quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

O Lobo do Mar | Capítulo 30


Não foi por nada que a batizamos de Endeavour Island (91). Passamos duas semanas trabalhando duro na construção de uma cabana. Maud insistiu em ajudar, e o sangue e os machucados em suas mãos me davam vontade de chorar. Mesmo assim, eu tinha orgulho da atitude dela. Havia algo de heroico naquela moça bem-nascida enfrentando dificuldades tremendas e investindo suas migalhas de força nas tarefas de uma camponesa. Ela coletou muitas das pedras que encaixei nas paredes da cabana e se fingiu de surda toda vez que lhe supliquei para desistir. Apesar disso, se comprometeu a assumir as tarefas mais leves, tais como cozinhar e apanhar madeira e líquen para nossa reserva de inverno.
As paredes da cabana foram erguidas sem muita dificuldade e tudo correu bem até que me deparei com o problema do telhado. De que serviam quatro paredes sem telhado? E que material eu poderia usar para construir um? Tínhamos os remos sobressalentes, era verdade. Poderiam ser usados como vigas. Mas com o que eu poderia cobri-los? O líquen não serviria. Grama de tundra era impraticável. Precisávamos da vela do bote, e a lona já tinha começado a vazar.
Winters usou pele de morsa em sua tenda — falei.
Temos focas — ela sugeriu.
Assim, iniciamos a caçada no dia seguinte. Eu não sabia disparar armas de fogo, mas resolvi aprender. Depois de gastar trinta cartuchos em três focas, concluí que a munição terminaria antes que eu adquirisse a prática necessária. Eu havia gastado oito cartuchos para acender fogueiras antes de descobrir o método de amontoar as cinzas com líquen úmido, e restavam no máximo cem cartuchos dentro da caixa.
Vamos ter de matá-las com pancadas na cabeça — proclamei ao constatar minha falta de talento no tiro. — Ouvi os caçadores falando sobre isso.
Elas são tão bonitas — ela protestou. — Não consigo nem pensar em fazer isso. É uma brutalidade tão direta, sabe?, tão diferente de abatê-las a tiro.
Precisamos de um telhado — respondi, carrancudo. — O inverno está quase chegando. É a nossa vida contra a delas. É uma pena que não tenhamos munição suficiente, mas, de todo modo, acho que elas sofrem menos com uma pancada na cabeça do que alvejadas a tiros. Além disso, caberá a mim dar as pancadas.
Esse é o problema — ela começou a desabafar, mas travou de repente, confusa.
A menos, é claro — comecei a retrucar —, que você prefira…
Mas o que vou ficar fazendo? — ela me interrompeu com aquela delicadeza que eu já sabia muito bem identificar como insistência.
Juntando lenha para o fogo e preparando o jantar.
Ela balançou a cabeça.
É perigoso demais para você ir sozinho.
Comecei a protestar, mas ela intercedeu.
Eu sei, eu sei, sou apenas uma mulher fraca, mas uma pequena ajuda minha pode salvá-lo de um desastre.
Mas e o porrete?
O senhor se encarregará dele, é claro. Eu provavelmente gritarei. Olharei para o outro lado quando…
O risco é dos mais sérios — ri.
Eu mesma saberei quando olhar e quando não olhar — ela respondeu com o nariz empinado.
O resultado de tudo isso é que ela me acompanhou na manhã seguinte. Remei até a enseada adjacente e me aproximei da praia. As focas nos cercavam por todos os lados dentro d’água e gritavam aos milhares na areia, obrigando-nos a gritar no ouvido um do outro para conversar.
Sei que são mortas a golpes de porrete — falei, tentando ganhar confiança enquanto olhava com hesitação para um grande macho a menos de dez metros de mim, erguido sobre as nadadeiras dianteiras e me encarando firme —, mas a grande questão é: como se faz?
Vamos colher grama e forrar o telhado — disse Maud.
Ela estava tão assustada diante da situação quanto eu, e não nos faltava motivo, vendo de perto aqueles dentes reluzentes dentro de bocas caninas.
Sempre pensei que tinham medo dos humanos — falei.
Depois de remar mais um pouco ao longo da praia, me perguntei em voz alta:
Como posso afirmar que não estão com medo? Pode ser que eu pise na areia e elas saiam todas correndo, e que eu não consiga alcançar nenhuma.
