sábado, 4 de março de 2023

Capítulo dezasseis | Ideias de bicho

Veja a vida como é: eu tenho dois corações e só vivi a vida por metade.
Nasci no dia em que, no céu, dois sóis brilharam.
E no entanto, para mim, foi sempre noite.
Avô Mariano –

A terra pode amolecer por força do amor? Só se o amor for uma chuva que nos molha a alma por dentro. Mas você não devia meter palavra em pensamentos desses. Porque isso é ideia de bicho, meu filho. Só o bicho sabe que não há chuvas, diferentes e variadas. A chuva é só uma. É sempre a mesma chuva, apenas interrompida de quando em quando. A terra, assim fechada, é assunto que lhe escapa a si, aos bichos, aos vivos. Porque não tem causa de suceder. Só tem motivo de acontecer.
Esta terra começou a morrer no momento em que começámos a querer ser outros, de outra existência, de outro lugar. Luar-do-Chão morreu quando os que a governam deixaram de a amar. Mas a terra não morre, nem o rio se suspende. Deixe, o chão voltará a abrir quando eu entrar, sereno, na minha morte. É por isso que você me deve escutar.
Me escute, meu filho.
Sempre tive pensamento baço, com juízo seco. Porque eu, meu neto Mariano, eu era ainda muito novo quando desatei a envelhecer. Tal como agora: comecei a morrer ainda vivo. Ir falecendo, assim sem dar conta, isso não me dava custo. Mas ficar velho, sim. Esse entorpecimento não me dava apenas tristeza. Pior, me dava vergonha. Esse declínio me vergava a um peso que vinha de dentro, como se estivesse engravidando do meu próprio falecimento e sentisse a presença crescente, dentro de mim, desse feto que era a minha própria morte. Até pensei na tristeza de minha nora, sua falecida mãe, que sabia que o bebé estava já morto na sua barriga. Ainda assim ela acariciava o ventre olhando a lua cheia como se faz para chamar boa sorte para os nascentes. Sua mãe, Dona Mariavilhosa, era uma mulher de valor e grandeza. Morreu no rio que é um modo de não morrer. Ela queria ter tido muitos filhos. Você foi, afinal, o único. Todo o tempo está em suas mãos, fosse um mar feito de uma só onda. Você deve ir visitar a campa dela. Tirava umas mãos-cheias dessa terra que a cobre e espalhava por aí pelos campos a ver se purificava esses paradeiros.
Viu? Sempre acabamos por desembocar nelas, as malfiguradas mulheres. No princípio, elas estavam fora de minhas razões. À medida que a idade me consumia eu ia ficando mais capaz de entender as mulheres. Quando menos as podia amar, mais eu ganhava um outro afecto por essas criaturas. Menos eu precisava de corpo para saltar por cima de suas belezas, mais elas me ficavam próximas, quase parecidas.
Até que cheguei a esse ponto em que a idade se converte numa doença. Vezes houve que me ocorreu o suicídio. Mas eu lá derramava uma garrafita e, num instantâneo segundo, já estava preparado para acreditar outra vez. Depois, porém, voltava a recair. Pudesse Deus levar-me, assim como a João Felizbento, o tonto dos jornais, que colectava papéis velhos no bairro dos brancos. Ele foi carregado por Deus como se, dessa vez, fosse ele o jornal velho. Gostava que me acontecesse assim, vertido em coisa já sem uso, bastando a Deus se debruçar para apanhar esse inutensílio.
Houve vezes em que deitei esperança em doença: uma enfermidade que me levasse, irremediável. Certas ocasiões, essa esperança quase se cumpria: acordava todo inchado e dava graças, esperando que minhas águas interiores crescessem como uma maré de Setembro. E passava o dia controlando o dedo maiúsculo engordado como o peixe mussopo. O chinelo desaparecia, vincado entre as papudezas. Nessas alturas, dispensava os atacadores. Saía à rua, apenas de chinelos. Descalço é que não. Um negro não anda descalço senão por punição, condenado à revivência do passado. A pobreza é andar rente ao chão, receoso não de pisar, mas de ser pisado. Que o espinho maldoso se crava não no pé, mas no coração da pessoa.
Enfim, de minha alma restou o quê? Um amontoado de saudades. Minha alma é um ferro-velho, na sucata do mecânico João Celestioso. A saudade é uma ferrugem, raspa-se e por baixo, onde acreditávamos limpar, estamos semeando nova ferrugem. Era o que, agora, mais me dava sofrimento. Saudade do bom copo, saudade de ter corpo e não o sentir, saudade até de mijar bem do alto de mim. Saudade dos sabores da vida, desses temperos que me esperavam. Não era a refeição que eu comia, era a própria vida que era servida, em pratos sempre luzidinhos.
O que eu lhe digo, meu neto: apesar de desacendido ainda me resta um fulgor, sombra de um bom espírito. Tanto é que, no momento em que me veio esta morte, um feitiço atravessou toda a vila. Meus olhos expiravam, meu peito esbatia e, nesse exacto instante, as fogueiras tremeluziram nas casas como se ventasse uma súbita e imperceptível aragem. E depois se apagaram, sopradas por essa sombra espessa. Se extinguiram no mesmo segundo em que se acenderam as máquinas que me fotografaram.
Perguntou sobre as razões do meu apagamento. Pois foi assim que sucedeu. E não se ocupe nem se preocupe. Porque você, meu neto, está cumprindo bem. Amparando sua Avó, sossegando os seus tios, amolecendo medos e fantasmas. Está quase completo o que tinha que fazer junto da família. Quase. Falta, porém, ainda o mais doloroso.

Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra

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