quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

A Lua Vem da Ásia | Cosmogonia

D

Sentado à mesa de um bar, como é do meu hábito. Diante de mim um copo de cerveja, loiro e cheio de dignidade. No muro em frente um filósofo escreveu, em grandes letras, a palavra suprema: MERDA, que vibra ao sol da manhã como um grande sino convocando os infiéis a um sabbat sem precedentes, com baionetas caladas em vez de vassouras e o bode preto substituído pela face mansa e apostólica de um buda de marfim.
Estou mais lúcido do que uma nota tocada ao piano, e meus dedos são dez antenas voltadas para os dez mandamentos da lei antimosaica e que um dia dominarão o mundo, no verdadeiro dia do Juízo Final. Estou mais bíblico do que são João em Patmos, e o meu silêncio é uma harpa eólia que o vento da manhã só torna audível aos que sintam comigo a gravidade da hora presente, banhada de sangue inocente e do pranto das viúvas e dos órfãos.
A um passo de minha sombra, o rio dos transeuntes subindo e descendo a rua ardente, rumo ao sul, rumo ao norte, desorientados apesar do guarda de trânsito que na esquina lhes aponta o bom caminho, servindo-se para isso de um cassetete. Um cavalo cego, puxado por um velho de barbas proféticas, estaca por um instante diante dos meus dedos transformados em signos do zodíaco, mas o velho lhe dá com o chicote no meio da testa e ele se esquece de sua nobre condição de cavalo, seguindo o outro com o andar quase marcial que lhe impõem as pedras da rua. Seria tão mais fácil cair morto sobre as botinas do seu dono e algoz, aos olhos estupefatos dos sobreviventes da última mas não derradeira revolução, em vez de...
A cerveja sabe-me a urina de defunto, mas não sou suficientemente rico para jogá-la à cara do garçom e pedir em troca uma garrafa de champanha, com rolha e tudo, embora tenha vendido a um camelo de esquina meu fuzil-metralhadora com apenas uma cápsula deflagrada. Em tempos normais eu teria enriquecido facilmente, com um argumento tão bom como é e sempre foi um fuzil-metralhadora a tiracolo, mas o dia de hoje é claro e quase pacífico, e nem sequer é carnaval para eu andar vestido de anarquista feroz pelas ruas policiadas e dedetizadas de uma metrópole, muito embora...
Devo ter meus cinquenta anos, a julgar pela carne flácida que sinto quando passo as mãos pelo rosto e em volta do pescoço, num gesto muito meu e que também foi de meu pai. (Aliás, copio meu pai em muitos gestos e atitudes impensadas, e até mesmo na entonação da minha voz, como penso ocorrer com a maioria dos filhos legítimos e ilegítimos, inclusive entre os ratos e os gafanhotos.) Mas a minha idade não tem muita importância, contanto que eu não me olhe ao espelho, e o que vale é esta juventude perene e esse contínuo assombro em que me vejo diante das coisas do mundo, sobretudo das coisas invisíveis e mais certas, como Deus por exemplo e seu partenaire, o diabo. Com cinquenta ou cem anos sinto-me mais jovem do que uma criança recém-nascida, e disso dão prova minha gargalhada fácil e meus dedos ágeis sobre a mesa, mais ágeis do que as formigas de Maeterlinck. Só me sentirei velho depois de morto, e assim mesmo por causa dos vermes e das mãos atadas por sobre o ventre, esse mesmo ventre já não me pertencerá mais e sim ao diabo, ao qual vendi minha alma antes dos vinte anos. (De passagem: conheço velhos que têm apenas doze anos no registro civil e que se envergonhariam se vissem minha juventude cinquentenária e cheia de blasfêmias, eles que nunca blasfemaram em sua vida, nem mesmo em sonho.)
O garçom tem cara de mentecapto, mas isto não me afeta grande coisa, como de resto não me afeta nada de nada neste mundo, e espero também no outro. Cara de mentecapto tem todo mundo, com perdão da palavra, sobretudo se se está apaixonado ou simplesmente faminto, como é o meu caso nesta manhã azul. O homem é por natureza mentecapto, como o é o galo e mais precisamente ainda o zangão diante da abelha-rainha, e o que o faz assim é principalmente o seu poderoso sexo, com cabelo e tudo. Enquanto a fêmea for fêmea e o macho for macho, a inteligência do homem será apenas uma figura de retórica, e a sua imagem no espelho será isto que estou vendo na cara do garçom, por mais penoso que me seja dizê-lo. Resta o recurso do suicídio, se é que isso seja realmente uma solução.
