O
bom do caminho é haver volta. Para ida sem vinda basta o tempo.
Curozero
Muando
Acordo
no meio da noite. Pareceu-me escutar um ruído. Na obscuridade
adivinho um vulto. Levanto-me, percorro o quarto, ninguém. Talvez
fosse a cortina, almeada pelo vento. Desde o episódio do quarto de
arrumas que eu ardo em esperança de ser visitado pela anónima
mulher. Que ela, uma vez mais, me desembrulhasse em prazeres, suores
e gemidos.
Acendo
o candeeiro e vejo que, no chão, flutua um papel. Mais uma carta?
Debruço-me e leio. É um simples bilhete, desta vez. Abruptamente
terminado como se o misterioso autor tivesse sido obrigado a
interromper a redacção. Assim, lacónica, a escrita:
Mariano,
esta é sua urgente tarefa: não deixe que completem o enterro. Se
terminar a cerimônia você não receberá as revelações. Sem essas
revelações você não cumprirá a sua missão de apaziguar
espíritos com anjos, Deus com os deuses. Estas cartas são o modo de
lhe ensinar o que você deve saber. Neste caso. não posso usar os
métodos da tradição: você já está longe dos Malilanes e seus
xicuembos. A escrita é a ponte entre os nossos e os seus espíritos.
Uma primeira ponte entre os Malilanes e os Marianos.
Alguns
destes parentes vão querer abreviar este momento. Vão impor seus
andamentos sobre o nosso tempo. Não deixe que isso aconteça. Não
deixe. A sua tarefa é repor as vidas, direita r os destinos desta
nossa gente. Cada um tem seus segredos, seus conflitos. Lhe deixarei
conselho para guiar as condutas dos seus familiares. Não será só
nas cartas. Lhe visitarei nos sonhos, também. Para você conhecer os
dentros de seus parentes. E todos, aqui, são seus parentes. Ou pelo
menos equipa rentes. Seu pai, com suas amarguras, seu sonho coxeado.
Abstinêncio com seus medos, tão amarrado a seus fantasmas. Ultímio
que não sabe de onde vem e só respeita os grandes. Sua Tia
Admirança que é alegre só por mentira. Dulcineusa com seus
delírios, coitada. Mas, lhe peço, comece por Miserinha. Vá
procurar Miserinha. Traga essa mulher para Nyumba-Kaya. Estas paredes
estão amarelecendo de saudade dessa mulher. Ela deve
repertencer-nos. É nossa família. E a família não é coisa que
exista em porções. Ou é toda ou não é nada.
Espreito
o papel, de frente e de viés. Quem escrevia aqueles bilhetes? Seria
meu pai? Mas meu pai, que eu soubesse, nunca redigira nem assinatura
completa. Abstinêncio? Talvez, mas por que motivo ele recorreria
àquela enigmática comunicação? Admirança era mulher de falas,
rosto no rosto. Não se esconderia em caligrafia. Maiores suspeitas
recaíam sobre Dito Mariano. O provável, no caso, era o impossível.
Meu Avô despertava da sua sonambucIência, subia as escadas e se
ocupava em escrever-me? Retiro-me do quarto, vou pelo corredor da
casa, tentando encontrar sinais desse anónimo gatafunhador.
Silêncio. De súbito, da sala do morto escapam ruídos.
Calafriorento, sou paralisado pelo medo. Espreito entre a penumbra,
ao jeito dos gatos que esgravatam sombras no meio da noite.
É
então que vejo Avó Dulcineusa, toda esgueirada, avançando furtiva
pelo aposento. Usa vestes antigas, cerimoniosas rendas a roçar pelo
chão. E ela se exibe ante o moribundo, mãos nas ancas. De repente,
começa a dançar, seu corpo gordo em contrabalanço com as saias. Me
aproximo mais, a coberto do escuro. Dulcineusa pára de dançar, como
se, em algum lugar, se tivesse interrompido uma imaginária música.
Teria dado por mim? Mas ela, de novo, se embala e, pouco a pouco, a
dança se vai convertendo em namoro. A Avó Dulcineusa se inclina
sobre o corpo do falecido, passa-lhe os dedos carinhosos no rosto,
puxa os seios a varandearem o decote.
– Está
calor aqui, meu marido.
Desaperta-lhe
os botões do casaco, a mão avança pela camisa, vai descendo. O que
é isto, minha Avó queria fazer amor com o morto? Sinto culpa em
estar ali, espreitador de alheias intimidades. A voz de Dulcineusa me
sobressalta: – Seu malandro, Mariano.
