Eis
a diferença: os que, antes, morriam de fome passaram a morrer por
falta de comida.
Taberneira
Tuzébio
– Ma
ria no! Marianôôô! Venha, Mariano! Era a voz antiga das mulheres,
no tempo da minha infância. Chamavam-me para acender o lume.
Cumpriam um preceito de antigamente: apenas um homem podia iniciar o
fogo. As mulheres tinham a tarefa da água. E se refazia o eterno: na
cozinha se afeiçoavam, sob gesto de mulher, o fogo e a água. Como
nos céus, os deuses moldavam a chuva e o relâmpago.
A
cozinha me transporta para distantes doçuras. Como se, no embaciado
dos seus vapores, se fabricasse não o alimento, mas o próprio
tempo. Foi naquele chão que inventei brinquedo e rabisquei os meus
primeiros desenhos. Ali escutei falas e risos, ondulações de
vestidos. Naquele lugar recebi os temperos do meu crescer.
Não
era apenas a casa que nos distinguia em Luar-do-Chão. A nossa
cozinha nos diferenciava dos outros. Em toda a Ilha, as cozinhas
ficam fora, no meio dos quintais, separadas da restante casa. Nós
vivíamos ao modo europeu, cozinhando dentro, comendo fechados. No
princípio, ainda houve resistência. Lembro como minha Avó conduzia
as bacias e panelas, dentro e fora, fora e dentro. Outras mulheres
passavam equilibrando latas de água nas cabeças, como se escutassem
o compasso da terra sob os pés descalços. E a porta de rede, num
sonolento bater e rebater. O pilão fiel ao chão. E tum-tum-tum, a
dança das mulheres pilando. Muito-muito era Tia Admirança quem eu
gostava de ver esgrimindo o corpo contra o grão.
É
ela agora quem está pilando, farelando os grãos de milho. Em
cerimónia de morto há que alimentar os vivos. E parece que o
apetite aumenta face à presença dos obituados. Já lhe ofereci
ajuda, mas ela sorriu: pilar não é função de macho. Bastava que
eu ficasse ali, olhando, que já ajudava o suficiente. O suor
escorre-lhe na testa e, aos salpingos, goteja por cima do milho.
Óptimo, pensei, a comida vai ter o sabor dela. A mão ajeita uma
maqeixa, como se houvesse jeito para aquela cabeleira dela. Depois,
numa ondulação, faz recurvar todo o corpo, esmerando a sua
redondura.
Minha
tia é mulher de mistério, com mal-contadas passagens no viver. Ela
estivera fora, antes do meu nascimento. Não fora muita a distância
mas era o além-margem, o outro lado do rio. E isso bastava para que
nada soubéssemos dela. Que país é este que a pessoa se retira um
meio-passo e já está no outro lado do mundo? Admirança só
regressou anos mais tarde, quando eu ganhava olho de lambuzar a vida.
Sobre
Admirança recaía o maior peso que, neste lado do mundo, uma mulher
pode carregar: ser estéril. Dizia-se dela que o seu sangue não
tinha germinado. A nossa tia preferia rodear o assunto.
– Vou
sendo mãe avulsa, deste e daquele. Biscateio maternidades. Por
exemplo, agora sou mãe de Miserinha.
Não
lhe faltava motivo para andar de olho na nossa hóspede. Lhe chegavam
relatos de assustar sobre os desvarios de Miserinha. Dizia-se, por
exemplo, que ela comia extracto de vidro. Acreditava que, ingerindo
aqueles estilhaços, ficaria transparente. Admirança a tudo
contemporizava, desculpando Miserinha: – Essa mulher sofreu
desgostos que só eu conheço! O amor a castigara, a vida não lhe
oferecera presentes. O amor nos pune de modo tão brando que
acreditamos estar sendo acariciados. Miserinha perdera seu marido,
]orojo, não ganhara seu amante, Mariano. Agora, a velha gorda não
era mais que uma sombra, alojada num quarto das dependências. Ali
inventava seus panos, seus devaneios. Admirança a maternizava,
condescendente.
– Sou
mãe disto tudo, da casa, da família, da Ilha. E até posso ser sua
mãe, Mariano.
