sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Meu avô

Fui criado pelo meu avô desde pequeno, não sei bem como os meus pais morreram, meu avô nunca me disse, nem tenho certeza de se morreram ou me abandonaram por qualquer outra razão, mas isso não me interessa.
Meu avô saía toda noite para trabalhar e chegava muito tarde, cansado, quando o dia amanhecia, mas não ia para a cama, fazia o café da manhã, arrumava e limpava a casa e preparava o almoço, dizia que eu não sabia fazer essas coisas direito, talvez se fosse uma menina eu soubesse.
Almoçávamos juntos, quando eu voltava do colégio. Depois do almoço ele não tirava uma soneca, acho que não precisava dormir. Saía para encontrar pessoas com quem fazia negócios, ou para passear comigo, ou vermos um filme em série no cinema. No domingo, eu ia à igreja com ele, meu avô era muito católico, e muitas vezes entrava naquela cabine para confessar seus pecados para um padre, mas eu nunca fiz isso. Meu avô dizia que eu não precisava.
Naquela época eu era um garoto de onze anos, e um garoto de onze anos, se for normal, acha um saco ir para o colégio. Eu matava aula quase todo dia, ficava na rua jogando pelada, chapinha, trocando figurinha, lendo revistinha de sacanagem com fotos de mulheres gordas nuas de máscara e meias pretas. Eu tinha coisa melhor para fazer do que ir para o colégio. Ano sim, ano não eu era reprovado.
O cinema aonde íamos era um poeira perto de casa, na Praça Onze, esse cinema já acabou, passava três filmes seriados, filme seriado também acabou. Depois tomávamos cerveja preta com tremoços. Meu avô bebia cerveja preta com tremoços, eu comia os tremoços com um refresco de groselha. Tremoço acabou e aquela cerveja preta acabou, o refresco de groselha também não existe mais, puta que pariu, acabou tudo, até a profissão do meu avô acabou.
Um dia resolvi que não ia mais ao colégio. Um garoto da minha sala tinha uma caneta-tinteiro Parker, eu já tinha ouvido falar dessa caneta, mas nunca tinha visto uma, até que o garoto me mostrou, contando vantagem. Eu já conhecia caneta-tinteiro, mas eram todas uma merda, sujavam a mão da gente de tinta, não funcionavam, a pena estragava em pouco tempo, uma porcaria. O garoto disse que a pena da caneta dele era de ouro de dezoito quilates, que durava a vida toda. Tinha um traço grosso, a letra ficava bonita e a tinta não apagava, você escrevia num papel e durava a vida toda. Então eu roubei a caneta do garoto e desapareci do colégio. Se descobrissem que eu tinha roubado aquela caneta Parker, nem sei o que ia acontecer comigo.
O colégio mandou uma carta para o meu avô dizendo que eu estava matando aula, para ele ir ao colégio conversar com o diretor. Meu avô pediu explicações, eu disse que o colégio era muito chato, ele perguntou se batiam em mim. Eu podia dar essa desculpa, mas não ia passar por medroso na frente do meu avô, ninguém batia em mim, eu é que de vez em quando dava uns cascudos num garoto mais metido. Respondi que tinha aprendido com ele a não levar desaforo pra casa. Meu avô era um homem muito bom, tinha muita paciência comigo. Quando saíamos juntos de tarde, ele ficava me vendo jogar bola, comprava sorvete, bola de borracha, tinha garoto que jogava com bola de meia, ele me comprava a melhor bola de borracha, e quando ela furava comprava outra, mas nem sempre tinha dinheiro para me comprar uma bola nova, porque ganhava pouco no emprego dele. Como disse, meu avô era muito bom mas não era bobo, depois de conversarmos dez minutos sobre o assunto da carta do diretor do colégio, ele disse que sabia que eu estava escondendo alguma coisa, que eu podia contar, não ia brigar comigo, ele nunca brigava comigo. Então eu disse que tinha roubado a caneta Parker do meu colega de sala. Meu avô pediu para ver a caneta e eu mostrei para ele. Depois de mexer na caneta, disse que ela era boa mas havia melhores, umas que eram todas de ouro, e eu perguntei se ele já tinha visto uma caneta assim e ele sorriu, como se uma lembrança boa passasse pela sua cabeça. Meu avô sacou que o diretor estava querendo falar com ele não apenas sobre o meu sumiço, mas também sobre a caneta e perguntou como foi que eu tinha roubado a Parker e eu respondi que passei perto da carteira do garoto quando ele estava distraído, peguei a caneta, saí da sala, saí do colégio e não voltei mais, ninguém viu, eu sabia que ninguém tinha visto. Meu avô disse que o meu sumiço do colégio fizera suspeitarem de mim. Pegou a caneta, disse que ia devolver, assim as coisas não iam ficar pretas para o meu lado, e que ia pedir para não me expulsarem. E foi o que ele fez, limpou a minha barra, mas pediram para eu sair do colégio. No ano seguinte ele me matriculou numa outra escola pública e eu continuei matando aula. Mesmo assim acabei terminando isso que chamam de primeiro grau. Então, perguntei ao meu avô se eu não podia trabalhar com ele, não queria mais estudar. Ele respondeu que o seu trabalho estava deixando de existir.
