terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Vida ensinada


Aí, quando se pegou a supradita estrada, da serra, nos neblinões, que era a desses esforçados trabalhos, o gado jurou descrido mais sabiado, a gente teve de aboiar de antigamente; para a ideia não se tendo prazo, em tanto caminho das terríveis possíveis sortes. A memória da gente teve medo. Mas o nosso bom São Marcos Vaqueiro, viageiro, ajudou: primeiro mandou forte desalento; depois, então, a coragem. Deu um justo lugar de paragens, refresquinhas novas águas de brota, roteiro mais acomodado, capim pelo farto, mais o gado tendo juízo. Assim, de manhã cedo à tarde, tudo se inteirou num arredondamento. Tão certo como eu ser o vaqueiro Martim, o de muitos pecados, mas com eles descontentado. Sem embargos se adormecemos. Na descambada da serra, ainda ventava, a gente cuidando em nós e neste mundo de agora — o que são matérias de tempo adiante.
Da Outra boiada urucuiana, Jornada penúltima.

Aqui no por aqui.
Um reboo, poeira, o surgibufe: de frente, desenvoltada de curva, a boiada, geral, aquele chifralhado no ar. Avante à cavalga o ponteiro-guieiro soa trombeta de guampo; dos lados os cabeceiras — depois os costaneiras e os esteiras — altos se avistam, sentados quer que deslizados sobre rio cheio; mas, atrás, os culatras, entre esses timbutiando um vaqueiro da cara barbada, Sarafim, em seu cavalo cabeçudo.
Ele desdiz do rumor feroz, despertence ao arrojo do cortejo. Se há-de saudar, tira o chapéu roído de solão e chuvas; queria ter um relógio e arranja jeito de se coçar o fio das costas, estava sempre meio com fome. Sozinho às vezes se diverte no cantarolativo, chão adiante.
Sarafim vira nesse dia dez gaviões.
Escasso falava, pela língua começa a confusão; mesmo pensar, só quase repensa o conhecido, resumido por todos ou acontecido. Muitas coisas deixava para o ar — a gente tem de surto viver aos trechos — a alegria não é sem seus próprios perigos, a tristeza produz à-toas cansaços. Tomara ele que o escolhessem para ponteiro, tocar o berrante, So Lau mandasse.
Mas isso nem devendo dar a saber, de desejo, por não parecer ralasso madraço ou frouxo, a culatra impõe as responsabilidades.
So Lalau aparecia ali. Vaqueiro bom, ou o quê, Sarafim; costumeiramente bobo. Que modo podia ter matado outro e ainda com a viúva se ajuntado? So Lalau não olhava, mas pensava.
E, nessa, Inácia, sua esposa adotiva, também Sarafim aqui lembrava constante — passada a Fazenda Sidreira, região do Urubu-do-Gado, baixão — sem certeza na matéria. Estava vivendo mais quente, gostava dela todas as vezes. Ela, pondo o tempo, havia de igual querer a ele — saliente guieiro algum dia à testa de boiadas de Seo Drães, seu favorecedor. Devagar e manso se desata qualquer enliço, esperar vale mais que entender, janeiro afofa o que dezembro endurece, as pessoas se encaixam nos veros lugares.
Aquilo? feio começo, se dera por si, ainda às tortas.
Só foi que desesperado o Roxão lhe entregando garrucha: — Juntos, vamos resistir, aos que vêm! — e ele Sarafim a par de nenhum rixar, nem de armas, a garrucha soltada caiu e disparou, aí o Roxão morto, quente, largava filhos e mulher, por eterno.
Vindo mesmo prestes os que com os soldados: — Você ajudou? merece paga... Mas, outro, sem louvor: — Se atirou sem querer, então é panigudo, comparsa! Roxão tinha sido perseguido criminoso. Inda um disse: que por meros motivos ele Sarafim decerto aproveitara para obrar assassinato.
Sarafim, de seu nariz ignorante, olhando porção de movimentos, em pão de nada. Vá alguém somar o que está doendo na cabeça de todos. Ver a ver... — até hoje, o qual cabimento do caso não achava.
Senão que o Seo Drães o livrara de prisão. Pois, olhe... O cachorro, cão gadeiro, ia no trotejo, sabia que So Lau assoviava era por espairecer, não para o chamar.
Sarafim quase sem erro procede; as faces do que há é que reviram sempre para espanto.
Todos na cruz da ocasião o instavam: — Tem de costear os meninos e a viúva! Ele começou a nada dizer. Não queria nem cobiçava; o apertaram mais. E a mulher havia de se conceder?