Mesmo assim, eu ainda hesitava.
Uma vez ouvi falar de um homem que invadiu um território de procriação de gansos selvagens — disse Maud. — Eles o mataram.
Os gansos?
Sim, os gansos. Meu irmão me contou quando era pequena.
Mas sei que são mortas a golpes de porrete — insisti.
Acho que a grama também daria um belo telhado — ela disse.
Ao contrário do que Maud pretendia, suas palavras estavam me tirando do sério, me incentivando a ir em frente. Eu não podia fazer papel de covarde na frente dela.
Lá vai — eu disse, empurrando a água com um dos remos e metendo a proa na areia.
Desci do bote e avancei bravamente na direção de um macho de longas jubas que mantinha posição no meio de suas fêmeas. Fui armado com o porrete comum que os remadores usavam para abater as focas feridas que eram trazidas a bordo pelos caçadores. Tinha apenas meio metro de comprimento, e em minha suprema ignorância eu não podia imaginar que o porrete usado nos ataques a colônias em terra firme media quase um metro e meio. As fêmeas saíram do meu caminho se arrastando pesadamente e minha distância do macho diminuiu. Ele se ergueu sobre as nadadeiras, furioso. Estava a três ou quatro metros de distância. Continuei avançando com convicção, esperando que ele virasse as costas e fugisse a qualquer momento.
A dois metros de distância, uma ideia apavorante invadiu minha mente. E se ele não fugir? Ora, nesse caso basta atingi-lo com o porrete, respondi a mim mesmo. O medo tinha me feito esquecer que eu estava ali para matar o macho e não para afugentá-lo. Bem nesse momento, ele bufou, grunhiu e veio para cima de mim. Seus olhos estavam acesos, sua boca estava escancarada e seus dentes reluziam um branco cruel. Admito sem vergonha alguma que eu, e não ele, dei as costas e fugi. Ele corria de modo desajeitado, mas corria bem. Estava a dois passos de mim quando me atirei dentro do bote, e quando empurrei a areia com o remo ele cravou os dentes na pá. A madeira dura se esmigalhou como uma casca de ovo. Eu e Maud ficamos assombrados. Um instante depois ele mergulhou por baixo do bote, abocanhou a quilha e começou a nos sacudir violentamente.
Meu Deus! — disse Maud. — Vamos voltar.
Balancei a cabeça.
Sou capaz de fazer o que outros já fizeram, e sei que outros homens mataram focas com um porrete. Mas acho que vou deixar os machos em paz na próxima tentativa.
Preferia que não tentasse de novo.
Não me venha com “Por favor, por favor” agora — exclamei, e creio que com uma certa irritação.
Ela não respondeu, e eu sabia que meu tom devia tê-la magoado.
Me perdoe — falei, ou melhor, gritei para ser ouvido em meio ao rugido das focas. — Se quiser, vou dar meia-volta para irmos embora. Sinceramente, porém, prefiro ficar.
Só não me diga que é nisso que dá trazer uma mulher junto — ela disse, abrindo um sorriso zombeteiro e triunfante que me informou que não havia necessidade de perdão.
Remei uns cinquenta metros beirando a praia, até recuperar a calma, e então saltei de novo em terra.
Faça o favor de tomar cuidado — ela gritou atrás de mim.
Assenti com a cabeça e avancei para investir de flanco contra o harém mais próximo. Tudo correu bem, até que mirei na cabeça de uma fêmea afastada demais e errei o golpe. Ela fungou e tentou bater em retirada. Corri para perto e desferi outro golpe, mas atingi o ombro em vez da cabeça.
Cuidado! — ouvi Maud gritar.
Em minha agitação, deixei de prestar atenção em outras coisas, e ao olhar para cima vi o dono do harém correndo para me atacar. Fugi de novo para o bote, perseguido de perto, mas dessa vez Maud não sugeriu que retornássemos.
Talvez fosse melhor se você deixasse os haréns em paz e dedicasse sua atenção às focas mais solitárias e de aparência inofensiva — ela disse. — Creio que li algo sobre elas. No livro do dr. Jordan (92), acho. São os machos jovens, que ainda não têm idade para possuir seu próprio harém. Ele os chama de “holluschickies”, ou algo assim. Quem sabe, se encontrarmos o lugar onde eles ficam…
Parece que seu espírito de batalha despertou — ri.
