terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Mercadoria quebrada


Frank entrou no trânsito da autoestrada.
Era embalador da American Clock Company. Há seis anos já. Nunca ficara seis anos num emprego e agora o filho da puta estava realmente acabando com ele. Mas aos quarenta e dois anos, sem educação superior e com o desemprego chegando a dez por cento, não tinha muita escolha. Era seu décimo quinto ou décimo sexto emprego, e todos tinham sido terríveis.
Frank estava cansado e queria chegar em casa e tomar uma cerveja. Manobrou o Fusca para entrar na pista de alta velocidade. Quando conseguiu, não estava mais tão certo de que tinha pressa de chegar em casa. Fran estaria à espera. Quatro anos já.
Ele sabia o que o esperava. Fran mal podia esperar o primeiro tiro verbal. Ele sempre esperava o primeiro tiro dela. Nossa, ela não podia esperar pra lhe dar a porrada. Depois, porrada, porrada, porrada...
Frank sabia que era um perdedor. Não precisava que Fran lhe lembrasse desse fato, o ilustrasse. Seria de pensar que duas pessoas que vivem juntas ajudariam uma à outra. Mas não, caíam no hábito da crítica. Ele a criticava, ela o criticava. Eram perdedores os dois. Agora só lhes restava ver quem podia ser mais sarcástico sobre isso.
E aquele filho da puta, Meyers. Ele voltara ao departamento de remessas dez minutos antes da hora da saída e ficara lá parado.
Frank.
Sim.
Está pondo rótulos de FRÁGIL em todas as embalagens?
Estou.
Está embalando com cuidado?
Estou.
Estamos recebendo um número cada vez maior de reclamações de clientes sobre mercadorias quebradas.
Acho que os acidentes em trânsito acontecem.
Tem certeza de que está embalando os produtos corretamente?
Tenho.
Talvez a gente devesse experimentar empresas de caminhão diferentes.
São todas iguais.
Bem, quero ver uma melhora. Menos coisas quebradas.
Sim, senhor.
Meyers outrora controlara toda a American Clock Company, mas a bebida e um mau casamento o tinham arruinado. Tivera de vender a maioria de suas ações, e agora era apenas administrador assistente. Deixara a bebida, e em consequência vivia sempre irritável. Meyers estava continuamente tentando provocar Frank para deixá-lo furioso. Aí teria uma desculpa para despedi-lo.
Não havia nada pior que um bêbado reformado e um convertido religioso, e Meyers era as duas coisas juntas…