Fui trabalhar num armazém, o português entre muitas coisas vendia biscoitos a granel e de vez em quando eu botava um monte no bolso e levava para casa. Nunca soube qual era o trabalho do meu avô, mas acho que cada vez rendia menos, nem sempre podíamos ir ao boteco da Praça Onze. Eu já tinha quinze anos, quando fomos pela última vez tomar a cerveja preta e comer tremoços juntos, eu já tinha idade para tomar cerveja com ele. O dono dava uma festa, ia fechar o botequim, e todo mundo encheu a cara porque a cerveja era de graça e os velhos fregueses estavam tristes. Um sujeito de porre discutiu com o meu avô, chamou ele de velho ventanista e meu avô se levantou para dar uma porrada no cara, mas felizmente se meteram no meio e não teve briga, o que foi bom porque o meu avô já estava muito velho pra brigar, o outro sujeito também era velho, mas menos, e talvez levasse a melhor, e eu não podia entrar na briga e dar uns bifes no safado, era covardia.
Quando voltamos para casa, perguntei ao meu avô o que era ventanista, que profissão era essa, que ele tinha antigamente. Meu avô respondeu que estranhava um moleque esperto como eu não conhecer essa palavra, e explicou que vinha de ventana, que significava janela em outra língua. E continuou dizendo que já estava na hora de eu saber o que ele fazia quando trabalhava de noite. Ele andava pelas ruas procurando casas com uma janela aberta e entrava pela janela para apanhar coisas, que depois vendia. Disse ainda que o trabalho dele havia acabado quando as pessoas deixaram de dormir com as janelas abertas até no verão mais quente, daqueles de fritar ovo no asfalto. Só ficavam abertas aquelas que eram gradeadas, até isso tinha acontecido, grades nas janelas. Ele estava sem trabalho, não sabia bater carteiras, não gostava de arrombar portas ele não era um grosso desse tipo, e muito menos queria assaltar as pessoas, não apenas porque assim o sujeito um dia acaba indo em cana, como principalmente porque usar de violência contra os outros era um pecado e quando morresse ele não queria ir para o inferno.
O mundo estava mudando, os ventanistas tinham acabado, como os poeiras e seus filmes em série, o boteco com tremoços e cerveja preta, e as casas, que viravam apartamentos, a cidade estava mudando, estava tudo diferente. Acho que foi por isso que meu avô morreu, apesar de ele dizer que já tinha mais de noventa anos quando isso aconteceu, e devia ser verdade, meu avô não mentia. Ele falava que não podia mais sair de casa, que estava muito doente, mas não se queixava de dores nem de nada, velhice é isso, o sujeito fica doente sem ter doença nenhuma e morre.
