Fui
criado pelo meu avô desde pequeno, não sei bem como os meus pais
morreram, meu avô nunca me disse, nem tenho certeza de se morreram
ou me abandonaram por qualquer outra razão, mas isso não me
interessa.
Meu
avô saía toda noite para trabalhar e chegava muito tarde, cansado,
quando o dia amanhecia, mas não ia para a cama, fazia o café da
manhã, arrumava e limpava a casa e preparava o almoço, dizia que eu
não sabia fazer essas coisas direito, talvez se fosse uma menina eu
soubesse.
Almoçávamos
juntos, quando eu voltava do colégio. Depois do almoço ele não
tirava uma soneca, acho que não precisava dormir. Saía para
encontrar pessoas com quem fazia negócios, ou para passear comigo,
ou vermos um filme em série no cinema. No domingo, eu ia à igreja
com ele, meu avô era muito católico, e muitas vezes entrava naquela
cabine para confessar seus pecados para um padre, mas eu nunca fiz
isso. Meu avô dizia que eu não precisava.
Naquela
época eu era um garoto de onze anos, e um garoto de onze anos, se
for normal, acha um saco ir para o colégio. Eu matava aula quase
todo dia, ficava na rua jogando pelada, chapinha, trocando figurinha,
lendo revistinha de sacanagem com fotos de mulheres gordas nuas de
máscara e meias pretas. Eu tinha coisa melhor para fazer do que ir
para o colégio. Ano sim, ano não eu era reprovado.
O
cinema aonde íamos era um poeira perto de casa, na Praça Onze, esse
cinema já acabou, passava três filmes seriados, filme seriado
também acabou. Depois tomávamos cerveja preta com tremoços. Meu
avô bebia cerveja preta com tremoços, eu comia os tremoços com um
refresco de groselha. Tremoço acabou e aquela cerveja preta acabou,
o refresco de groselha também não existe mais, puta que pariu,
acabou tudo, até a profissão do meu avô acabou.
Um
dia resolvi que não ia mais ao colégio. Um garoto da minha sala
tinha uma caneta-tinteiro Parker, eu já tinha ouvido falar dessa
caneta, mas nunca tinha visto uma, até que o garoto me mostrou,
contando vantagem. Eu já conhecia caneta-tinteiro, mas eram todas
uma merda, sujavam a mão da gente de tinta, não funcionavam, a pena
estragava em pouco tempo, uma porcaria. O garoto disse que a pena da
caneta dele era de ouro de dezoito quilates, que durava a vida toda.
Tinha um traço grosso, a letra ficava bonita e a tinta não apagava,
você escrevia num papel e durava a vida toda. Então eu roubei a
caneta do garoto e desapareci do colégio. Se descobrissem que eu
tinha roubado aquela caneta Parker, nem sei o que ia acontecer
comigo.
O
colégio mandou uma carta para o meu avô dizendo que eu estava
matando aula, para ele ir ao colégio conversar com o diretor. Meu
avô pediu explicações, eu disse que o colégio era muito chato,
ele perguntou se batiam em mim. Eu podia dar essa desculpa, mas não
ia passar por medroso na frente do meu avô, ninguém batia em mim,
eu é que de vez em quando dava uns cascudos num garoto mais metido.
Respondi que tinha aprendido com ele a não levar desaforo pra casa.
Meu avô era um homem muito bom, tinha muita paciência comigo.
Quando saíamos juntos de tarde, ele ficava me vendo jogar bola,
comprava sorvete, bola de borracha, tinha garoto que jogava com bola
de meia, ele me comprava a melhor bola de borracha, e quando ela
furava comprava outra, mas nem sempre tinha dinheiro para me comprar
uma bola nova, porque ganhava pouco no emprego dele. Como disse, meu
avô era muito bom mas não era bobo, depois de conversarmos dez
minutos sobre o assunto da carta do diretor do colégio, ele disse
que sabia que eu estava escondendo alguma coisa, que eu podia contar,
não ia brigar comigo, ele nunca brigava comigo. Então eu disse que
tinha roubado a caneta Parker do meu colega de sala. Meu avô pediu
para ver a caneta e eu mostrei para ele. Depois de mexer na caneta,
disse que ela era boa mas havia melhores, umas que eram todas de
ouro, e eu perguntei se ele já tinha visto uma caneta assim e ele
sorriu, como se uma lembrança boa passasse pela sua cabeça. Meu avô
sacou que o diretor estava querendo falar com ele não apenas sobre o
meu sumiço, mas também sobre a caneta e perguntou como foi que eu
tinha roubado a Parker e eu respondi que passei perto da carteira do
garoto quando ele estava distraído, peguei a caneta, saí da sala,
saí do colégio e não voltei mais, ninguém viu, eu sabia que
ninguém tinha visto. Meu avô disse que o meu sumiço do colégio
fizera suspeitarem de mim. Pegou a caneta, disse que ia devolver,
assim as coisas não iam ficar pretas para o meu lado, e que ia pedir
para não me expulsarem. E foi o que ele fez, limpou a minha barra,
mas pediram para eu sair do colégio. No ano seguinte ele me
matriculou numa outra escola pública e eu continuei matando aula.