O
seu riso não escondia um travo triste. No fundo, ela sabia que, com
o desaparecimento do velho Mariano, todas as certezas ganhavam barro
em seus alicerces. Se adivinhavam o desabar da família, o extinguir
da casa, o desvanecer da terra.
– Desaparece
o velho Mariano e o que é que mais nos vai unir? Lhe afago o rosto,
a espantar o desalento. Poucas vezes a tinha visto em flagrante de
aflição.
– Tia,
lhe agradeço muito.
– Me
agradece o quê, sobrinho?
– Por
nunca mostrar tristeza. A Tia oferece tanto sorriso que parece uma
pessoa feliz, sempre tão feliz.
– Sou
como a formiga de asas, sabe? A formiga de asas só tem um voo de
viver. Pas sada essa breve viagem deixa tombar as asas, duas
transparenciazinhas já sem uso. Desmaia no chão para ser rainha.
Assim se sentia Admirança: a sua porção de céu já fora cumprida.
E ela retoma para o pilão, os gestos vigorosos parecem moer não o
milho, mas sofridas lembranças.
Reentro
na cozinha e me sento junto à mesa. A Avó Dulcineusa canta a sua
lengalenga enquanto vai vigiando a panela, no brandeamento do lume.
Adormeço profundamente. Acordo depois sozinho, desconhecedor do
tempo. A primeira coisa que vejo é a carta. Está pousada por cima
do prato. Ao apanhá-la entorno um copo. Num segundo, a água cobre o
papel. Rápido leio antes que as letras se dissolvam e a tinta
desvaneça.
Meu
neto, vejo que anda por aí a indagar o modo como faleci. Quer saber
como começou a minha doença? A verdade é: nem por enquanto sei.
Doença tem começo? Ou sendo como o amor: essas coisas que só
existem depois de serem lembradas? Quem sabe a minha doença começou
mesmo antes de acontecer? Ainda não sofria de nenhum declarado
enjeito quando me dirigi ao hospital e me apresentei ao Doutor
Amílcar Mascarenha. Não tendo ainda padecimento mas ansiando ser
curado. Que queixa tinha? Não sabia. Talvez do sono, tão leve que
nem me pousava. Dormia mal, sempre foi assim. O único tempo em que
dormi foi quando não havia tempo: no ventre de minha mãe.
Não
servia como queixa? Então, eu disse: espere, doutor, não me mande
embora que eu preciso de escutar a sua palavra. Só escutar certeza
igual à sua, já é praia em pé de náufrago. E que doença ele me
aconselhava, na falta de me ocorrer uma apropriada? Mascarenha tinha
medo de me receitar enfermidade. E lhe dei coragem: doutor, fale sem
medo. Me destine uma doença qualquer, seja mesmo uma maleita de
mulher. Até preferia, sinceramente. A mulher, doutor, a mulher para
ser feliz não necessita de se acriançar. Mas nós, homens, temos
essa dificuldade com a alegria. Para ganhar o total riso temos que
amiudar o juízo. Me destine doença de mulher. Me avarie uma das
intimidades delas que têm as entranhas cheias de órgãos.
O
médico, na altura, não queria o gasto de conversa. O tempo dele
contava e valia. Ergueu-se e calcorreou o gabinete, observando o
soalho, como se meditasse. Não meditava, media era o rasto de matope
deixado por meu desleixo. Desculpe, doutor, meus pés se comportam
assim. É que eu venho da lama, pó molhado. É esta chuva, e apontei
pela janela, esta chuva que não pára, já quase não nos resta mais
céu. Lhe confessei um segredo, no momento: estou sempre ganhando
esperteza com a chuva. Há coisas que só vejo através das gotas, em
dia chuvoso. O senhor, disse eu a Amílcar Mascarenha, o senhor
estudou nos livros e no estrangeiro.
O
doutor me rectifica? Não foi lá fora que o senhor estudou? Está
bem mas não está certo. Os livros são um estrangeiro, para mim.
Porque eu estudo na chuva. Ela é minha ensinadora.
O
médico escutou tudo isto, sem me interromper. E a mim, essa escuta
que ele me ofereceu quase me curou. Então, eu disse: já estou
tratado, só com o tempo que me cedeu, doutor. É isso que, em minha
vida, me tem escasseado: me oferecerem escuta, orelhas postas em
minhas confissões. Veja a minha mulher, passa a vida falando com
Deus. E eu vou ficando calado. Mesmo aos domingos de manhã: fico
calado. Assim, silencioso, vou rezando. Que a gente reza melhor é
quando nem sabemos que estamos a rezar. O silêncio, doutor. O
silêncio é a língua de Deus.