Quando morreu, meu avô foi enterrado no cemitério do Caju, eu tinha dinheiro para o caixão e para o enterro. Ele foi para o céu, era um ventanista, nunca fez mal a ninguém, não iria para o inferno. Eu gostaria de ser também ventanista, adorava o meu avô e queria ser um homem bom como ele, mas o trabalho dele não existia mais. Então, para entrar numa casa eu era obrigado a arrombar a porta, não tinha outra maneira. A vida tinha ficado assim, cada vez era mais difícil um sujeito viver do seu trabalho. Um ventanista precisava apenas ser silencioso e cuidadoso, entrar sem fazer barulho para não acordar as pessoas que dormiam, e a qualquer movimento dentro da casa o ventanista tinha que pular fora e ir trabalhar em outra freguesia. Para arrombar uma porta eu precisava de ferramentas, e havia portas duras de arrombar, mesmo com o melhor pé-de-cabra. É claro que eu ganhava muito mais do que o meu avô. Depois de entrar numa casa vazia, era uma sopa fazer a limpeza, encher até duas malas, nunca faltava mala na casa. Meu avô tinha me dado o nome dos receptadores, os sujeitos com quem ele fazia negócios nas tardes em que não saía comigo, mas acabei conhecendo muitos outros, existia todo tipo de receptador, uns compravam ouro, joias, relógios, outros, eletrodomésticos, outros compravam qualquer objeto, fosse o que fosse, talheres de prata Wolf, garrafas de uísque, aparelhos telefônicos, até roupas, mas por uma ninharia, eu só levava roupas, ternos ou vestidos novos quando não tinha coisa melhor para levar. Trabalhei muitos anos nisso.
Falei que o mundo mudava constantemente, e quanto mais o tempo passava, mais complicado era arrombar portas, as casas que valiam a pena passaram a ter alarmes ou ficavam dentro de condomínios fechados e guardados por seguranças, e aconteceu comigo o que aconteceu com o meu avô, quer dizer, ganhar a vida com o meu trabalho começou a ficar muito difícil. Assaltar casas passou a ser coisa de quadrilha, se tivesse gente dentro da casa, invadiam do mesmo jeito, amarravam quem estava lá, ou faziam coisa pior, usavam artilharia pesada, e eu não gostava de andar armado meu avô sempre dizia que não se devia fazer violência contra as pessoas, e além de tudo eu não gostava de trabalhar com comparsas, nunca tive nem tenho amigos.
Tinha que mudar de ramo, o meu trabalho não me agradava mais. Existiam outros. Podia ser salivante, tinha bossa para isso, mas salivante havia muito tempo não dava dinheiro, ainda que o mundo estivesse cada vez mais cheio de otários, mas eles não eram tão facilmente enrolados como antigamente. Um dia eu passava perto do Hospital dos Servidores, quando um sujeito de calça branca, camisa polo branca, tênis branco, se aproximou de mim e disse, como se me conhecesse havia muito tempo, meu amigo, eu agora sou cardiologista aqui do hospital, e fez um gesto apontando com o polegar, se precisar de alguma coisa me procura, atendo na hora, sou o doutor Marques, cardiologista. Em seguida quis enfiar na minha mão duas canetas bojudas e chinfrins, dizendo, o amigo dá quanto quiser. Fiquei com pena do salivante. O babaca achava que alguém ia cair naquele golpe, dando a ele grana pelas canetas, mais reles que essas bics que os camelôs vendem a dez por um tostão. E ainda por cima, ele usava uma roupa branca que precisava ser lavada e passada, foi-se o tempo em que o golpe do bilhete premiado colava, não tem mais vigário caindo no conto, a vigarice hoje é feita por camaradas que usam computador e vendem imóveis e ações, não ficam em pé no meio da rua esperando o otário passar.
Droga dava dinheiro, mas eu não tinha nem capital nem os contatos, de qualquer maneira estava velho para entrar no ramo sem ser o banqueiro, o mesmo valia para o contrabando, não falo de muambeiro barato, isso é coisa de um tipo de pilantra que sabe onde encontrar a muamba, no Paraguai ou Miami, coisas de farmácia, eletrodomésticos de pequeno porte, lingerie, eu não saberia que merda comprar nem onde vender.
Graças a Deus não me casei nem tive filhos. Andei com um monte de mulheres, mas não morava com elas, nunca engravidei nenhuma, sempre tomei muito cuidado, pensando bem nem sempre, mas nenhuma delas emprenhou, talvez eu fosse estéril, devia ter ido ao médico ver se era, mas se por um lado isso ia me tirar as preocupações de ter um filho que eu não queria, por outro ia me deixar meio chateado, o cara estéril não é inteiro. Eu não queria saber, podia me fazer broxar na hora.
