quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Capítulo onze | Acutilantes dúvidas, redondulantes mulheres


Eis a diferença: os que, antes, morriam de fome passaram a morrer por falta de comida.
Taberneira Tuzébio

Ma ria no! Marianôôô! Venha, Mariano! Era a voz antiga das mulheres, no tempo da minha infância. Chamavam-me para acender o lume. Cumpriam um preceito de antigamente: apenas um homem podia iniciar o fogo. As mulheres tinham a tarefa da água. E se refazia o eterno: na cozinha se afeiçoavam, sob gesto de mulher, o fogo e a água. Como nos céus, os deuses moldavam a chuva e o relâmpago.
A cozinha me transporta para distantes doçuras. Como se, no embaciado dos seus vapores, se fabricasse não o alimento, mas o próprio tempo. Foi naquele chão que inventei brinquedo e rabisquei os meus primeiros desenhos. Ali escutei falas e risos, ondulações de vestidos. Naquele lugar recebi os temperos do meu crescer.
Não era apenas a casa que nos distinguia em Luar-do-Chão. A nossa cozinha nos diferenciava dos outros. Em toda a Ilha, as cozinhas ficam fora, no meio dos quintais, separadas da restante casa. Nós vivíamos ao modo europeu, cozinhando dentro, comendo fechados. No princípio, ainda houve resistência. Lembro como minha Avó conduzia as bacias e panelas, dentro e fora, fora e dentro. Outras mulheres passavam equilibrando latas de água nas cabeças, como se escutassem o compasso da terra sob os pés descalços. E a porta de rede, num sonolento bater e rebater. O pilão fiel ao chão. E tum-tum-tum, a dança das mulheres pilando. Muito-muito era Tia Admirança quem eu gostava de ver esgrimindo o corpo contra o grão.
É ela agora quem está pilando, farelando os grãos de milho. Em cerimónia de morto há que alimentar os vivos. E parece que o apetite aumenta face à presença dos obituados. Já lhe ofereci ajuda, mas ela sorriu: pilar não é função de macho. Bastava que eu ficasse ali, olhando, que já ajudava o suficiente. O suor escorre-lhe na testa e, aos salpingos, goteja por cima do milho. Óptimo, pensei, a comida vai ter o sabor dela. A mão ajeita uma maqeixa, como se houvesse jeito para aquela cabeleira dela. Depois, numa ondulação, faz recurvar todo o corpo, esmerando a sua redondura.
Minha tia é mulher de mistério, com mal-contadas passagens no viver. Ela estivera fora, antes do meu nascimento. Não fora muita a distância mas era o além-margem, o outro lado do rio. E isso bastava para que nada soubéssemos dela. Que país é este que a pessoa se retira um meio-passo e já está no outro lado do mundo? Admirança só regressou anos mais tarde, quando eu ganhava olho de lambuzar a vida.
Sobre Admirança recaía o maior peso que, neste lado do mundo, uma mulher pode carregar: ser estéril. Dizia-se dela que o seu sangue não tinha germinado. A nossa tia preferia rodear o assunto.
Vou sendo mãe avulsa, deste e daquele. Biscateio maternidades. Por exemplo, agora sou mãe de Miserinha.
Não lhe faltava motivo para andar de olho na nossa hóspede. Lhe chegavam relatos de assustar sobre os desvarios de Miserinha. Dizia-se, por exemplo, que ela comia extracto de vidro. Acreditava que, ingerindo aqueles estilhaços, ficaria transparente. Admirança a tudo contemporizava, desculpando Miserinha: – Essa mulher sofreu desgostos que só eu conheço! O amor a castigara, a vida não lhe oferecera presentes. O amor nos pune de modo tão brando que acreditamos estar sendo acariciados. Miserinha perdera seu marido, ]orojo, não ganhara seu amante, Mariano. Agora, a velha gorda não era mais que uma sombra, alojada num quarto das dependências. Ali inventava seus panos, seus devaneios. Admirança a maternizava, condescendente.
Sou mãe disto tudo, da casa, da família, da Ilha. E até posso ser sua mãe, Mariano.