Mesmo assim acabei terminando isso que chamam de primeiro grau.
Então, perguntei ao meu avô se eu não podia trabalhar com ele, não
queria mais estudar. Ele respondeu que o seu trabalho estava deixando
de existir.
Fui
trabalhar num armazém, o português entre muitas coisas vendia
biscoitos a granel e de vez em quando eu botava um monte no bolso e
levava para casa. Nunca soube qual era o trabalho do meu avô, mas
acho que cada vez rendia menos, nem sempre podíamos ir ao boteco da
Praça Onze. Eu já tinha quinze anos, quando fomos pela última vez
tomar a cerveja preta e comer tremoços juntos, eu já tinha idade
para tomar cerveja com ele. O dono dava uma festa, ia fechar o
botequim, e todo mundo encheu a cara porque a cerveja era de graça e
os velhos fregueses estavam tristes. Um sujeito de porre discutiu com
o meu avô, chamou ele de velho ventanista e meu avô se levantou
para dar uma porrada no cara, mas felizmente se meteram no meio e não
teve briga, o que foi bom porque o meu avô já estava muito velho
pra brigar, o outro sujeito também era velho, mas menos, e talvez
levasse a melhor, e eu não podia entrar na briga e dar uns bifes no
safado, era covardia.
Quando
voltamos para casa, perguntei ao meu avô o que era ventanista, que
profissão era essa, que ele tinha antigamente. Meu avô respondeu
que estranhava um moleque esperto como eu não conhecer essa palavra,
e explicou que vinha de ventana, que significava janela em outra
língua. E continuou dizendo que já estava na hora de eu saber o que
ele fazia quando trabalhava de noite. Ele andava pelas ruas
procurando casas com uma janela aberta e entrava pela janela para
apanhar coisas, que depois vendia. Disse ainda que o trabalho dele
havia acabado quando as pessoas deixaram de dormir com as janelas
abertas até no verão mais quente, daqueles de fritar ovo no
asfalto. Só ficavam abertas aquelas que eram gradeadas, até isso
tinha acontecido, grades nas janelas. Ele estava sem trabalho, não
sabia bater carteiras, não gostava de arrombar portas ele não era
um grosso desse tipo, e muito menos queria assaltar as pessoas, não
apenas porque assim o sujeito um dia acaba indo em cana, como
principalmente porque usar de violência contra os outros era um
pecado e quando morresse ele não queria ir para o inferno.
O
mundo estava mudando, os ventanistas tinham acabado, como os poeiras
e seus filmes em série, o boteco com tremoços e cerveja preta, e as
casas, que viravam apartamentos, a cidade estava mudando, estava tudo
diferente. Acho que foi por isso que meu avô morreu, apesar de ele
dizer que já tinha mais de noventa anos quando isso aconteceu, e
devia ser verdade, meu avô não mentia. Ele falava que não podia
mais sair de casa, que estava muito doente, mas não se queixava de
dores nem de nada, velhice é isso, o sujeito fica doente sem ter
doença nenhuma e morre.
Quando
morreu, meu avô foi enterrado no cemitério do Caju, eu tinha
dinheiro para o caixão e para o enterro. Ele foi para o céu, era um
ventanista, nunca fez mal a ninguém, não iria para o inferno. Eu
gostaria de ser também ventanista, adorava o meu avô e queria ser
um homem bom como ele, mas o trabalho dele não existia mais. Então,
para entrar numa casa eu era obrigado a arrombar a porta, não tinha
outra maneira. A vida tinha ficado assim, cada vez era mais difícil
um sujeito viver do seu trabalho. Um ventanista precisava apenas ser
silencioso e cuidadoso, entrar sem fazer barulho para não acordar as
pessoas que dormiam, e a qualquer movimento dentro da casa o
ventanista tinha que pular fora e ir trabalhar em outra freguesia.
