Sobrando
por enquanto sossego no sítio do dono novo Zepaz, rumo a rumo com o
Re-curral e a Água-boa, semelhantes diversas sortes de pessoas, de
contrários lados, iam acudir àquela parte.
A
boiada, do norte.
Antes,
porém, os ciganos de roupagem e de linguagem, tribo de gente e a
tropa cavalar. Zepaz se irou, ranhou pigarro. Mas esses citavam
licença, o ciganão Vai-e-Volta, primaz, sacou um escrito, do antigo
sitiante. Tinham alugado ali uma árvore! — o que confirmou o preto
Mozart, servo morador: dês que sepultado debaixo do oiti um deles,
só para sinalarem onde, ou com figuração pagã, por crerem em
espíritos e nas fadas; e pago o preto Mozart para, durado de semana,
verter goles de vinho na cova.
E
agora desaforados mandavam vir o Padre? Já armavam barracas, em
beira da lagoa, por três dias com suas noites. Então, pagassem,
justo uso, o capim para os animais e o desar e desordens. Até o
cozinheiro-boiadeiro, que acendia fogo, além, cerca do riacho,
apontou neles garrucha. Se sabia, também, no meio de tais, um peão
amansador, cigano nenhum, grinfo e mudo surdo.
A
boiada apareceu e encheu as vistas. Era de tardinha. A ciganada se
inçando, os vaqueiros repeliam esses malandantes, sofreavam as
bridas, sem vez de negócio nem conversação. O Padre deu viva,
arrecadou o rosário em algibeira. Zepaz mandou a mulher se recatar,
ela saiu da porta, dada formosa risada.
So-Lau,
o capataz, se propôs, rente o cachorro cor de sebo, e mais outro,
vaqueiro com a buzina de corno, Serafim, visonho ainda tristão,
jocoso de humildades. Seo Lau, Ladislau, impunha pasto plantado, por
afreguesada regalia, não tolerava o gado em rapador. Serafim,
aquele, só certo figurava, em par com as chefias e os destinos.
Zepaz
estava com o juízo quente. E que quais vinham lá aqueles dois: o
cego, pernas estreitas de andar, com uma cruz grande às costas; o
guia — rebuço de menino corcunda, feio como um caju e sua
castanha. — Menino é a mãe! — ele contestou, era muito
representado. Era o anão Dinhinhão. Retornava para sertões, comum
que o dinheiro corre é nas cidades? Dizendo que por vontade própria
o cego carregava a cruz: — Penitências nossas... — se
assoviava. — Pois dizem que matei um homem, precipitado... —
ora, ô. Ele? porque cego nasceu, com culpas encarnadas.
O
Padre não desdisse: tinha cedido de vir — pela espórtula dos
ciganos, os que com fortes quantias, decerto salteado por aí algum
fazendeiro. Dinhinhão leve encaminhava o cego atrás deles, para
festivo esmolar, já acham que ele é profeta, espia com
sem-vergonhez as ciganas. A mulher de Zepaz piscava outra vez, na
janela, primorosa sem rubôres. O cego, sentado, não se desabraçava
da cruz.
O
chefe cigano vem a So Lalau, pé à frente, mãos para trás, subindo
fingidas ladeiras, faz uns respeitos: — Meu dono... — se
chamava era o cigano Zé Voivoda, tinha os bigodes do rei de copas.
Mais o cigano velho Cheirôlo, beijaram a mão do Padre, religião
deles é remedada. Convidavam todos para ceia. So Lau e os vaqueiros
rejeitam, cobram seu feijão atoucinhado. O Padre aceitou; antes,
prova cachaça, de Zepaz, cá fora.
O
Padre bebe ou reza, por este mundo torto, diz-se que ele bebe
particular. Dinhinhão não deixa o cego adormecer de barriga vazia,
vai enxerir no ouvido do vaqueiro Serafim igualamento: — Só o
pobre é que tem direito de rir, mas para isso lhe faltam os fins ou
motivos...; o enxotaram. O preto Mozart se praz do variar de
tanta gente ajuntada. De dentro, a mulher de Zepaz canta que o amor é
estrelas. Zepaz tranca portas. Do lugar, o Te-Quentes, ele trocara
nome para Rancho-Novo. Inda bem que ia ser lua cheia.
