Não
foi por nada que a batizamos de Endeavour Island (91). Passamos duas
semanas trabalhando duro na construção de uma cabana. Maud insistiu
em ajudar, e o sangue e os machucados em suas mãos me davam vontade
de chorar. Mesmo assim, eu tinha orgulho da atitude dela. Havia algo
de heroico naquela moça bem-nascida enfrentando dificuldades
tremendas e investindo suas migalhas de força nas tarefas de uma
camponesa. Ela coletou muitas das pedras que encaixei nas paredes da
cabana e se fingiu de surda toda vez que lhe supliquei para desistir.
Apesar disso, se comprometeu a assumir as tarefas mais leves, tais
como cozinhar e apanhar madeira e líquen para nossa reserva de
inverno.
As
paredes da cabana foram erguidas sem muita dificuldade e tudo correu
bem até que me deparei com o problema do telhado. De que serviam
quatro paredes sem telhado? E que material eu poderia usar para
construir um? Tínhamos os remos sobressalentes, era verdade.
Poderiam ser usados como vigas. Mas com o que eu poderia cobri-los? O
líquen não serviria. Grama de tundra era impraticável.
Precisávamos da vela do bote, e a lona já tinha começado a vazar.
— Winters
usou pele de morsa em sua tenda — falei.
— Temos
focas — ela sugeriu.
Assim,
iniciamos a caçada no dia seguinte. Eu não sabia disparar armas de
fogo, mas resolvi aprender. Depois de gastar trinta cartuchos em três
focas, concluí que a munição terminaria antes que eu adquirisse a
prática necessária. Eu havia gastado oito cartuchos para acender
fogueiras antes de descobrir o método de amontoar as cinzas com
líquen úmido, e restavam no máximo cem cartuchos dentro da caixa.
— Vamos
ter de matá-las com pancadas na cabeça — proclamei ao constatar
minha falta de talento no tiro. — Ouvi os caçadores falando sobre
isso.
— Elas
são tão bonitas — ela protestou. — Não consigo nem pensar em
fazer isso. É uma brutalidade tão direta, sabe?, tão diferente de
abatê-las a tiro.
— Precisamos
de um telhado — respondi, carrancudo. — O inverno está quase
chegando. É a nossa vida contra a delas. É uma pena que não
tenhamos munição suficiente, mas, de todo modo, acho que elas
sofrem menos com uma pancada na cabeça do que alvejadas a tiros.
Além disso, caberá a mim dar as pancadas.
— Esse
é o problema — ela começou a desabafar, mas travou de repente,
confusa.
— A
menos, é claro — comecei a retrucar —, que você prefira…
— Mas
o que vou ficar fazendo? — ela me interrompeu com aquela delicadeza
que eu já sabia muito bem identificar como insistência.
— Juntando
lenha para o fogo e preparando o jantar.
Ela
balançou a cabeça.
— É
perigoso demais para você ir sozinho.
Comecei
a protestar, mas ela intercedeu.
— Eu
sei, eu sei, sou apenas uma mulher fraca, mas uma pequena ajuda minha
pode salvá-lo de um desastre.
— Mas
e o porrete?
— O
senhor se encarregará dele, é claro. Eu provavelmente gritarei.
Olharei para o outro lado quando…
— O
risco é dos mais sérios — ri.
— Eu
mesma saberei quando olhar e quando não olhar — ela respondeu com
o nariz empinado.
O
resultado de tudo isso é que ela me acompanhou na manhã seguinte.
Remei até a enseada adjacente e me aproximei da praia. As focas nos
cercavam por todos os lados dentro d’água e gritavam aos milhares
na areia, obrigando-nos a gritar no ouvido um do outro para
conversar.
— Sei
que são mortas a golpes de porrete — falei, tentando ganhar
confiança enquanto olhava com hesitação para um grande macho a
menos de dez metros de mim, erguido sobre as nadadeiras dianteiras e
me encarando firme —, mas a grande questão é: como se faz?
— Vamos
colher grama e forrar o telhado — disse Maud.
Ela
estava tão assustada diante da situação quanto eu, e não nos
faltava motivo, vendo de perto aqueles dentes reluzentes dentro de
bocas caninas.
— Sempre
pensei que tinham medo dos humanos — falei.
Depois
de remar mais um pouco ao longo da praia, me perguntei em voz alta:
— Como
posso afirmar que não estão com medo? Pode ser que eu pise na areia
e elas saiam todas correndo, e que eu não consiga alcançar nenhuma.