Para arrombar uma porta eu precisava de ferramentas, e havia portas
duras de arrombar, mesmo com o melhor pé-de-cabra. É claro que eu
ganhava muito mais do que o meu avô. Depois de entrar numa casa
vazia, era uma sopa fazer a limpeza, encher até duas malas, nunca
faltava mala na casa. Meu avô tinha me dado o nome dos receptadores,
os sujeitos com quem ele fazia negócios nas tardes em que não saía
comigo, mas acabei conhecendo muitos outros, existia todo tipo de
receptador, uns compravam ouro, joias, relógios, outros,
eletrodomésticos, outros compravam qualquer objeto, fosse o que
fosse, talheres de prata Wolf, garrafas de uísque, aparelhos
telefônicos, até roupas, mas por uma ninharia, eu só levava
roupas, ternos ou vestidos novos quando não tinha coisa melhor para
levar. Trabalhei muitos anos nisso.
Falei
que o mundo mudava constantemente, e quanto mais o tempo passava,
mais complicado era arrombar portas, as casas que valiam a pena
passaram a ter alarmes ou ficavam dentro de condomínios fechados e
guardados por seguranças, e aconteceu comigo o que aconteceu com o
meu avô, quer dizer, ganhar a vida com o meu trabalho começou a
ficar muito difícil. Assaltar casas passou a ser coisa de quadrilha,
se tivesse gente dentro da casa, invadiam do mesmo jeito, amarravam
quem estava lá, ou faziam coisa pior, usavam artilharia pesada, e eu
não gostava de andar armado meu avô sempre dizia que não se devia
fazer violência contra as pessoas, e além de tudo eu não gostava
de trabalhar com comparsas, nunca tive nem tenho amigos.
Tinha
que mudar de ramo, o meu trabalho não me agradava mais. Existiam
outros. Podia ser salivante, tinha bossa para isso, mas salivante
havia muito tempo não dava dinheiro, ainda que o mundo estivesse
cada vez mais cheio de otários, mas eles não eram tão facilmente
enrolados como antigamente. Um dia eu passava perto do Hospital dos
Servidores, quando um sujeito de calça branca, camisa polo branca,
tênis branco, se aproximou de mim e disse, como se me conhecesse
havia muito tempo, meu amigo, eu agora sou cardiologista aqui do
hospital, e fez um gesto apontando com o polegar, se precisar de
alguma coisa me procura, atendo na hora, sou o doutor Marques,
cardiologista. Em seguida quis enfiar na minha mão duas canetas
bojudas e chinfrins, dizendo, o amigo dá quanto quiser. Fiquei com
pena do salivante. O babaca achava que alguém ia cair naquele golpe,
dando a ele grana pelas canetas, mais reles que essas bics que os
camelôs vendem a dez por um tostão. E ainda por cima, ele usava uma
roupa branca que precisava ser lavada e passada, foi-se o tempo em
que o golpe do bilhete premiado colava, não tem mais vigário caindo
no conto, a vigarice hoje é feita por camaradas que usam computador
e vendem imóveis e ações, não ficam em pé no meio da rua
esperando o otário passar.
Droga
dava dinheiro, mas eu não tinha nem capital nem os contatos, de
qualquer maneira estava velho para entrar no ramo sem ser o
banqueiro, o mesmo valia para o contrabando, não falo de muambeiro
barato, isso é coisa de um tipo de pilantra que sabe onde encontrar
a muamba, no Paraguai ou Miami, coisas de farmácia, eletrodomésticos
de pequeno porte, lingerie, eu não saberia que merda comprar nem
onde vender.
Graças
a Deus não me casei nem tive filhos. Andei com um monte de mulheres,
mas não morava com elas, nunca engravidei nenhuma, sempre tomei
muito cuidado, pensando bem nem sempre, mas nenhuma delas emprenhou,
talvez eu fosse estéril, devia ter ido ao médico ver se era, mas se
por um lado isso ia me tirar as preocupações de ter um filho que eu
não queria, por outro ia me deixar meio chateado, o cara estéril
não é inteiro. Eu não queria saber, podia me fazer broxar na hora.