O seu riso não escondia um travo triste. No fundo, ela sabia que, com o desaparecimento do velho Mariano, todas as certezas ganhavam barro em seus alicerces. Se adivinhavam o desabar da família, o extinguir da casa, o desvanecer da terra.
Desaparece o velho Mariano e o que é que mais nos vai unir? Lhe afago o rosto, a espantar o desalento. Poucas vezes a tinha visto em flagrante de aflição.
Tia, lhe agradeço muito.
Me agradece o quê, sobrinho?
Por nunca mostrar tristeza. A Tia oferece tanto sorriso que parece uma pessoa feliz, sempre tão feliz.
Sou como a formiga de asas, sabe? A formiga de asas só tem um voo de viver. Pas sada essa breve viagem deixa tombar as asas, duas transparenciazinhas já sem uso. Desmaia no chão para ser rainha. Assim se sentia Admirança: a sua porção de céu já fora cumprida. E ela retoma para o pilão, os gestos vigorosos parecem moer não o milho, mas sofridas lembranças.
Reentro na cozinha e me sento junto à mesa. A Avó Dulcineusa canta a sua lengalenga enquanto vai vigiando a panela, no brandeamento do lume. Adormeço profundamente. Acordo depois sozinho, desconhecedor do tempo. A primeira coisa que vejo é a carta. Está pousada por cima do prato. Ao apanhá-la entorno um copo. Num segundo, a água cobre o papel. Rápido leio antes que as letras se dissolvam e a tinta desvaneça.
Meu neto, vejo que anda por aí a indagar o modo como faleci. Quer saber como começou a minha doença? A verdade é: nem por enquanto sei. Doença tem começo? Ou sendo como o amor: essas coisas que só existem depois de serem lembradas? Quem sabe a minha doença começou mesmo antes de acontecer? Ainda não sofria de nenhum declarado enjeito quando me dirigi ao hospital e me apresentei ao Doutor Amílcar Mascarenha. Não tendo ainda padecimento mas ansiando ser curado. Que queixa tinha? Não sabia. Talvez do sono, tão leve que nem me pousava. Dormia mal, sempre foi assim. O único tempo em que dormi foi quando não havia tempo: no ventre de minha mãe.
Não servia como queixa? Então, eu disse: espere, doutor, não me mande embora que eu preciso de escutar a sua palavra. Só escutar certeza igual à sua, já é praia em pé de náufrago. E que doença ele me aconselhava, na falta de me ocorrer uma apropriada? Mascarenha tinha medo de me receitar enfermidade. E lhe dei coragem: doutor, fale sem medo. Me destine uma doença qualquer, seja mesmo uma maleita de mulher. Até preferia, sinceramente. A mulher, doutor, a mulher para ser feliz não necessita de se acriançar. Mas nós, homens, temos essa dificuldade com a alegria. Para ganhar o total riso temos que amiudar o juízo. Me destine doença de mulher. Me avarie uma das intimidades delas que têm as entranhas cheias de órgãos.
O médico, na altura, não queria o gasto de conversa. O tempo dele contava e valia. Ergueu-se e calcorreou o gabinete, observando o soalho, como se meditasse. Não meditava, media era o rasto de matope deixado por meu desleixo. Desculpe, doutor, meus pés se comportam assim. É que eu venho da lama, pó molhado. É esta chuva, e apontei pela janela, esta chuva que não pára, já quase não nos resta mais céu. Lhe confessei um segredo, no momento: estou sempre ganhando esperteza com a chuva. Há coisas que só vejo através das gotas, em dia chuvoso. O senhor, disse eu a Amílcar Mascarenha, o senhor estudou nos livros e no estrangeiro.
O doutor me rectifica? Não foi lá fora que o senhor estudou? Está bem mas não está certo. Os livros são um estrangeiro, para mim. Porque eu estudo na chuva. Ela é minha ensinadora.
O médico escutou tudo isto, sem me interromper. E a mim, essa escuta que ele me ofereceu quase me curou. Então, eu disse: já estou tratado, só com o tempo que me cedeu, doutor. É isso que, em minha vida, me tem escasseado: me oferecerem escuta, orelhas postas em minhas confissões. Veja a minha mulher, passa a vida falando com Deus. E eu vou ficando calado. Mesmo aos domingos de manhã: fico calado. Assim, silencioso, vou rezando. Que a gente reza melhor é quando nem sabemos que estamos a rezar. O silêncio, doutor. O silêncio é a língua de Deus.