A
lua subida sobresselente. Vozeiam os ciganos, os sapos, percebem para
si a noite toda. Dão festa. Aí o peão surdo-mudo: guinchos entre
rincho e re-rincho — de trastalastrás! Fazem isto sem horas, doma
de cavalos e burros, entanto dançam, furupa, tocam instrumentos;
mesmo alegres já tristes, logo de tristes mais alegres. Tudo vêm
ver, às máscaras pacíficas, caminhando muito sutilmente, um solta
grito de gralha; senão o rãzoar, socó, coruja, entes do brejo, de
ocos, o ror do orvalho da aurora. — Sei lá de ontem? — a
parlapa, cigano Manjericão, cigano Gustuxo. Andante a lua. — O
amanhã não é meu... — o cigano Florflor. O Padre, folgaz,
benzeu já o oiti, pau do mato? Se diz — não seja — que as moças
ficam nuas, ante o cego, se banham na lagoa. Por frestas espiará a
mulher de Zepaz o mundo prateado. Dinhinhão, o anão, é quem vigia
o que não há e imoralmente aprende. Zepaz tem o sono grosso. Dormem
todos — cá os vaqueiros bambos de em meio de viagem — dão mão
à natureza. Até o luar alumiava era por acaso.
Até
que o sol fez brecha, o alvorecer já pendurado. A manhãzinha
passarava.
É
já que: nem um cigano!
Idos,
a toque, para o norte, sem a barulhada que sempre fazem, antes de
descamparem. Só refere o preto Mozart: em testa, em fé, em corcel,
o Padre sopesava a cruz…
— Ah!
— impagável, vociferoz, Zepaz, com feio gesticulejo. Dinhinhão
destorce a cabeça enorme, como quando o gato acorda e finge que não;
o cego sobraçado a uma de suas pernas. Aah... — brabo
Zepaz, já griséu. Vote o de arrendar bentas árvores! — caçava
machado. A boiada reaparecia, buscada de rocios e verdes. De risos,
os vaqueiros sacodem os redondos chapéus-de-couro. O cachorro mija
gentil no oitizeiro. — Ai, a minha cruz!? — o cego alastra
braços, à tactura. Dinhinhão de olhos meio em ponto: —
Tem-te, irmão, a cruz emprestei... Ora, ô. Urra o cego, enfeixa
capins em cada mão, cava o chão. A cruz continha um vazio, nem seu
guia soubesse disso, ali ele ocultava o lucro das esmolas. Dinhinhão
rejeita o desabuso, declara, de pé, capaz de cair de qualquer lado:
— O rico é um buraco, o pobre é um pedregulho! — ele
furtou um flautim dos ciganos, capaz de qualquer arlequinada. —
Sou um pecador de Deus... — se volta para todos, para louvor. O
que não produz nem granjeia. Reprovado, aqui então pula no centro,
expõe boas coisas: que o Padre rezou a inteira noite, missionário
ajoelhado num jornal; a mulher de Zepaz, com o cigano Vai-e-Volta, se
estiveram, os dois debaixo de um mantão... Zepaz, sim? ouviu, de
vermelho preteou, emboca em casa, surrando já a mulher, no pé da
afronta, até o diabo levantar o braço. So-Lau entanto só quer:
urgente, cá, Zepaz, imediato, para receber a paga do gado
pernoitado. Dinhinhão toca o flautim, regira, xis, recruza tortas
pernas — diante dele o cego credos desentoa. Zás, em fogos, Zepaz,
deixou trancada a mulher, pelo dinheiro vem, depois vai terminar de
bater. Não. Zepaz torna a entrar, e gritos, mas, então: sovava-o
agora a cacete era a mulher, fiel por sua parte, invesmente. Segundo
o preto Mozart: — Só assim o povo tem divertimento. Se
disse: sem beber, o Padre aguentasse remir mundo tão em
desordenância? Inda se ouvindo um galo que cantava sem onde. A
boiada se abanava. So-Lau decide: — São coisas de outras
coisas... Dá o sair. Se perfaz outra espécie de alegria dos
destrambelhos do Rancho-Novo. Serafim sopra no chifre — os sons
berrantes encheram o adiante.
Guimarães Rosa, in Tutameia
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