Aí,
quando se pegou a supradita estrada, da serra, nos neblinões, que
era a desses esforçados trabalhos, o gado jurou descrido mais
sabiado, a gente teve de aboiar de antigamente; para a ideia não se
tendo prazo, em tanto caminho das terríveis possíveis sortes. A
memória da gente teve medo. Mas o nosso bom São Marcos Vaqueiro,
viageiro, ajudou: primeiro mandou forte desalento; depois, então, a
coragem. Deu um justo lugar de paragens, refresquinhas novas águas
de brota, roteiro mais acomodado, capim pelo farto, mais o gado tendo
juízo. Assim, de manhã cedo à tarde, tudo se inteirou num
arredondamento. Tão certo como eu ser o vaqueiro Martim, o de muitos
pecados, mas com eles descontentado. Sem embargos se adormecemos. Na
descambada da serra, ainda ventava, a gente cuidando em nós e neste
mundo de agora — o que são matérias de tempo adiante.
Da
Outra boiada urucuiana, Jornada penúltima.
Aqui
no por aqui.
Um
reboo, poeira, o surgibufe: de frente, desenvoltada de curva, a
boiada, geral, aquele chifralhado no ar. Avante à cavalga o
ponteiro-guieiro soa trombeta de guampo; dos lados os cabeceiras —
depois os costaneiras e os esteiras — altos se avistam, sentados
quer que deslizados sobre rio cheio; mas, atrás, os culatras, entre
esses timbutiando um vaqueiro da cara barbada, Sarafim, em seu cavalo
cabeçudo.
Ele
desdiz do rumor feroz, despertence ao arrojo do cortejo. Se há-de
saudar, tira o chapéu roído de solão e chuvas; queria ter um
relógio e arranja jeito de se coçar o fio das costas, estava sempre
meio com fome. Sozinho às vezes se diverte no cantarolativo, chão
adiante.
Sarafim
vira nesse dia dez gaviões.
Escasso
falava, pela língua começa a confusão; mesmo pensar, só quase
repensa o conhecido, resumido por todos ou acontecido. Muitas coisas
deixava para o ar — a gente tem de surto viver aos trechos — a
alegria não é sem seus próprios perigos, a tristeza produz à-toas
cansaços. Tomara ele que o escolhessem para ponteiro, tocar o
berrante, So Lau mandasse.
Mas
isso nem devendo dar a saber, de desejo, por não parecer ralasso
madraço ou frouxo, a culatra impõe as responsabilidades.
So
Lalau aparecia ali. Vaqueiro bom, ou o quê, Sarafim; costumeiramente
bobo. Que modo podia ter matado outro e ainda com a viúva se
ajuntado? So Lalau não olhava, mas pensava.
E,
nessa, Inácia, sua esposa adotiva, também Sarafim aqui lembrava
constante — passada a Fazenda Sidreira, região do Urubu-do-Gado,
baixão — sem certeza na matéria. Estava vivendo mais quente,
gostava dela todas as vezes. Ela, pondo o tempo, havia de igual
querer a ele — saliente guieiro algum dia à testa de boiadas de
Seo Drães, seu favorecedor. Devagar e manso se desata qualquer
enliço, esperar vale mais que entender, janeiro afofa o que dezembro
endurece, as pessoas se encaixam nos veros lugares.
Aquilo?
feio começo, se dera por si, ainda às tortas.
Só
foi que desesperado o Roxão lhe entregando garrucha: — Juntos,
vamos resistir, aos que vêm! — e ele Sarafim a par de nenhum
rixar, nem de armas, a garrucha soltada caiu e disparou, aí o Roxão
morto, quente, largava filhos e mulher, por eterno.
Vindo
mesmo prestes os que com os soldados: — Você ajudou? merece
paga... Mas, outro, sem louvor: — Se atirou sem querer,
então é panigudo, comparsa! Roxão tinha sido perseguido
criminoso. Inda um disse: que por meros motivos ele Sarafim decerto
aproveitara para obrar assassinato.
Sarafim,
de seu nariz ignorante, olhando porção de movimentos, em pão de
nada. Vá alguém somar o que está doendo na cabeça de todos. Ver
a ver... — até hoje, o qual cabimento do caso não achava.
Senão
que o Seo Drães o livrara de prisão. Pois, olhe... O
cachorro, cão gadeiro, ia no trotejo, sabia que So Lau assoviava era
por espairecer, não para o chamar.
Sarafim
quase sem erro procede; as faces do que há é que reviram sempre
para espanto.
Todos
na cruz da ocasião o instavam: — Tem de costear os meninos e a
viúva! Ele começou a nada dizer. Não queria nem cobiçava; o
apertaram mais. E a mulher havia de se conceder?