Era o silêncio que me assistia quando visitava meu primo Carlito Araldito, sapateiro de profissão. Eu permanecia sentado, contemplando seus ofícios. À saída, lhe dizia: minha vida, sabe, Araldito, minha vida é um sapato desses, usado de velho. A gente pode voltar a calçar, o cabedal pode voltar a brilhar, mas somos nós que já não brilhamos. Entendeu? Uma coisa assim em segunda mão. Em segundo pé, no caso. Ríamos, mas era sem vontade. Eu e Araldito. Falávamos de nós como se de amigos já falecidos. Estávamos assistindo ao nosso próprio funeral.
Assinado e reconhecido: Dito Ma ria no Na solidão da cozinha vou lendo enquanto as letras se vão esbatendo no papel molhado. Depois a folha murcha, a escrita já sem desenho nem memória. Estou retido em mim, sem aviso do tempo, quando escuto vozes. Há gente no salão de visitas. Vou espreitar, é Tio Ultímio que rodopia entre as quatro paredes. Não nota a minha presença. O que faz ele? Está conversando, debitando colóquio com o Avô. O tom é severo, quase de ameaça. Sou movido por maldades quando o flagranteio: – Está falando com o Avô, Tio Ultímio? Ele se surpreende e demora até retomar a voz.
Falar com o falecido? Quem, ele? Estava era falando sozinho, em segredo de boca e botão. Ultímio gagueja enquanto caminha em redor da mesa. Passa a mão pelas paredes, recolhe tinta levantada pela humidade.
Está ver o que fizeram? Destroem tudo, esta malta dá cabo de tudo. Quem mandou destruir esta merda do tecto? Ultímio sabia que era obediência de tradições.
Mas não aceitava que eu, moldado e educado na cidade, não me opusesse. Para ele, aquilo era obsoleto. Outros valores nele se avolumam.
É que isto assim desvaloriza a propriedade... Confessa, então, o fio de sua ambição. Ele quer desfazer-se da casa da família. E vender Nyumba-Kaya a investidores estrangeiros. Ali se faria um hotel.
Mas esta casa, Tio...
Aqui só mora o passado. Morrendo o Avô para que é que interessa manter esta porcaria? Além disso, a Ilha vai ficar cheia de futuro. Você não sabe mas tudo isto vai levar uma grande volta...
Resisto, opondo argumento contra intento. Nyumba-Kaya não poderia sair de nossas mãos, afastar-se de nossas vidas. Ultímio ri-se. Para ele não sou mais que o miúdo que ele sempre conhecera. Ainda porcima continuo recusando os convites que me faz para ser gestor dos seus negócios.
Problema é esse velho que não se despacha. E esse médico que não se decide.
Não é decisão do médico...
Sim, mas esse Mascarenha o que diz? O velho está morto ou continua clinicamente...
Mascarenha mantém o que sempre disse.
Esse indiano, não confio nesse gajo. Vou mandar vir um médico preto. Um médico da nossa raça, não quero aqui monhezadas a inteiferir...
Não é o senhor que escolhe sozinho, Tio Ultímio.
Mas sou eu que pago sozinho. Ou alguém mais vai pagar? E prossegue arrebatado. Que não entende os irmãos: por um lado, obedecem à tradição a ponto de destruir a porcaria do telhado; por outro, fazem fé na opinião de um médico. Ainda por cima indiano. Sorrio, incrédulo. Eu sabia que Ultímio tinha negócios com indianos e enriquecera à custa de negócios de terrenos com aqueles a que agora chamava de “monhés”. A raça contava para umas coisas, para outras não. Isso me apeteceu dizer, mas não tive boca para tanto.
Venha comigo, vamos sair por aí! – ordena meu tio.
Quer companhia num passeio pela Ilha. Quer mostrar-me esses territórios onde ele pensa fazer dinheiro. Pretende, sobretudo, mostrar-me a sua viatura, aquele todo-o-terreno, cheio de prateados.