Mesmo
assim, eu ainda hesitava.
— Uma
vez ouvi falar de um homem que invadiu um território de procriação
de gansos selvagens — disse Maud. — Eles o mataram.
— Os
gansos?
— Sim,
os gansos. Meu irmão me contou quando era pequena.
— Mas
sei que são mortas a golpes de porrete — insisti.
— Acho
que a grama também daria um belo telhado — ela disse.
Ao
contrário do que Maud pretendia, suas palavras estavam me tirando do
sério, me incentivando a ir em frente. Eu não podia fazer papel de
covarde na frente dela.
— Lá
vai — eu disse, empurrando a água com um dos remos e metendo a
proa na areia.
Desci
do bote e avancei bravamente na direção de um macho de longas jubas
que mantinha posição no meio de suas fêmeas. Fui armado com o
porrete comum que os remadores usavam para abater as focas feridas
que eram trazidas a bordo pelos caçadores. Tinha apenas meio metro
de comprimento, e em minha suprema ignorância eu não podia imaginar
que o porrete usado nos ataques a colônias em terra firme media
quase um metro e meio. As fêmeas saíram do meu caminho se
arrastando pesadamente e minha distância do macho diminuiu. Ele se
ergueu sobre as nadadeiras, furioso. Estava a três ou quatro metros
de distância. Continuei avançando com convicção, esperando que
ele virasse as costas e fugisse a qualquer momento.
A
dois metros de distância, uma ideia apavorante invadiu minha mente.
E se ele não fugir? Ora, nesse caso basta atingi-lo com o porrete,
respondi a mim mesmo. O medo tinha me feito esquecer que eu estava
ali para matar o macho e não para afugentá-lo. Bem nesse momento,
ele bufou, grunhiu e veio para cima de mim. Seus olhos estavam
acesos, sua boca estava escancarada e seus dentes reluziam um branco
cruel. Admito sem vergonha alguma que eu, e não ele, dei as costas e
fugi. Ele corria de modo desajeitado, mas corria bem. Estava a dois
passos de mim quando me atirei dentro do bote, e quando empurrei a
areia com o remo ele cravou os dentes na pá. A madeira dura se
esmigalhou como uma casca de ovo. Eu e Maud ficamos assombrados. Um
instante depois ele mergulhou por baixo do bote, abocanhou a quilha e
começou a nos sacudir violentamente.
— Meu
Deus! — disse Maud. — Vamos voltar.
Balancei
a cabeça.
— Sou
capaz de fazer o que outros já fizeram, e sei que outros homens
mataram focas com um porrete. Mas acho que vou deixar os machos em
paz na próxima tentativa.
— Preferia
que não tentasse de novo.
— Não
me venha com “Por favor, por favor” agora — exclamei, e creio
que com uma certa irritação.
Ela
não respondeu, e eu sabia que meu tom devia tê-la magoado.
— Me
perdoe — falei, ou melhor, gritei para ser ouvido em meio ao rugido
das focas. — Se quiser, vou dar meia-volta para irmos embora.
Sinceramente, porém, prefiro ficar.
— Só
não me diga que é nisso que dá trazer uma mulher junto — ela
disse, abrindo um sorriso zombeteiro e triunfante que me informou que
não havia necessidade de perdão.
Remei
uns cinquenta metros beirando a praia, até recuperar a calma, e
então saltei de novo em terra.
— Faça
o favor de tomar cuidado — ela gritou atrás de mim.
Assenti
com a cabeça e avancei para investir de flanco contra o harém mais
próximo. Tudo correu bem, até que mirei na cabeça de uma fêmea
afastada demais e errei o golpe. Ela fungou e tentou bater em
retirada. Corri para perto e desferi outro golpe, mas atingi o ombro
em vez da cabeça.
— Cuidado!
— ouvi Maud gritar.
Em
minha agitação, deixei de prestar atenção em outras coisas, e ao
olhar para cima vi o dono do harém correndo para me atacar. Fugi de
novo para o bote, perseguido de perto, mas dessa vez Maud não
sugeriu que retornássemos.
— Talvez
fosse melhor se você deixasse os haréns em paz e dedicasse sua
atenção às focas mais solitárias e de aparência inofensiva —
ela disse. — Creio que li algo sobre elas. No livro do dr. Jordan
(92), acho. São os machos jovens, que ainda não têm idade para
possuir seu próprio harém. Ele os chama de “holluschickies”, ou
algo assim. Quem sabe, se encontrarmos o lugar onde eles ficam…
— Parece
que seu espírito de batalha despertou — ri.