Ela segurava com duas mãos a peneira de arroz: — Seo meu vaqueiro... O senhor era estimado do falecido... Amigo? Campeiro companheiro, se tanto, feito os dedos das mãos, desirmãos. Em tal reparou que era bonita; toda a vida não sabendo que a notara assim?
Curto para não complicar, contratou-se com ela, a tinha em maior valia. Agouraram então: — Pode ser para vinganças... — ora. Mal por mal, se casou. Por isso e que...
So Lau na sela se soleva, vê o que adiante, se escuta o tôo do ponteiro. Sarafim produz: — Outro tempo o berrante se tangia mais perfeitamente... — repetindo coração, culatreiro capaz, sobre seu cavalo-de-campo.
Só que secas regalias Inácia lhe regateara, as três, duas vezes, no princípio, de amostra. Desde o que, ficado de remissa, ele olhava o pote e as alpercatas. Logradeira não era, mas por refrieza, amuada, mesmo mulher de ninguém.
Sarafim escorava o descaso, sem queixa nem partes, sem puxar a mecha — quem calca, não conserva — até que quietassem as ideias das coisas. Dia viria. Melhor a tratava, conforme facho de flores. Ia e retornava, para essas retardadas boiadas, consertando o caráter, como um boi não se senta. Em mãos dela deixava inteira a jorna, até o com que se pita e bebe. Suspirava arreando e desarreando o cavalo.
Desentendia remoques — quando o quanto aqui se estava, beira riacho, parados para repouso e dando um capim ao gado — palavras mangativas, conversas de café quente. Mais prezasse o guiador, confronte quem se acocorava. Redizia: — Correta obrigação... — a barba não o obstando de inchar bochechas.
Mesmo somente o voltar indenizava-o, ainda que por dia ou dois, ela o recebendo quase com enfeite. Deixava: ele gostar dela. Fosse por um costume — o passado faz artes — o próprio para render confiança. Mas, no restante, outra vez embezerrava, negada, irosa. E então ele no postiço, em torcido estado, se chuchava, só com o cochilar bem-merecido. Um boi boiadeiro remói andando, aquele se babar que se mexe qual que sem dentes.
S’Lalau, se’o’ vem, vê... — mas Sarafim, emperro, se detém de mostrar: por culpa que de descuido do ponteiro, erravam com a boiada pela estrada enganada piorada, das que vêm-se retorcendo entre enfadonhos morros, o figuradio. Tirou um lembrar — que o Roxão, também, marcado o marido, navegara com boiadas: no coice, não, mas tocador da buzina, guia-guieiro.
Seja que os primeiros dias, das tornadas, davam para ela Inácia gastar o pouquinho de saudade que o voo do tempo juntara. Tanto o valor de canseiras e lenteza, fazendo marcha, desestimado, atrasado em amor. Mas, ah, então: e se as viagens pudessem ser persistidas ainda mais longe, do durado de muitos meses — às boiadas de além-gerais — remotamente?
Sarafim, eh — ouviu e se esteve pronto. — Eh, Sarafim... sustendo ele rente a So Lau o cavalo quebralhão. — Você vai de ponteiro — dá-que.
So Lalau determinava — o de quem me dera! De repente, só o faz-se-que, vem, um dia, tudo do ar, não seja a dúvida, debaixo do pé da palavra, nesse menos, mais, ninguém fazia questão... Agora — e ele, até aí sem saber que era, que podia ser assim — a fácil surpresa das coisas. Tempo para se pasmar não lhe sobrasse, com o quê e quanto. Traçou a correia do instrumento.
Tomou o ponto, refinito montado, à frente daquela exata boiada, de So Lau, sendo que do Seo Drães. Sarafim via a estrada vasta miudamente.
Mas era de tarde, ao puro da aragem, do sol já só o rabo, por essa altura de horas. Inda não ia tocar imponente o berrante, pois que vindo o gado vagarado, sem porquanto dar nem percisão nem azo, e impedido ele de bobeação, qualquer brinquedo. Do que não haviam de rir, nesse debalde, nem o reprovar. — Boi adiante…
Ao Te-Quentes, velho lugar de pastura e aguada, onde deviam sentar bivaque e o cozinheiro já estaria cozinhando o feijão e torresmos.
Ali lá chegavam — davam com cavalos e barracas, de uns ciganos — de encontrôo.

Se caminhando uma rês vinte passos por segundo, me diga, sendo profundo: quanto ela anda em um mês?”
Copla viajadora.
Resposta:
O que ela anda, pouco faz, seja para trás ou para diante: a rês caminha o bastante indo para diante ou para trás.
(Simples hipógrafe.)

Guimarães Rosa, in Tutameia

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