo – nenhum pintor
provoca mais o sentido literário do que ele, porque suas pinturas
estão tão audaciosa e provocativamente satisfeitas de serem tinta e
não palavras que o próprio pigmento, dizem eles, parece nos
desafiar, pressionar algum nervo, estimular, provocar. Essa pintura,
por exemplo, eles explicam (diante de uma paisagem rochosa, toda
clivada como que por um martelo de gigante, em estrias de cor opala,
silenciosa, sólida, serena), desperta em nós palavras onde não
pensávamos existir; sugere formas onde nunca vimos nada a não ser
ar rarefeito. Enquanto contemplamos, as palavras começam a erguer
seus frágeis membros na desbotada fronteira da língua sem dono,
para afundar de novo, em desespero. Nós as arremessamos como redes
sobre uma praia rochosa e inóspita; elas se apagam e desaparecem. É
vão, é inútil; mas não podemos nunca resistir à tentação. Os
pintores silenciosos, Cézanne e o Sr. Sickert, nos fazem de tolos
tantas vezes quanto quiserem.
Mas
os pintores perdem sua capacidade assim que tentam falar. Eles
precisam dizer o que têm para dizer mudando os verdes em azuis,
pondo uma camada em cima da outra. Eles precisam trançar seus
feitiços como uma cavala atrás do vidro de um aquário, em
silêncio, misteriosamente. Deixe-os levantar o vidro e começar a
falar e o feitiço se quebra. Uma pintura que conta uma história é
tão patética e absurda quanto um truque feito por um cachorro, e
nós o aplaudimos apenas porque sabemos que é tão difícil para um
pintor contar uma história com seu pincel quanto o é para um cão
pastor equilibrar uma bolacha no nariz. A história do quadro de
Rossetti, “Dr. Johnson na Mitra”, é muito mais bem contada por
Boswell; numa pintura, o rouxinol de Keats é mudo; com a metade de
uma folha de caderneta podemos contar com palavras todas as histórias
de todas as pinturas do mundo.
Não
obstante, eles admitem, circulando pela galeria, mesmo quando não
nos arrastam para os heroicos esforços que têm produzido tantos
monstros abortivos, que pinturas são coisas muito agradáveis. Há
muito a aprender com elas. Essa pintura de um charco num dia ventoso
mostra-nos muito mais claramente do que poderíamos ver por nós
mesmos os verdes e os pratas, e a água correndo, os chorões
inclinados tremulando ao vento, e nos faz tentar encontrar frases
para isso tudo, sugere inclusive uma figura parada lá no meio dos
juncos, ou saindo dos portões do pátio da fazenda em botas de cano
alto e vestindo um impermeável. Essa natureza morta, continuam eles,
apontando para um jarro de lírios-tocha, é para nós o mesmo que um
filé para um enfermo – uma orgia de sangue e sustento, de tão
famintos que estávamos em nossa dieta feita de negra e magra tinta
de impressão. Nós nos aninhamos em sua cor, nos alimentamos e nos
empanturramos de amarelo e vermelho e dourado até cairmos, nutridos
e contentes. Nosso sentido da cor parece miraculosamente aguçado.
Carregamos essas rosas e lírios-tocha por toda parte conosco durante
dias, elaborando-os de novo em palavras. De um retrato, também,
obtemos quase sempre algo que vale a pena ter – a sala, o nariz, as
mãos de alguém, algum pequeno efeito de personagem ou
circunstância, alguma coisinha para colocar nos bolsos e levar
embora. Mas, de novo, o pintor de retrato deve tentar não falar; ele
não deve dizer: “Isto é maternidade; aquilo, intelecto”; o
máximo que deve fazer é dar uma batidinha na parede da sala ou no
vidro do aquário; ele deve chegar bem perto, mas algo deve sempre
nos separar dele.
Há
artistas, na verdade, que já nascem sendo bons nisso de batidinhas;
assim que vemos uma pintura de Degas com uma dançarina amarrando os
laços das sapatilhas exclamamos: “Quanta graça!”, exatamente
como se tivéssemos lido um discurso feito por Congreve. Degas
destaca uma cena e a comenta exatamente como um grande escritor de
comédia o faz, mas silenciosamente, sem, em momento algum, infringir
a reticência própria da pintura. Nós rimos, mas não com os
músculos que riem na leitura. Mile Lessore tem esse mesmo raro e
curioso poder. Como são cheios de graça seus cavalos de circo ou
seus grupos de pé com seus binóculos ou seus violinistas no poço
da orquestra! Como ela aviva nosso sentido do propósito e da alegria
da vida ao dar uma batidinha no outro lado da parede! Matisse dá
batidinhas; Derain dá batidinhas; o Sr. Grant dá batidinhas;
Picasso, Sickert, a Sra. Bell, por outro lado, são todos tão mudos
quanto uma cavala.
Mas
os escritores já disseram o bastante. Suas consciências estão
inquietas. Ninguém sabe melhor do que eles, murmuram os escritores,
que essa não é a maneira de olhar pinturas; que eles são libélulas
irresponsáveis, simples insetos, crianças destruindo de maneira
travessa obras de arte ao arrancar pétala por pétala. Em suma, é
melhor eles darem o fora, pois aí, abrindo a remo seu caminho pelas
águas, devaneando, abstraído, contemplativo, vem um pintor, e,
pondo suas coisinhas nos bolsos, eles vão embora ligeiro, para não
serem surpreendidos em sua travessura e serem obrigados a sofrer a
mais extrema das penalidades, a mais refinada das torturas – serem
obrigados a olhar pinturas na companhia de um pintor.
Virginia Woolf, in O sol e o peixe
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