Falava
para mim? Ela repete: você é muito malandro, Mariano. Meu coração
se constrange, amiudado. Mas não. Dulcineusa fala com o original
Mariano, seu trespassado marido. A gorda senhora se senta na borda da
mesa e retira de um pequeno saco rolos de linha e uma agulha.
– Ma
ria no, tenha cuidado, vou coser o botão das suas calças.
As
suas mãos trabalham na braguilha das calças do falecido. Dulcineusa
me confessou mais tarde: era assim que o marido gostava de iniciar as
intimidades. Um fazer de conta que era outra coisa, a exemplo do gato
que distrai o olhar enquanto segura a presa nas patas. Esse o acordo
silencioso que tinham: ele chegava a casa e se queixava que tinha um
botão a cair. Calada, Dulcineusa se armava dos apetrechos da costura
e se posicionava a jeito dos prazeres e dos afazeres. A agulha indo e
vindo em real ameaça, o marido fechando os olhos, absorto nos
prazeres que se avolumavam a cada costura.
Esse
ritual ela o repetia, agora. A Avó vai passajando, imitando os
profissionais gestos de costureira. No enquanto, vai amiudando
conversa: – Seu neto Mariano me confessou seus segredos. Sim, que
você me amava, afinal. Não se mexa que ainda o magoo. Sim, disse
ele que você me amava mais que as todas. Por isso, eu desci aqui,
agora que não há nem ninguém, agora que eu andava tão cheia de
saudade sua.
E
as confissões prosseguem, no desfile mortiço da sua voz. O desfiar
desse rosário me escapa aqui e ali. Porque ela, mais e mais, se
enrola no seu próprio corpo. Faz que corta a linha com os dentes,
aproveita para se enroscar ainda mais sobre Mariano. Entendo apenas
um missanguear de suas falas. Ainda escuto o que ela pede: uma
primeira noite, a estreia da primeira nudez. Tantas vezes ela
estivera despida em sua cama. Mas nua nunca.
– Agora,
sim, Mariano, agora estarei despida e nua, ao sabor de suas mãos.
O
que ela mais lembrava de Mariano: as mãos.
Não
havia nada mais tangível que essas mãos, mãos de homem em corpo de
mulher. Ela sentia o seu arrepio como se mudasse de estado, em vias
de ser redesenhada. As mãos dele a derretiam, fogo liquescendo o
ferro. Como se o coração fosse comido pela própria concavidade do
peito, noite minguando a lua.
Embalado
pelas confissões de minha Avó me deixo amolecer e resvalo de
encontrão ao armário onde me escondia. Dulcineusa se assusta. O
xipefo dela vai rodando entre os móveis. Até que me descobre: –
Você, Marianito?
– Me
desculpe, Avó.
– Por
que me está sustar? Explico-me, destabalharado. Espero dela uma
vigorosa reprimenda. Mas ela acredita que maior explicação me deve
ela a mim.
– Quer
saber o que estava fazendo? É que tenho estado a trançar uma
ideia...
Arquitectara-se
assim: para confirmar a verdadeira morte do marido, ela desceria ao
salão. Provocaria Dito Mariano, o seduziria a pontos de água e
boca. Envergaria os antigos e arrojados vestidos de que ele tanto se
aprazia. Se perfumaria dos incensos que ele tanto sorvera. Assim se
certificaria se se tratava ou não de irreversível e definitivo
falecimento.
– E
chegou a uma conclusão?
– Ainda,
meu filho. Ainda.
– O
Avô não reagiu? Nem um bocadinho?
– Nem
em nenhum bocadinho.
Sacudiu
a cabeça, em absoluta negação: seu homem estava totalmente
falecido. Estremeci pela segurança com que ela punha pedra no
assunto. A Avó não podia embarcar em tais certezas. A um mando dela
tudo se desmoronaria e Dito Mariano se afundaria no escuro do chão.
Fiz mão de um expediente que eu sabia sagrado.
– Eu
também tenho uma confissão para si. Veja esses papéis...
Retiro
do bolso as cartas e lhe estendo para que as possa observar.
Dulcineusa recua, amedrontada. Aquilo não são coisas de tocar,
manualmente. Como negasse passar os olhos pelos papéis, acabo por
lhe contar a história das folhas aparecidas e do seu mistério. Fica
calada, os olhos rodando na escura face.
– Mostre
outra vez esses papéis...
