Bem
sei o que é o chamado verdadeiro romance. No entanto, ao lê-lo, com
suas tramas de fatos e descrições, sinto-me apenas aborrecida. E
quando escrevo não é o clássico romance. No entanto é romance
mesmo. Só que o que me guia ao escrevê-lo é sempre um senso de
pesquisa e de descoberta. Não, não de sintaxe pela sintaxe em si,
mas de sintaxe o mais possível se aproximando e me aproximando do
que estou pensando na hora de escrever. Aliás, pensando melhor,
nunca escolhi linguagem. O que eu fiz, apenas, foi ir me
obedecendo.
Ir
me obedecendo – é na verdade o que faço quando escrevo, e agora
mesmo está sendo assim. Vou me seguindo, mesmo sem saber ao que me
levará. Às vezes ir me seguindo é tão difícil – por estar
seguindo em mim o que ainda não passa de uma nebulosa – que
termino desistindo.
E
os romances que escrevo que não passam do título? Porque seria
muito difícil escrevê-los ou porque, já tendo uma ideia precisa do
desenrolar-se da história, perco a curiosidade de escrevê-la.
Embora representando grande risco, só é bom escrever quando ainda
não se sabe o que acontecerá. Agora mesmo, neste próprio instante,
ou melhor, há alguns instantes em que interrompi para atender o
telefone, nasceu-me um título do que seria um conto ou um romance: O
montanhês. O título é sem graça, bem sei. E sei o que seria:
não se trataria de um homem das montanhas, mas da subida gradual de
um homem através da vida até chegar a um cume simbólico, ou não
simbólico de uma montanha, de onde ele veria o seu passado e também
o que lhe restava ainda a subir, isto é, um pouco mais de futuro.
E
o que ele via não era bonito, nem bom, nem ruim, nem feio, era o que
fatalmente a vida fizera dele e sobretudo o que fatalmente ele fizera
da vida. E aí vem o problema: até que ponto fora fatal o que ele
fizera na vida e esta dele? Até que ponto houvera escolha? Estou me
confundindo toda com esta história que jamais escreverei.
E
eu, que já viajei bastante e não quero mais viajar, como é que
nunca me ocorreu nem ocorrerá jamais escrever um livro de viagens?
Com perdão da palavra, sou um mistério para mim. E, ainda fazendo
parte desse mistério, por que leio tão pouco? O que era de se
esperar é que eu tivesse verdadeira fome de leituras. Também para
ver o que os outros fazem. No entanto só consigo ler coisas que, se
possível, caminhem direto ao que querem dizer. Não, positivamente
não me entendo. Bem, mas o fato é que mesmo não me entendendo, vou
lentamente me encaminhando – e também para o quê, não sei. De um
modo geral, para mais amor por tudo. É vago “mais amor por tudo”?
Inclusive mais amor inclui uma alerteza maior para achar bonito o que
nem mesmo bonito é. E, embora a palavra humano me arrepie um
pouco, de tão carregada de sentidos variados e vazios essa palavra
foi ficando, sinto que me encaminho para o mais humano. Ao mesmo
tempo as coisas do mundo – os objetos – estão se tornando cada
vez mais importantes para mim. Vejo os objetos sem quase me misturar
com eles, vendo-os por eles mesmos. Então às vezes se tornam
fantásticos e livres, como se fossem coisa nascida e não feita por
pessoas. Se eu for me encaminhando para o mais humano não
quer dizer que eu precise perder essa qualidade que tenho às vezes
de enxergar a coisa pela coisa. Porque – e aí vou eu entrando com
sofisma só para me defender – se sendo gente eu consigo ir, por
que haveria de perder essa capacidade ao me tornar mais gente? Ah,
Deus, sinto que é puro sofisma. Aliás o sofisma como forma de
raciocínio sempre me atraiu um pouco, passou a ser um de meus
defeitos. Explicável porque sempre tive que me defender muito, e com
sofismas se consegue. Talvez, quem sabe, eu que agora me defendo
menos, largue pelo caminho o raciocínio-sofisma. Talvez eu não
precise mais ganhar para me defender. O sofisma faz ganhar muito em
discussões – há anos que não discuto – e em explicação para
si mesma das próprias ações inexplicáveis etc. De agora em diante
eu gostaria de me defender assim: é porque eu quero. E que isso
bastasse.
Bem,
fui escrevendo ao correr do pensamento e vejo agora ter me afastado
tanto do começo que o título desta coluna já não tem nada a ver
com o que escrevi. Paciência.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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