Em
Paris há coisas que não se entende bem, pois houve reis,
imperadores e revoluções, de maneira que acontece, por exemplo, que
no túmulo de Maria Antonieta não tem Maria Antonieta.
— Mas
este é o verdadeiro túmulo de Maria Antonieta — dizia um velho
guarda. — Acontece que logo depois de executada ela foi enterrada
em certo lugar; mais tarde retiraram seu corpo e lhe deram sepultura
de honra, mas depois as coisas viraram, de maneira que...
Mas
o homem estava distraído, olhava o relógio, não ouvia o que lhe
dizia o velho guarda. Era primavera em Paris, era primavera no mundo,
era primavera na vida. E havia ali perto uma pequena rua tranquila
com um velho casarão discreto onde chegaria alguém dentro de meia
hora — meia hora ainda! O homem suspirava olhando o relógio,
contemplando vagamente o túmulo, ouvindo silvos de trens para os
lados da gare de Lyon e vagos pios de pássaros nas árvores; o
guarda se calara. Muito bem, reis mortos, reis postos, os franceses
outrora matavam rainhas, tinham reis chamados luíses numerados, e
rainhas e cortesãs, frases de espírito, revoluções, finesse e
tudo isso lenta, lentamente foi permitindo a formação de criaturas
como aquela velha concierge de cabelos brancos e gargantilha alta,
solene como uma imperatriz, que já conhecia o casal de amantes e
dizia: — O 14, não é verdade? Vou ver se está livre o 14...
Era
um apartamento imenso, com um banheiro imenso, com uma banheira
imensa, um leito imenso; era um apartamento de frente na ruazinha
quieta, e pelas cortinas se infiltrava uma pálida luz.
— O
senhor não deseja ver a cripta onde estiveram os ossos?
Teria
sido realmente bonita Maria Antonieta? De qualquer modo foi uma
judiação matarem a moça; mas também se os franceses não fizessem
a Revolução Francesa, quem iria fazer? Os portugueses?
Jamais,
jamais de la vie. O homem sentia-se meio tonto com os conhaques que
tomara fazendo hora para o encontro de “Maison de Famille”, que
era o que estava escrito no casarão do encontro. Que estivesse livre
o 14! Pensava aflitamente nisso, mas sua secreta aflição era outra
em que não ousava pensar, era ver repetir-se o milagre daquela
aparição — bom dia, esperou muito? —, a mais fina e bela mulher
da França saltaria de um velho táxi escuro com seu vestido leve,
primaveril, sua pele macia, seu gosto de romã de-vez, os olhos
verdes — ah, foi preciso muito luxo, como esse de matar rainhas,
para se produzir uma graça tão alta — e esse milagre
extraordinário, essa fantasia de vir ao seu encontro, e ele então
se sentia o rei secreto de França — não é verdade que uma vez,
ao entrarem em uma ponte, em um carro puxado a cavalo, a mão da
brisa jogara sobre suas cabeças, de um ramo alto, uma chuva de
flores? Rei coroado; mas na França, país perigoso, França, aqui se
matam reis.
De
súbito viu que era tarde, deu um dinheiro ao guarda, desceu escadas,
quase correu pela rua, chegou, então viu que ainda era cedo;
suspirou. E se ela não viesse, não pudesse vir ou não quisesse
vir, que fazer com aquela rua quieta e aquele céu azul e aquela
brisa mansa, e aquele corpo e aquela alma trêmula? — tomou mais
dois conhaques, sua mão trêmula suava, entretanto era homem, não
era um adolescente, era rei. E quando ela chegou e disse que aquele
encontro era uma despedida, que devia partir para remotas suécias,
talvez nunca mais se vissem e ao sair disse: Meu Deus, preciso falar
ao telefone: e então quando ela se afastou e ele entregou a chave do
14 à velha concierge, e lhe pagou em dobro o apartamento, já que
era a última vez, a última vez!
— Senhor
— disse dignamente a dignitária de altas gargantilhas agradecendo
—, eu lhe digo, senhor, não sei vosso nome nem quem sois, mas eu
lhe digo — tenho mais de 70 anos e tenho visto muita coisa: nunca,
por nada, perca essa mulher; é a mais linda da França e do mundo, o
senhor tem sorte, senhor, roube, faça tudo, mas não a perca nunca,
nunca.
Quando
ela saiu da cabine de telefone o táxi estava na porta, e foi apenas
o tempo de lhe beijar a mão — mal se olharam — ela entrou no
feio carro alto e escuro — tinha tanta pressa e chorava, a futura
Rainha da Suécia, das inacessíveis, distantes, insuportáveis
suécias e noruegas do nunca mais nunca mais!
Rubem Braga, in A traição das elegantes
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