Acabei encontrando um novo trabalho. Sou um coroa grande e parrudo, com mão grande, cara grande, pescoço grosso. Estou um pouco gordo, como muito biscoito, mas isso só me faz parecer mais forte ainda, impor mais respeito. O primeiro sujeito que assaltei, quando ele saía de um desses caixas eletrônicos, ao me ouvir mandar ele me dar o dinheiro ou então levar um tiro nos cornos, olhou para mim, não disse nem sim nem sopas, e me passou a grana. Usei a maneira correta, qualquer um sabe como esse trabalho tem que ser feito. Não tinha ninguém por perto, aproximei o meu corpo do dele, a mão com o revólver dentro do bolso do blusão, de maneira que ele visse o volume, se alguém olhasse em nossa direção, de longe, ia pensar que estávamos conversando. Normalmente eu pegava a grana e me mandava. Mas se as condições fossem boas eu fazia o cara voltar comigo para a cabina e limpava o limite dele, aquela merda de saque tem um limite, mas eu não gostava de fazer isso, pode dar bolo, sei que quem não arrisca não petisca, mas sei também que quem tudo quer tudo perde, e pela minha experiência quanto mais rápido é o trabalho que você faz, menos chance tem de dar cagada.
Eu levava um revólver dentro do bolso do blusão, mas nunca precisei mostrar, meu avô não tinha revólver, era contra, dizia para eu nunca usar uma arma, mas ele não precisava, era ventanista. Eu também não usava arma quando arrombava casas vazias, com o dono passando o fim de semana fora. Mas se eu estava assaltando na rua, um dia podia ter que mostrar a ferramenta, não era preciso mais do que isso, eu sabia que os caras iam se borrar de medo se vissem o revólver.
Apesar da concorrência, eu estava me dando bem. Muitos dos assaltantes de caixa eletrônico eram uns drogados de merda, descabelados, outros eram crioulos mal-encarados, eu era branco, andava sempre bem vestido, blusão fino, sapato de couro que eu mesmo engraxava, cabelo grisalho, parecia um cara legal, apesar do tamanho, quem olhasse para mim não sentia medo, eu só queria que tivessem medo na hora da onça beber água, quando eu dava o xeque-mate nos caras com a mão dentro do bolso do blusão, mostrando o volume.
Um dia eu acostei um cara que saía do caixa, era no início da noite, eu só fazia isso de noite, mas o sujeito estava armado e sacou um revólver da cintura, talvez não tenha acreditado no volume do meu bolso, talvez tenha pensado que era mais rápido do que eu, ou não tenha pensado coisa nenhuma, estava apenas apavorado e sacou o revólver. Dei um tiro no sujeito, que caiu no chão, e fui em frente sem olhar para trás, não saí correndo não, que isso chamava a atenção, atravessei a rua, entrei na primeira esquina e peguei um ônibus.
Deu no jornal que eu matei o cara, que ele era um pai de família, deixava viúva e dois filhos pequenos, mas de cada dez homens adultos pelo menos cinco eram pais de família, e pai de família não devia andar armado, pai de família tinha que dar a grana para o assaltante, porra, e ir para perto da mulher e dos dois filhos pequenos e contar que foi assaltado, porra, e depois tomar uma cerveja e ir dormir.
Fui visitar o túmulo do meu avô, no São Francisco Xavier. Eu disse que sempre segui os conselhos dele, menos o de não fazer nada armado, mas se eu não estivesse armado o cara tinha me matado, um sujeito muito apavorado é perigoso. Pedi perdão ao meu avô, porque não ia me encontrar com ele no céu. Sentia muita falta dele, mesmo depois de tanto tempo.
Eu morava sozinho, não tinha nenhum amigo, passava o dia vendo televisão e comendo biscoito, triste, com saudade do meu avô. Eu precisava arranjar outro trabalho e ficava pensando em qual poderia ser. Até que um dia tive uma boa ideia. Mas ia ter que usar o revólver.
O inferno que se foda.

Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas

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