Frank meteu-se atrás de um carro velho na pista de alta velocidade. Era um esbodegado bebe-gasolina, um sedan, e soltava uma trilha imunda de fumaça do cano de descarga. Tinha os para-choques amassados, que vibravam com a marcha do sedan. A pintura quase sumira do carro, que era quase sem cor, um cinza fumacento.
Nada disso preocupava Frank. O que o preocupava era que o carro ia devagar demais, na mesma velocidade do carro na pista ao lado. Ele verificou o velocímetro. Estavam indo a oitenta e cinco por hora. Por quê?
Talvez não tivesse importância. Fran estava à espera. Era Fran numa ponta e Meyers na outra. A única hora que tinha sozinho, a única hora em que ninguém o atacava, era quando dirigia na ida e na volta do trabalho. Ou quando dormia.
Mesmo assim, não gostava de ver-se preso na autoestrada. Não tinha sentido. Ele olhou os dois caras sentados na frente do sedan. Os dois falavam e riam ao mesmo tempo. Eram dois jovens vagabundos de 23 ou 24 anos. Frank sentia-se satisfeito por não ouvir a conversa. Aqueles vagabundos começavam a irritá-lo.
Então Frank viu sua chance. O carro à direita do velho sedan ia um pouco mais rápido, forçava à frente. Frank passou para trás do outro carro.
Começou a desfrutar a liberdade de meter o pé ali. Seria uma pequena vitória depois de um dia horrível, com uma noite horrível à frente. Ia vencer.
Então, no momento em que se preparava para cortar a frente do velho sedan, o vagabundo ao volante acelerou fundo, encostou, fechou-o e emparelhou de novo com o outro carro.
Frank meteu-se atrás do carro do vagabundo. Os dois continuavam falando e rindo. Ele viu o adesivo no para-choque. JESUS TE AMA.
Então notou o decalque no para-brisa traseiro. THE WHO. Bem, eles tinham Jesus e The Who. Por que diabos não podiam deixá-lo passar?
Frank seguia atrás deles, colado no para-choque traseiro. Eles continuavam conversando e rindo. E dirigindo exatamente na mesma velocidade do carro à direita. Oitenta quilômetros.
Frank conferiu o retrovisor. Até onde podia ver, o fluxo de tráfego lá para trás era ininterrupto.
Frank passou o Fusca da pista de alta velocidade para a do lado, depois para a de baixa velocidade. O trânsito ia mais rápido ali. Ele contornou um carro lançando-se para a esquerda e depois soltou-se no vazio. Ao fazer isso, viu o velho sedan acelerar. Os vagabundos encostaram a seu lado. Frank conferiu o velocímetro. Noventa quilômetros por hora. Frank acelerou para cem. Os vagabundos continuavam ali. Ele subiu para cento e dez. Os vagabundos continuavam juntos.
Agora tinham pressa. Por quê?
Frank pisou no acelerador até o fundo. O Fusca só ia até cento e dez. Ele ia fundir o motor ou pedir o penico. Os vagabundos se mantinham emparelhados com ele, mesmo torrando o carro deles.
Ele olhou-os. Dois jovens louros, com fios de barbicha. Os rostos voltaram-se para ele. Rostos vazios, como traseiros de peru, com buraquinhos servindo de boca.
O vagabundo ao lado do motorista mostrou o dedo médio para Frank.
Frank apontou o dedo primeiro para o cara que fizera o gesto, depois para o motorista. Depois apontou a saída da auto-estrada. Os dois fizeram que sim com a cabeça.
Frank saiu na frente. Parou num sinal. Os outros esperaram atrás. Depois Frank tomou à direita e foi em frente, os vagabundos atrás. Ele dirigiu até ver um supermercado. Entrou no estacionamento. Notou a plataforma de descarga. Estava escuro ali, o supermercado fechado. A plataforma deserta, as portas de ferro baixadas. Nada havia ali além de espaço e pilhas de caixas de madeira vazias. Frank encostou na plataforma de descarga. Saltou do carro, fechou-o, subiu a rampa e percorreu a plataforma. Os vagabundos pararam o carro ao lado do dele e saltaram.
Subiram a rampa atrás dele. Nenhum dos dois pesava mais de sessenta e cinco quilos. Juntos, só pesavam mais quinze quilos que ele.
Então o cara que mostrara o dedo disse:
Tudo bem, seu velho merda!
Lançou-se contra Frank, emitindo um som alto, estridente, as mãos espalmadas numa espécie de golpe de caratê. O vagabundo girou, tentou um coice para trás, errou, depois se voltou e atingiu a orelha de Frank com o lado da mão. Não foi mais que um tapa. Frank lançou todos os seus cento e quinze quilos numa forte direita na barriga do vagabundo, e o garoto caiu na calçada segurando as tripas.
O outro vagabundo sacou um faca de mola, abriu-a.
Vou cortar as porras de seus bagos! – disse a Frank.
Frank esperou o vagabundo se aproximar, passando nervosamente a faca de uma mão para outra. Frank recuou para as caixas. O vagabundo aproximava-se emitindo sons sibilantes. Frank esperou, de costas para as caixas. Aí, quando o vagabundo atacou, Frank estendeu o braço, pegou uma caixa e jogou-a nele. Ela pegou a cara do vagabundo, e enquanto isso Frank avançou e segurou o braço da faca. A lâmina caiu no chão e Frank torceu o braço para as costas do vagabundo. Suspendeu o braço até onde pôde.
Por favor, não quebre meu braço! – guinchou o vagabundo.
Frank soltou o vagabundo, e ao fazê-lo deu-lhe um chute na bunda. O garoto caiu de cara, agarrando o traseiro. Frank pegou a faca, fechou a lâmina, guardou-a no bolso e voltou devagar para seu carro. Quando entrou e ligou o Fusca, podia ver os dois vagabundos parados juntos ao lado do velho sedan, olhando-o. Não falavam nem riam mais.
De repente, ele apontou o carro e lançou-se contra eles. Os dois se separaram, e no último instante ele se desviou. Diminuiu a marcha e deixou o estacionamento.
Notou que tinha as mãos trêmulas. Fora um dia dos infernos. Seguiu pelo boulevard. O Fusca andava mal, aos esturros, como para protestar contra o maltrato na autoestrada.

Então Frank viu o bar. O Cavaleiro de Sorte. Tinha estacionamento na frente. Ele parou, saltou e entrou.
Sentou-se e pediu uma Bud.
Onde fica o telefone?
O garçom do balcão lhe disse. Era perto do cagador. Ele pôs a moeda e discou o número.
Sim? – atendeu Fran.
Escuta, Fran, vou chegar um pouco atrasado. Fui atacado. Até logo.
Atacado? Quer dizer que foi assaltado?
Não, me meti numa briga.
Uma briga? Não me venha com essa. Você não aguentaria brigar nem com uma criança de peito!
Fran, eu gostaria que você não usasse essas expressões velhas, rançosas.
Bem, é verdade! Você não aguentaria brigar nem com uma criança de peito.
Frank desligou e voltou para o banquinho do balcão. Pegou a garrafa de Bud e tomou um gole.
Gosto de um homem que bebe direto da garrafa!
Tinha alguém sentado junto dele. Uma mulher. Seus trinta e oito anos, as unhas sujas, o cabelo louro oxigenado empilhado frouxo no alto da cabeça. Duas argolas de prata pendiam-lhe das orelhas, a boca coberta de batom. Ela lambeu os lábios, devagar, depois enfiou na boca um Virginia Slim e acendeu-o.
Eu me chamo Diana.
Frank. Que é que você bebe?
Ele sabe...
Ela acenou com a cabeça para o garçom do balcão e ele pegou uma garrafa da marca de uísque preferida dela e aproximou-se. Frank puxou uma nota de dez e colocou-a sobre o balcão.
Você tem um rosto fascinante – disse Diana. – Que é que faz?
Nada.
Exatamente o tipo de homem que eu gosto.
Ela ergueu sua bebida e apertou a perna na dele enquanto bebia. Frank descascou devagar com a unha o rótulo úmido de sua garrafa. Diana acabou sua bebida. Frank fez um gesto para o garçom.
Mais duas.
O que é que vai tomar?
O dela.
Vai tomar o dela? – perguntou o garçom. – Uau!
Todos riram. Frank acendeu um cigarro e o garçom baixou a garrafa. De repente, parecia uma noite muito boa, afinal.

Charles Bukowski, in Numa Fria

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