Ela ruborizou na mesma hora e ficou ainda mais linda.
Admito que a derrota me desagrada tanto quanto a você, embora não me desagrade tanto quanto a ideia de matar criaturas tão belas e inofensivas.
Belas! — torci o nariz. — Não consegui registrar nada preeminentemente belo naquelas bestas que me perseguiram espumando pela boca.
Foi o seu ponto de vista — ela riu. — Faltou-lhe perspectiva. Se não precisasse se aproximar tanto do objeto…
É isso! — exclamei. — É de um porrete maior que eu preciso. E eis um remo quebrado à disposição.
Acaba de me ocorrer — ela disse — que o capitão Larsen me contou sobre como os homens atacam as colônias. Eles acuam as focas em pequenos rebanhos um pouco para dentro do continente antes de matá-las.
A ideia de acuar um desses haréns não me agrada muito — objetei.
Mas há também os “holluschickies” — ela disse. — Eles andam sozinhos, e o dr. Jordan diz que há passagens entre um harém e outro, e que os “holluschickies” não são agredidos pelos donos dos haréns, desde que se limitem a ficar nessas passagens.
Há um deles ali — apontei para um jovem macho nadando no raso. — Vamos observá-lo e segui-lo, caso ele suba pela praia.
Ele nadou direto para a praia e subiu por uma pequena abertura entre dois haréns, cujos donos emitiram ruídos de alerta, mas não o atacaram. Acompanhamos enquanto ele ia se deslocando vagarosamente para a parte mais alta, contornando os haréns pelo que deveria ser a tal da passagem.
Lá vamos nós — falei saltando do bote. Confesso que meu coração estava saindo pela boca só de pensar em atravessar aquele rebanho monstruoso.
Seria inteligente amarrar o bote primeiro — disse Maud.
Ela saltou ao meu lado e eu a encarei espantado. Ela acenou com a cabeça, decidida.
Sim, vou junto com você, então é melhor amarrar o bote e me providenciar um porrete.
Vamos voltar — pronunciei, desanimado. — Acho que a grama vai servir, no fim das contas.
Você sabe que não — ela respondeu. — Devo ir na frente?
Com um erguer de ombros, mas ao mesmo tempo com o coração cheio de um orgulho e uma admiração afetuosos por aquela mulher, entreguei-lhe um remo quebrado e peguei outro para mim. Percorremos os primeiros metros da jornada com trepidação e nervosismo. Em dado momento, Maud gritou aterrorizada quando uma foca esticou um nariz curioso perto do seu pé, e eu apressei o passo diversas vezes pelo mesmo motivo. Mas, fora alguns rosnados de alerta vindos dos dois lados, não houve sinais de hostilidade. Era uma colônia que nunca havia sido atacada por caçadores, e consequentemente as focas eram mansas e sem medo.
No coração do rebanho, o barulho era avassalador, de tal ordem que chegava a dar tontura. Fiz uma pausa e exibi um sorriso de estímulo para Maud, pois havia recobrado a tranquilidade antes dela. Era evidente que ela ainda estava muito assustada. Ela se aproximou de mim e gritou:
Estou morrendo de medo!
E eu não estava. Embora ainda não tivesse me acostumado, o comportamento pacífico das focas havia diminuído em mim a sensação de ameaça. Maud tremia.
Estou com medo e ao mesmo tempo não estou — ela proferiu entre as mandíbulas trêmulas. — é o meu pobre corpo, e não eu.
Tudo bem, tudo bem — eu a confortei, e meu instinto de proteção me fez envolvê-la com o braço.
Jamais esquecerei a consciência que tive de minha virilidade naquele momento. As profundezas primitivas de minha natureza foram despertadas. Me senti másculo, um protetor dos mais fracos, um macho guerreiro. E o melhor de tudo é que me sentia o protetor da pessoa que eu amava. Ela se aninhou contra mim, leve e frágil como um lírio, e à medida que seus tremores iam diminuindo eu me tornava ciente da existência de uma força prodigiosa. Me senti à altura do macho mais feroz do rebanho, e sei que, caso um desses machos tivesse investido contra mim naquele momento, eu o teria enfrentado sem hesitar, com toda a calma, e o teria matado.