Acabei
encontrando um novo trabalho. Sou um coroa grande e parrudo, com mão
grande, cara grande, pescoço grosso. Estou um pouco gordo, como
muito biscoito, mas isso só me faz parecer mais forte ainda, impor
mais respeito. O primeiro sujeito que assaltei, quando ele saía de
um desses caixas eletrônicos, ao me ouvir mandar ele me dar o
dinheiro ou então levar um tiro nos cornos, olhou para mim, não
disse nem sim nem sopas, e me passou a grana. Usei a maneira correta,
qualquer um sabe como esse trabalho tem que ser feito. Não tinha
ninguém por perto, aproximei o meu corpo do dele, a mão com o
revólver dentro do bolso do blusão, de maneira que ele visse o
volume, se alguém olhasse em nossa direção, de longe, ia pensar
que estávamos conversando. Normalmente eu pegava a grana e me
mandava. Mas se as condições fossem boas eu fazia o cara voltar
comigo para a cabina e limpava o limite dele, aquela merda de saque
tem um limite, mas eu não gostava de fazer isso, pode dar bolo, sei
que quem não arrisca não petisca, mas sei também que quem tudo
quer tudo perde, e pela minha experiência quanto mais rápido é o
trabalho que você faz, menos chance tem de dar cagada.
Eu
levava um revólver dentro do bolso do blusão, mas nunca precisei
mostrar, meu avô não tinha revólver, era contra, dizia para eu
nunca usar uma arma, mas ele não precisava, era ventanista. Eu
também não usava arma quando arrombava casas vazias, com o dono
passando o fim de semana fora. Mas se eu estava assaltando na rua, um
dia podia ter que mostrar a ferramenta, não era preciso mais do que
isso, eu sabia que os caras iam se borrar de medo se vissem o
revólver.
Apesar
da concorrência, eu estava me dando bem. Muitos dos assaltantes de
caixa eletrônico eram uns drogados de merda, descabelados, outros
eram crioulos mal-encarados, eu era branco, andava sempre bem
vestido, blusão fino, sapato de couro que eu mesmo engraxava, cabelo
grisalho, parecia um cara legal, apesar do tamanho, quem olhasse para
mim não sentia medo, eu só queria que tivessem medo na hora da onça
beber água, quando eu dava o xeque-mate nos caras com a mão dentro
do bolso do blusão, mostrando o volume.
Um
dia eu acostei um cara que saía do caixa, era no início da noite,
eu só fazia isso de noite, mas o sujeito estava armado e sacou um
revólver da cintura, talvez não tenha acreditado no volume do meu
bolso, talvez tenha pensado que era mais rápido do que eu, ou não
tenha pensado coisa nenhuma, estava apenas apavorado e sacou o
revólver. Dei um tiro no sujeito, que caiu no chão, e fui em frente
sem olhar para trás, não saí correndo não, que isso chamava a
atenção, atravessei a rua, entrei na primeira esquina e peguei um
ônibus.
Deu
no jornal que eu matei o cara, que ele era um pai de família,
deixava viúva e dois filhos pequenos, mas de cada dez homens adultos
pelo menos cinco eram pais de família, e pai de família não devia
andar armado, pai de família tinha que dar a grana para o
assaltante, porra, e ir para perto da mulher e dos dois filhos
pequenos e contar que foi assaltado, porra, e depois tomar uma
cerveja e ir dormir.
Fui
visitar o túmulo do meu avô, no São Francisco Xavier. Eu disse que
sempre segui os conselhos dele, menos o de não fazer nada armado,
mas se eu não estivesse armado o cara tinha me matado, um sujeito
muito apavorado é perigoso. Pedi perdão ao meu avô, porque não ia
me encontrar com ele no céu. Sentia muita falta dele, mesmo depois
de tanto tempo.
Eu
morava sozinho, não tinha nenhum amigo, passava o dia vendo
televisão e comendo biscoito, triste, com saudade do meu avô. Eu
precisava arranjar outro trabalho e ficava pensando em qual poderia
ser. Até que um dia tive uma boa ideia. Mas ia ter que usar o
revólver.
O
inferno que se foda.
Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas
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