Um
trem de ferro com vinte vagões quando descarrila,
ele
sozinho não se recompõe. A cabeça do trem ou seja
a
máquina, sendo de ferro não age. Ela fica no lugar.
Porque
a máquina é uma geringonça fabricada pelo
homem.
E não tem ser. Não tem destinação de Deus. Ela
não
tem alma. É máquina. Mas isso não acontece com a
lacraia.
Eu tive na infância uma experiência que
comprova
o que falo. Em criança a lacraia sempre me
pareceu
um trem. A lacraia parece que puxava vagões.
E
todos os vagões da lacraia se mexiam como os vagões
de
trem. E ondulavam e faziam curvas como os vagões
de
trem. Um dia a gente teve a má idéia de descarrilar
a
lacraia. E fizemos essa malvadeza. Essa peraltagem.
Cortamos
todos os gomos da lacraia e os deixamos no
terreiro.
Os gomos separados como os vagões da máquina.
E
os gomos da lacraia começaram a se mexer. O que é
a
natureza! Eu não estava preparado para assistir
àquela
coisa estranha. Os gomos da lacraia começaram
a
se mexer e se encostar um no outro para se emendarem.
A
gente, nós, os meninos, não estávamos preparados
para
assistir àquela coisa estranha. Pois a lacraia
estava
se recompondo. Um gomo da lacraia procurava o
seu
parceiro parece que pelo cheiro. A gente como que
reconhecia
a força de Deus. A cabeça da lacraia estava
na
frente e esperava os outros vagões se emendarem.
Depois,
bem mais tarde eu escrevi este verso: Com
pedaços
de mim eu monto um ser atônito. Agora me indago
se
esse verso não veio da peraltagem do menino. Agora
quem
está atônito sou eu.
Manoel de Barros, in Memórias Inventadas – A segunda infância
Nenhum comentário:
Postar um comentário