Ela
ruborizou na mesma hora e ficou ainda mais linda.
— Admito
que a derrota me desagrada tanto quanto a você, embora não me
desagrade tanto quanto a ideia de matar criaturas tão belas e
inofensivas.
— Belas!
— torci o nariz. — Não consegui registrar nada preeminentemente
belo naquelas bestas que me perseguiram espumando pela boca.
— Foi
o seu ponto de vista — ela riu. — Faltou-lhe perspectiva. Se não
precisasse se aproximar tanto do objeto…
— É
isso! — exclamei. — É de um porrete maior que eu preciso. E eis
um remo quebrado à disposição.
— Acaba
de me ocorrer — ela disse — que o capitão Larsen me contou sobre
como os homens atacam as colônias. Eles acuam as focas em pequenos
rebanhos um pouco para dentro do continente antes de matá-las.
— A
ideia de acuar um desses haréns não me agrada muito — objetei.
— Mas
há também os “holluschickies” — ela disse. — Eles andam
sozinhos, e o dr. Jordan diz que há passagens entre um harém e
outro, e que os “holluschickies” não são agredidos pelos donos
dos haréns, desde que se limitem a ficar nessas passagens.
— Há
um deles ali — apontei para um jovem macho nadando no raso. —
Vamos observá-lo e segui-lo, caso ele suba pela praia.
Ele
nadou direto para a praia e subiu por uma pequena abertura entre dois
haréns, cujos donos emitiram ruídos de alerta, mas não o atacaram.
Acompanhamos enquanto ele ia se deslocando vagarosamente para a parte
mais alta, contornando os haréns pelo que deveria ser a tal da
passagem.
— Lá
vamos nós — falei saltando do bote. Confesso que meu coração
estava saindo pela boca só de pensar em atravessar aquele rebanho
monstruoso.
— Seria
inteligente amarrar o bote primeiro — disse Maud.
Ela
saltou ao meu lado e eu a encarei espantado. Ela acenou com a cabeça,
decidida.
— Sim,
vou junto com você, então é melhor amarrar o bote e me
providenciar um porrete.
— Vamos
voltar — pronunciei, desanimado. — Acho que a grama vai servir,
no fim das contas.
— Você
sabe que não — ela respondeu. — Devo ir na frente?
Com
um erguer de ombros, mas ao mesmo tempo com o coração cheio de um
orgulho e uma admiração afetuosos por aquela mulher, entreguei-lhe
um remo quebrado e peguei outro para mim. Percorremos os primeiros
metros da jornada com trepidação e nervosismo. Em dado momento,
Maud gritou aterrorizada quando uma foca esticou um nariz curioso
perto do seu pé, e eu apressei o passo diversas vezes pelo mesmo
motivo. Mas, fora alguns rosnados de alerta vindos dos dois lados,
não houve sinais de hostilidade. Era uma colônia que nunca havia
sido atacada por caçadores, e consequentemente as focas eram mansas
e sem medo.
No
coração do rebanho, o barulho era avassalador, de tal ordem que
chegava a dar tontura. Fiz uma pausa e exibi um sorriso de estímulo
para Maud, pois havia recobrado a tranquilidade antes dela. Era
evidente que ela ainda estava muito assustada. Ela se aproximou de
mim e gritou:
— Estou
morrendo de medo!
E
eu não estava. Embora ainda não tivesse me acostumado, o
comportamento pacífico das focas havia diminuído em mim a sensação
de ameaça. Maud tremia.
— Estou
com medo e ao mesmo tempo não estou — ela proferiu entre as
mandíbulas trêmulas. — é o meu pobre corpo, e não eu.
— Tudo
bem, tudo bem — eu a confortei, e meu instinto de proteção me fez
envolvê-la com o braço.
Jamais
esquecerei a consciência que tive de minha virilidade naquele
momento. As profundezas primitivas de minha natureza foram
despertadas. Me senti másculo, um protetor dos mais fracos, um macho
guerreiro. E o melhor de tudo é que me sentia o protetor da pessoa
que eu amava. Ela se aninhou contra mim, leve e frágil como um
lírio, e à medida que seus tremores iam diminuindo eu me tornava
ciente da existência de uma força prodigiosa. Me senti à altura do
macho mais feroz do rebanho, e sei que, caso um desses machos tivesse
investido contra mim naquele momento, eu o teria enfrentado sem
hesitar, com toda a calma, e o teria matado.