Ela
chega a lamparina mais perto. Parece, primeiro, que pretende iluminar
melhor as suspeitosas cartas. Mas logo ela deixa que a labareda
atinja a folha e o fogo, rápido, mastiga o papel.
– Avó,
queimou as cartas!
– Essas
cartas, meu neto, essas cartas só podem trazer desgraça.
Lhe
pego nas mãos, a adocicar seu coração. Lhe afago os dedos, mesmo
por cima das cicatrizes, como se estivesse corrigindo o seu passado.
O suspiro dela me dá coragem: – Avó, quero pedir-lhe uma coisa.
– E
é o quê, meu neto?
– Não
deixe que enterrem o Avô já agora.
– E
porquê? Não podemos deixá-lo ao sabor das moscas.
– Mas
se ele está vivo? Já viu, se ele está vivo, que crime nós vamos
cometer?
– Não
sei, neto. Deus nos vai dizer o que temos que fazer.
– Alguns
insistirão para apressar o funeral.
Não
deixe que isso aconteça, Avó.
Ela
fica calada, remexendo nas cinzas e nos restos do papel. Parece que
está lendo, no irremediável as palavras de seu marido. Sei que não
devo interromper o sagrado do momento, mas tenho receio que a Avó
sofra uma dessas ausências. À queima-roupa, lhe atiro: – Quem é
Miserinha, Avó? – Miserinha? Quem lhe falou nessa mulher? –
Viajei com ela para cá, vínhamos no mesmo barco.
– E
por que desrazão você quer saber dela?
– Ela
esqueceu-se de um lenço, eu quero entregar-lhe.. .
– Você
não sabe mentir, meu neto. Me diga uma coisa: o nome dessa mulher
vinha escrito nesses papéis que queimei?
– Sim,
Avó.
Uma
vez mais, Dulcineusa suspira, corrio se receasse que algo de
irreparável estivesse sucedendo. Sopra as poeiras acumuladas sobre
as mãos e fica olhando o ar como se fosse o tempo polvilhado que
tombasse. Por fim, murmura: – Miserinha é minha cunhada.
A
gorda Miserinha fora casada com um irmão de Dulcineusa, o falecido
Jorojo Filimone. Quando o marido dela morreu, vieram familiares que
Miserinha nunca tinha visto. Levaram-lhe tudo, os bens, as terras.
Até a casa. Ela então ressuscitou esse nome que lhe tinham dado na
adolescência: Miserinha.
Tomar
conta da viúva era uma missão que a si mesmo Dito Mariano se
atribuíra, à maneira da tradição de Luar-do-Chão. Mas isso nunca
aconteceu. A Avó se opusera, das unhas aos dentes. Transferiram-na,
sim, para um pequeno casebre, de uma sódivisão. Ali se deixou
ficar, em desleixo de si mesma. Miserinha perdera parcialmente a
visão num acidente que ela não sabia reportar. Nem ela nunca
confessara essa deficiência. No casebre acabou por esbater ainda
mais a visão. Durante a viagem, no barco, ela me dissera que não
via cores. Mas a única coisa que a gorda Miserinha via eram sombras.
E vozes.
– Você
quer encontrar Miserinha? Vá ao mercado, meu neto. Ela costuma
adormecer por lá, entre a conversa das vendedeiras.
Rearruma
a agulha e as linhas na caixa da costura. Com um gesto mudo me faz
chegar mais perto.
– Essas
cartas, eu também recebi uma. Resolvi logo pelo fogo. Aquilo foi um
nunca mais.
– Essa
carta o que dizia, Avó?
– Falava
de minha cunhada. Que a devíamos trazer para esta casa. Isso foi
assunto que o seu Avô nunca aceitou e, agora, levou com ele...
– E
a Avó concorda com isso?
– São
vontades, meu neto. Nunca na minha vida tive que concordar ou
discordar. Não é agora que vou aprender.
– E
então, Avó, o que fazemos?
– Traga
essa Miserinha consigo.
– Mas
ela virá? Acha que ela vai aceitar?
– Diga
que venha ver o falecido.
Mais
uma vez me despeço. Toco-lhe no ombro, em jeito de carícia. Ela
prende-me o braço enquanto sussurra: – Seu Avô não está
totalmente morto. Há pouco lhe menti sobre o estado que encontrei
nele. Eu vi...
– Viu
o quê?
– Enquanto
cosia o botão na calça dele eu senti.
– Sentiu...?
– Senti
que ele me sentia.
Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
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