Era
o silêncio que me assistia quando visitava meu primo Carlito
Araldito, sapateiro de profissão. Eu permanecia sentado,
contemplando seus ofícios. À saída, lhe dizia: minha vida, sabe,
Araldito, minha vida é um sapato desses, usado de velho. A gente
pode voltar a calçar, o cabedal pode voltar a brilhar, mas somos nós
que já não brilhamos. Entendeu? Uma coisa assim em segunda mão. Em
segundo pé, no caso. Ríamos, mas era sem vontade. Eu e Araldito.
Falávamos de nós como se de amigos já falecidos. Estávamos
assistindo ao nosso próprio funeral.
Assinado
e reconhecido: Dito Ma ria no Na solidão da cozinha vou lendo
enquanto as letras se vão esbatendo no papel molhado. Depois a folha
murcha, a escrita já sem desenho nem memória. Estou retido em mim,
sem aviso do tempo, quando escuto vozes. Há gente no salão de
visitas. Vou espreitar, é Tio Ultímio que rodopia entre as quatro
paredes. Não nota a minha presença. O que faz ele? Está
conversando, debitando colóquio com o Avô. O tom é severo, quase
de ameaça. Sou movido por maldades quando o flagranteio: – Está
falando com o Avô, Tio Ultímio? Ele se surpreende e demora até
retomar a voz.
Falar
com o falecido? Quem, ele? Estava era falando sozinho, em segredo de
boca e botão. Ultímio gagueja enquanto caminha em redor da mesa.
Passa a mão pelas paredes, recolhe tinta levantada pela humidade.
– Está
ver o que fizeram? Destroem tudo, esta malta dá cabo de tudo. Quem
mandou destruir esta merda do tecto? Ultímio sabia que era
obediência de tradições.
Mas
não aceitava que eu, moldado e educado na cidade, não me opusesse.
Para ele, aquilo era obsoleto. Outros valores nele se avolumam.
– É
que isto assim desvaloriza a propriedade... Confessa, então, o fio
de sua ambição. Ele quer desfazer-se da casa da família. E vender
Nyumba-Kaya a investidores estrangeiros. Ali se faria um hotel.
– Mas
esta casa, Tio...
– Aqui
só mora o passado. Morrendo o Avô para que é que interessa manter
esta porcaria? Além disso, a Ilha vai ficar cheia de futuro. Você
não sabe mas tudo isto vai levar uma grande volta...
Resisto,
opondo argumento contra intento. Nyumba-Kaya não poderia sair de
nossas mãos, afastar-se de nossas vidas. Ultímio ri-se. Para ele
não sou mais que o miúdo que ele sempre conhecera. Ainda porcima
continuo recusando os convites que me faz para ser gestor dos seus
negócios.
– Problema
é esse velho que não se despacha. E esse médico que não se
decide.
– Não
é decisão do médico...
– Sim,
mas esse Mascarenha o que diz? O velho está morto ou continua
clinicamente...
– Mascarenha
mantém o que sempre disse.
– Esse
indiano, não confio nesse gajo. Vou mandar vir um médico preto. Um
médico da nossa raça, não quero aqui monhezadas a inteiferir...
– Não
é o senhor que escolhe sozinho, Tio Ultímio.
– Mas
sou eu que pago sozinho. Ou alguém mais vai pagar? E prossegue
arrebatado. Que não entende os irmãos: por um lado, obedecem à
tradição a ponto de destruir a porcaria do telhado; por outro,
fazem fé na opinião de um médico. Ainda por cima indiano. Sorrio,
incrédulo. Eu sabia que Ultímio tinha negócios com indianos e
enriquecera à custa de negócios de terrenos com aqueles a que agora
chamava de “monhés”. A raça contava para umas coisas, para
outras não. Isso me apeteceu dizer, mas não tive boca para tanto.
– Venha
comigo, vamos sair por aí! – ordena meu tio.
Quer
companhia num passeio pela Ilha. Quer mostrar-me esses territórios
onde ele pensa fazer dinheiro. Pretende, sobretudo, mostrar-me a sua
viatura, aquele todo-o-terreno, cheio de prateados.