Ela
segurava com duas mãos a peneira de arroz: — Seo meu
vaqueiro... O senhor era estimado do falecido... Amigo? Campeiro
companheiro, se tanto, feito os dedos das mãos, desirmãos. Em tal
reparou que era bonita; toda a vida não sabendo que a notara assim?
Curto
para não complicar, contratou-se com ela, a tinha em maior valia.
Agouraram então: — Pode ser para vinganças... — ora. Mal
por mal, se casou. Por isso e que...
So
Lau na sela se soleva, vê o que adiante, se escuta o tôo do
ponteiro. Sarafim produz: — Outro tempo o berrante se tangia
mais perfeitamente... — repetindo coração, culatreiro capaz,
sobre seu cavalo-de-campo.
Só
que secas regalias Inácia lhe regateara, as três, duas vezes, no
princípio, de amostra. Desde o que, ficado de remissa, ele olhava o
pote e as alpercatas. Logradeira não era, mas por refrieza, amuada,
mesmo mulher de ninguém.
Sarafim
escorava o descaso, sem queixa nem partes, sem puxar a mecha — quem
calca, não conserva — até que quietassem as ideias das coisas.
Dia viria. Melhor a tratava, conforme facho de flores. Ia e
retornava, para essas retardadas boiadas, consertando o caráter,
como um boi não se senta. Em mãos dela deixava inteira a jorna, até
o com que se pita e bebe. Suspirava arreando e desarreando o cavalo.
Desentendia
remoques — quando o quanto aqui se estava, beira riacho, parados
para repouso e dando um capim ao gado — palavras mangativas,
conversas de café quente. Mais prezasse o guiador, confronte quem se
acocorava. Redizia: — Correta obrigação... — a barba não
o obstando de inchar bochechas.
Mesmo
somente o voltar indenizava-o, ainda que por dia ou dois, ela o
recebendo quase com enfeite. Deixava: ele gostar dela. Fosse por um
costume — o passado faz artes — o próprio para render confiança.
Mas, no restante, outra vez embezerrava, negada, irosa. E então ele
no postiço, em torcido estado, se chuchava, só com o cochilar
bem-merecido. Um boi boiadeiro remói andando, aquele se babar que se
mexe qual que sem dentes.
— S’Lalau,
se’o’ vem, vê... — mas Sarafim, emperro, se detém de
mostrar: por culpa que de descuido do ponteiro, erravam com a boiada
pela estrada enganada piorada, das que vêm-se retorcendo entre
enfadonhos morros, o figuradio. Tirou um lembrar — que o Roxão,
também, marcado o marido, navegara com boiadas: no coice, não, mas
tocador da buzina, guia-guieiro.
Seja
que os primeiros dias, das tornadas, davam para ela Inácia gastar o
pouquinho de saudade que o voo do tempo juntara. Tanto o valor de
canseiras e lenteza, fazendo marcha, desestimado, atrasado em amor.
Mas, ah, então: e se as viagens pudessem ser persistidas ainda mais
longe, do durado de muitos meses — às boiadas de além-gerais —
remotamente?
— Sarafim,
eh — ouviu e se esteve pronto. — Eh, Sarafim...
sustendo ele rente a So Lau o cavalo quebralhão. — Você vai de
ponteiro — dá-que.
So
Lalau determinava — o de quem me dera! De repente, só o
faz-se-que, vem, um dia, tudo do ar, não seja a dúvida, debaixo do
pé da palavra, nesse menos, mais, ninguém fazia questão... Agora —
e ele, até aí sem saber que era, que podia ser assim — a fácil
surpresa das coisas. Tempo para se pasmar não lhe sobrasse, com o
quê e quanto. Traçou a correia do instrumento.
Tomou
o ponto, refinito montado, à frente daquela exata boiada, de So Lau,
sendo que do Seo Drães. Sarafim via a estrada vasta miudamente.
Mas
era de tarde, ao puro da aragem, do sol já só o rabo, por essa
altura de horas. Inda não ia tocar imponente o berrante, pois que
vindo o gado vagarado, sem porquanto dar nem percisão nem azo, e
impedido ele de bobeação, qualquer brinquedo. Do que não haviam de
rir, nesse debalde, nem o reprovar. — Boi adiante…
Ao
Te-Quentes, velho lugar de pastura e aguada, onde deviam sentar
bivaque e o cozinheiro já estaria cozinhando o feijão e torresmos.
Ali
lá chegavam — davam com cavalos e barracas, de uns ciganos — de
encontrôo.
“Se
caminhando uma rês vinte passos por segundo, me diga, sendo
profundo: quanto ela anda em um mês?”
Copla
viajadora.
Resposta:
O
que ela anda, pouco faz, seja para trás ou para diante: a rês
caminha o bastante indo para diante ou para trás.
(Simples
hipógrafe.)
Guimarães Rosa, in Tutameia
Nenhum comentário:
Postar um comentário