Mais nenhum sacana me vai riscar esta máquina! Tinha mandado vir da cidade vidros e pneus novos. Aceito, quase que por preguiça. Uma tristeza funda me dilacera o peito: pela janela do carro vejo a casa se afastar. Até se afundar no cacimba. Ultímio está distante da minha tristeza. Seu empenho é explicar-me a valia do seu automóvel, acabado de ser lançado em África.
Aposto que não há mais nenhum carro destes no país. Sou eu o único dono, eu.
Tio Ultímio tem intenção de ficar com os terrenos, até quer instalar um casino na Ilha com vastos terrenos em redor.
Mas aqui há gente morando!
Gente? Ah, estes...
O que vai fazer com eles?
Vai-se ver, vai-se ver. Tudo se fará legalmente, na conformidade da lei. Para já vou colocar as propriedades em nome da minha esposa. Lembra-se dela, não lembra? – Claro que lembro. Já sei que está fora do país.
Foi visitar os miúdos, fica um tempo por lá.
A relação com a esposa estava, desde há muito, nas ruas da amargura. Mas os novos-ricos seguem o velho preceito: não se separam das esposas. O homem arranja, sim, novas namoradas, tantas quantos os apartamentos que vai alugando em diferentes bairros da cidade. Tinham-me falado dessas desavenças mas eu não sou de deitar tento em bocas-de-orelhas. Avisaram-me também que Ultímio estava muito magro, receando-se que estivesse doente. Mas não se confirma: o Tio está anafado e luzidio. Ele sabe que estou olhando para ele. Bate na barriga, enquanto me interroga.
Acha que eu engordei, sobrinho? Acha que tenho pança de ricalhaço?
Não disse nada, Tio.
Engano seu, Mariano: os pobres são quem mais engorda.
Chegamos ao cemitério, ele desliga a viatura. O tom de voz anuncia nova seriedade na conversa: me trouxera ali para me convencer a partilhar da sua opinião nas reuniões de família. Sermos uma só voz, era isso que se precisava. Para despachar aquele imbróglio e dar andamento a assuntos práticos. Ele é que conhecia o caminho do progresso, ele é que tinha influências e poderes.
O Avô estava senil quando lhe nomeou a si, um miúdo...
O Tio não espera resposta minha. De repente, vira costas, sai do carro e se esgueira por entre muros. O que iria ele fazer?, ainda me interrogo. Não passa um instante e reparo que regressa trazendo consigo uma jovem mulher. É talvez a mais bela moça que eu jamais vira. Vem acanhada, em passo acabrunhado. Está vestida de capulana verde, com cajus vermelhos pintados. Com a mesma capulana ela recobre o rosto, como se uma vergonha a obrigasse a esconder identidade. Ambos ficam encostados junto ao muro. Ultímio fala com ela, a miúda não responde. Já quando o Tio se está afastando em direcção ao carro, a moça grita. Um arrepio me engalinha: aquilo não é voz de humana pessoa mas de rasteira bicheza. As palavras surgem enlameadas como se a maxila estivesse solta, desobedecida do pensamento: – Mali!
Ni kumbela malil Ela se vira para mim e demora a engendrar, entre esgares e cuspos, as duplicadas palavras. Com gestos mostro-lhe que não entendo. Ultímio encolhe os ombros enquanto vai arrancando. Custa-lhe a aceitar o já não falar a sua língua de nascença.
A miúda não fala português, é pena.
Voltamos para casa, o carro resvalando pelas areias soltas. Quando trava o carro, frente ao nosso quintal, uma nuvem de poeira se levanta e isso parece agradar a Ultímio. Esta é a pobreza dos nossos novos-ricos. Não são ricos. Basta-lhes parecer. Meu tio se despede e anuncia, em tom de comunicado governamental: que se vai enterrar o morto, ele já encomendou cerimónia, pagou os serviços do covei ro. Quer se queira, quer não.
Mas eu sou o mestre-de-cerimónia, Tio.
Você estará lá, no seu lugar, no seu devido lugar.

Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra

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