Estou bem agora — ela disse, erguendo a cabeça com um olhar agradecido. — Vamos continuar.
Ao ver que minha força tinha sido capaz de acalmá-la e enchê-la de confiança, fiquei exultante. Era como se a juventude da raça tivesse desabrochado dentro de mim, homem hipercivilizado que era, e eu estivesse vivenciando os dias de caçada e as noites na floresta de meus ancestrais remotos e esquecidos. Eu tinha muito a agradecer a Wolf Larsen, foi o que pensei enquanto caminhávamos pela passagem entre os haréns de focas amontoadas.
Depois de subir uns quatrocentos metros pela praia, encontramos os “holluschickies”, machos jovens e esguios vivendo na solidão de sua solteirice e reunindo forças para o dia em que lutariam para ingressar nas fileiras dos casados.
Tudo correu bem dessa vez. Era como se eu soubesse exatamente o que fazer e como fazer. Gritei, fiz gestos ameaçadores com o porrete, cheguei a cutucar os mais preguiçosos, e não demorei para separar um grupo de jovens solteiros de seus companheiros. Quando algum deles tentava abrir caminho em direção à água, eu o impedia. Maud participou ativamente da operação, ajudando bastante com gritos e floreios do remo quebrado. Percebi que ela deixava passar os que pareciam muito cansados e ficavam para trás. Mas também percebi que, sempre que algum deles tentava passar mostrando disposição para o combate, ela arregalava os olhos brilhantes e lhe desferia um golpe preciso com o porrete.
Nossa, quanta emoção! — ela exclamou, fazendo uma pausa para descansar. — Acho que vou sentar um pouco.
Conduzi o pequeno rebanho (agora era um pouco mais de uma dúzia, por conta dos que ela havia deixado escapar) mais uns cem metros acima pela praia, e quando ela me alcançou de novo eu já tinha concluído a matança e estava começando a retirar as peles. Uma hora depois, retornamos orgulhosos pela passagem entre os haréns e repetimos o percurso mais duas vezes com peles pesando nos ombros, até que me pareceu haver quantidade suficiente para o telhado da cabana. Armei a vela, naveguei em uma amura para sair da praia e depois na outra para retornar à proteção de nossa pequena enseada.
É como voltar para casa — disse Maud enquanto eu arrastava o bote para a beira.
Aquelas palavras soaram íntimas e naturais e me encheram de empolgação, tanto que falei:
É como se eu sempre tivesse levado essa vida. O mundo dos livros e as pessoas livrescas ficaram muito vagos, mais como a lembrança de um sonho do que uma realidade. Tenho certeza de que cacei, invadi e lutei a vida toda. E você também parece ser parte dessa vida. Você é — eu estava quase dizendo “minha mulher, minha parceira”, mas consegui mudar para — corajosa para enfrentar tudo isso.
Mas seus ouvidos captaram o improviso. Ela reconheceu um voo interrompido no meio e me lançou um rápido olhar:
Não era isso. Você ia dizer que…?
Que a sra. Meynell dos Estados Unidos está vivendo uma vida selvagem e se saindo muito bem — falei com naturalidade.
Ah — ela se limitou a responder, mas jurei ter ouvido uma ponta de decepção em sua voz.
Apesar disso, aquele “minha mulher, minha parceira” ficou ecoando em minha mente durante todo o resto do dia e por muitos dias depois. Mas nunca ecoou tão forte quanto naquela noite, quando a vi retirar a cobertura de líquens de cima das brasas, soprar o fogo e cozinhar o nosso jantar. Só podia ser a selvageria latente que despertara dentro de mim, fazendo com que aquelas velhas palavras, tão entranhadas nas raízes da nossa raça, me agarrassem e agitassem de tal forma. Foi o que fizeram, me agarraram e agitaram enquanto eu as murmurava comigo mesmo sem parar, até cair no sono.
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(91). A alcunha dada ao local significa algo como “Ilha do Esforço”.
(92). David Starr Jordan (1851-1931), naturalista americano. A obra a que Maud alude é The Fur Seals and Fur-Seal Islands of the North Pacific Ocean (1899), na qual o “holustiaki”, termo russo para o macho jovem da foca, é descrito.

Jack London, in O Lobo do Mar

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