— Estou
bem agora — ela disse, erguendo a cabeça com um olhar agradecido.
— Vamos continuar.
Ao
ver que minha força tinha sido capaz de acalmá-la e enchê-la de
confiança, fiquei exultante. Era como se a juventude da raça
tivesse desabrochado dentro de mim, homem hipercivilizado que era, e
eu estivesse vivenciando os dias de caçada e as noites na floresta
de meus ancestrais remotos e esquecidos. Eu tinha muito a agradecer a
Wolf Larsen, foi o que pensei enquanto caminhávamos pela passagem
entre os haréns de focas amontoadas.
Depois
de subir uns quatrocentos metros pela praia, encontramos os
“holluschickies”, machos jovens e esguios vivendo na solidão de
sua solteirice e reunindo forças para o dia em que lutariam para
ingressar nas fileiras dos casados.
Tudo
correu bem dessa vez. Era como se eu soubesse exatamente o que fazer
e como fazer. Gritei, fiz gestos ameaçadores com o porrete, cheguei
a cutucar os mais preguiçosos, e não demorei para separar um grupo
de jovens solteiros de seus companheiros. Quando algum deles tentava
abrir caminho em direção à água, eu o impedia. Maud participou
ativamente da operação, ajudando bastante com gritos e floreios do
remo quebrado. Percebi que ela deixava passar os que pareciam muito
cansados e ficavam para trás. Mas também percebi que, sempre que
algum deles tentava passar mostrando disposição para o combate, ela
arregalava os olhos brilhantes e lhe desferia um golpe preciso com o
porrete.
— Nossa,
quanta emoção! — ela exclamou, fazendo uma pausa para descansar.
— Acho que vou sentar um pouco.
Conduzi
o pequeno rebanho (agora era um pouco mais de uma dúzia, por conta
dos que ela havia deixado escapar) mais uns cem metros acima pela
praia, e quando ela me alcançou de novo eu já tinha concluído a
matança e estava começando a retirar as peles. Uma hora depois,
retornamos orgulhosos pela passagem entre os haréns e repetimos o
percurso mais duas vezes com peles pesando nos ombros, até que me
pareceu haver quantidade suficiente para o telhado da cabana. Armei a
vela, naveguei em uma amura para sair da praia e depois na outra para
retornar à proteção de nossa pequena enseada.
— É
como voltar para casa — disse Maud enquanto eu arrastava o bote
para a beira.
Aquelas
palavras soaram íntimas e naturais e me encheram de empolgação,
tanto que falei:
— É
como se eu sempre tivesse levado essa vida. O mundo dos livros e as
pessoas livrescas ficaram muito vagos, mais como a lembrança de um
sonho do que uma realidade. Tenho certeza de que cacei, invadi e
lutei a vida toda. E você também parece ser parte dessa vida. Você
é — eu estava quase dizendo “minha mulher, minha parceira”,
mas consegui mudar para — corajosa para enfrentar tudo isso.
Mas
seus ouvidos captaram o improviso. Ela reconheceu um voo interrompido
no meio e me lançou um rápido olhar:
— Não
era isso. Você ia dizer que…?
— Que
a sra. Meynell dos Estados Unidos está vivendo uma vida selvagem e
se saindo muito bem — falei com naturalidade.
— Ah
— ela se limitou a responder, mas jurei ter ouvido uma ponta de
decepção em sua voz.
Apesar
disso, aquele “minha mulher, minha parceira” ficou ecoando em
minha mente durante todo o resto do dia e por muitos dias depois. Mas
nunca ecoou tão forte quanto naquela noite, quando a vi retirar a
cobertura de líquens de cima das brasas, soprar o fogo e cozinhar o
nosso jantar. Só podia ser a selvageria latente que despertara
dentro de mim, fazendo com que aquelas velhas palavras, tão
entranhadas nas raízes da nossa raça, me agarrassem e agitassem de
tal forma. Foi o que fizeram, me agarraram e agitaram enquanto eu as
murmurava comigo mesmo sem parar, até cair no sono.
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(91).
A alcunha dada ao local significa algo como “Ilha do Esforço”.
(92).
David Starr Jordan (1851-1931), naturalista americano. A obra a que
Maud alude é The Fur Seals and Fur-Seal Islands of the North
Pacific Ocean (1899), na qual o “holustiaki”, termo russo
para o macho jovem da foca, é descrito.
Jack London, in O Lobo do Mar
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