– Mais
nenhum sacana me vai riscar esta máquina! Tinha mandado vir da
cidade vidros e pneus novos. Aceito, quase que por preguiça. Uma
tristeza funda me dilacera o peito: pela janela do carro vejo a casa
se afastar. Até se afundar no cacimba. Ultímio está distante da
minha tristeza. Seu empenho é explicar-me a valia do seu automóvel,
acabado de ser lançado em África.
– Aposto
que não há mais nenhum carro destes no país. Sou eu o único dono,
eu.
Tio
Ultímio tem intenção de ficar com os terrenos, até quer instalar
um casino na Ilha com vastos terrenos em redor.
– Mas
aqui há gente morando!
– Gente?
Ah, estes...
– O
que vai fazer com eles?
– Vai-se
ver, vai-se ver. Tudo se fará legalmente, na conformidade da lei.
Para já vou colocar as propriedades em nome da minha esposa.
Lembra-se dela, não lembra? – Claro que lembro. Já sei que está
fora do país.
– Foi
visitar os miúdos, fica um tempo por lá.
A
relação com a esposa estava, desde há muito, nas ruas da amargura.
Mas os novos-ricos seguem o velho preceito: não se separam das
esposas. O homem arranja, sim, novas namoradas, tantas quantos os
apartamentos que vai alugando em diferentes bairros da cidade.
Tinham-me falado dessas desavenças mas eu não sou de deitar tento
em bocas-de-orelhas. Avisaram-me também que Ultímio estava muito
magro, receando-se que estivesse doente. Mas não se confirma: o Tio
está anafado e luzidio. Ele sabe que estou olhando para ele. Bate na
barriga, enquanto me interroga.
– Acha
que eu engordei, sobrinho? Acha que tenho pança de ricalhaço?
– Não
disse nada, Tio.
– Engano
seu, Mariano: os pobres são quem mais engorda.
Chegamos
ao cemitério, ele desliga a viatura. O tom de voz anuncia nova
seriedade na conversa: me trouxera ali para me convencer a partilhar
da sua opinião nas reuniões de família. Sermos uma só voz, era
isso que se precisava. Para despachar aquele imbróglio e dar
andamento a assuntos práticos. Ele é que conhecia o caminho do
progresso, ele é que tinha influências e poderes.
– O
Avô estava senil quando lhe nomeou a si, um miúdo...
O
Tio não espera resposta minha. De repente, vira costas, sai do carro
e se esgueira por entre muros. O que iria ele fazer?, ainda me
interrogo. Não passa um instante e reparo que regressa trazendo
consigo uma jovem mulher. É talvez a mais bela moça que eu jamais
vira. Vem acanhada, em passo acabrunhado. Está vestida de capulana
verde, com cajus vermelhos pintados. Com a mesma capulana ela recobre
o rosto, como se uma vergonha a obrigasse a esconder identidade.
Ambos ficam encostados junto ao muro. Ultímio fala com ela, a miúda
não responde. Já quando o Tio se está afastando em direcção ao
carro, a moça grita. Um arrepio me engalinha: aquilo não é voz de
humana pessoa mas de rasteira bicheza. As palavras surgem enlameadas
como se a maxila estivesse solta, desobedecida do pensamento: –
Mali!
Ni
kumbela malil Ela se vira para mim e demora a engendrar, entre
esgares e cuspos, as duplicadas palavras. Com gestos mostro-lhe que
não entendo. Ultímio encolhe os ombros enquanto vai arrancando.
Custa-lhe a aceitar o já não falar a sua língua de nascença.
– A
miúda não fala português, é pena.
Voltamos
para casa, o carro resvalando pelas areias soltas. Quando trava o
carro, frente ao nosso quintal, uma nuvem de poeira se levanta e isso
parece agradar a Ultímio. Esta é a pobreza dos nossos novos-ricos.
Não são ricos. Basta-lhes parecer. Meu tio se despede e anuncia, em
tom de comunicado governamental: que se vai enterrar o morto, ele já
encomendou cerimónia, pagou os serviços do covei ro. Quer se
queira, quer não.
– Mas
eu sou o mestre-de-cerimónia, Tio.
– Você
estará lá, no seu lugar, no seu devido lugar.
Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
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