Preciso escrever uma infinidade de livros para desintoxicar-me, e as minhas espinhas são os livros que não escrevi até hoje, embora já tenha escrito muitos. A palavra foi dada ao homem para blasfemar contra o seu destino, e a palavra escrita é a verdadeira palavra, como o defunto é o único homem verdadeiro, em sua mudez total. (Mudez ou nudez, leiam como quiserem).
O dia mais feliz da minha vida foi o dia em que escrevi minha primeira palavra feia no muro alto do colégio — exatamente essa bela palavra MERDA que agora me fita do outro lado da rua, como um desafio. MERDA é tudo que não seja a morte, que talvez também o seja, e disso sempre tiveram consciência os homens menos mentecaptos em seus momentos de maior lucidez, e que são poucos. Merda é a própria vida, mero eufemismo para uso dos salões elegantes e dos tratados diplomáticos, que também são uma merda como tudo mais, como sempre o foram e o serão até o fim dos tempos. Proponho mesmo que, em lugar dos nomes dos países, se diga simplesmente: Merda n.° 1, Merda n.° 2, e assim por diante, chamando-se aos Estados Unidos a capital de todas as merdas, como de fato eles o são.
Que o otimismo é uma grande coisa não resta a menor dúvida, como o é também a santidade, dentro ou fora da Igreja Católica Apostólica Romana. Só que não é otimista quem quer, ao contrário do que pregam os norte-americanos, como não se é santo pela simples extirpação dos testículos ou pelo desejo acirrado de servir ao próximo, mesmo quando se trate de nosso maior inimigo. Ou se nasce inocente ou não se nasce, e a inocência, que rima com inconsciência, é a chave de todo o segredo do santo como do otimista, e nem toda a riqueza do mundo é capaz de pagar o seu preço. Se não consigo ser otimista é porque igualmente não consigo ser menos calvo do que sou, ou menos baixo de estatura, ou ainda menos feio do que pareço diante do espelho. O resto é psicologia de ginásio e receita de milagreiros que nem sequer sabem do que é feita a alma do homem, confundindo-a com o ar dos seus pulmões ou dos seus intestinos, invisível aos raios X.
Se o otimismo se vendesse a peso de ouro, eu o compraria por todo o ouro do mundo e ainda daria de contrapeso o destino de minha alma imortal, já que por muito menos a entreguei um dia ao diabo, que tem fama de bom cobrador. O que me enfeia é justamente este ar de repugnância e tédio que, digam o que quiserem, já trago de nascença e que ficará estampado na face do meu cadáver, como o ficou em Leopardi e em outros cidadãos que nem depois de mortos se traíram. Ao sacerdote que me venha encomendar o corpo peço que respeite ao menos esse ricto de pura náusea que por certo lhe há de causar escândalo, e que os parentes, se os tenho, atribuirão ao lenço amarrado no queixo ou a simples ilusão de óptica, mesmo porque não lhes poderei cuspir no rosto em prova do contrário.
Mas a manhã é azul demais, e eu, sem o meu fuzil, sinto-me impotente diante da beleza do céu e da feiura dos homens que impudicamente se exibem aos meus olhos, sobretudo do guarda armado de cassetete e com ar de soberano pontífice, que dirige o trânsito das almas no meio da rua. E como o lugar do covarde é debaixo da cama, junto do urinol e das baratas, vou procurar um albergue da boa vontade onde me possa deitar no lugar que me compete, enquanto não passe este pessimismo doentio de que me sinto possuído, tal como um xifópago que de repente se dispusesse a meter uma bala na cabeça sem ao menos consultar seu companheiro adormecido.

Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia

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