quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Capítulo nove | O beijo do morto adormecido


O bom do caminho é haver volta. Para ida sem vinda basta o tempo.
Curozero Muando

Acordo no meio da noite. Pareceu-me escutar um ruído. Na obscuridade adivinho um vulto. Levanto-me, percorro o quarto, ninguém. Talvez fosse a cortina, almeada pelo vento. Desde o episódio do quarto de arrumas que eu ardo em esperança de ser visitado pela anónima mulher. Que ela, uma vez mais, me desembrulhasse em prazeres, suores e gemidos.
Acendo o candeeiro e vejo que, no chão, flutua um papel. Mais uma carta? Debruço-me e leio. É um simples bilhete, desta vez. Abruptamente terminado como se o misterioso autor tivesse sido obrigado a interromper a redacção. Assim, lacónica, a escrita:

Mariano, esta é sua urgente tarefa: não deixe que completem o enterro. Se terminar a cerimônia você não receberá as revelações. Sem essas revelações você não cumprirá a sua missão de apaziguar espíritos com anjos, Deus com os deuses. Estas cartas são o modo de lhe ensinar o que você deve saber. Neste caso. não posso usar os métodos da tradição: você já está longe dos Malilanes e seus xicuembos. A escrita é a ponte entre os nossos e os seus espíritos. Uma primeira ponte entre os Malilanes e os Marianos.
Alguns destes parentes vão querer abreviar este momento. Vão impor seus andamentos sobre o nosso tempo. Não deixe que isso aconteça. Não deixe. A sua tarefa é repor as vidas, direita r os destinos desta nossa gente. Cada um tem seus segredos, seus conflitos. Lhe deixarei conselho para guiar as condutas dos seus familiares. Não será só nas cartas. Lhe visitarei nos sonhos, também. Para você conhecer os dentros de seus parentes. E todos, aqui, são seus parentes. Ou pelo menos equipa rentes. Seu pai, com suas amarguras, seu sonho coxeado. Abstinêncio com seus medos, tão amarrado a seus fantasmas. Ultímio que não sabe de onde vem e só respeita os grandes. Sua Tia Admirança que é alegre só por mentira. Dulcineusa com seus delírios, coitada. Mas, lhe peço, comece por Miserinha. Vá procurar Miserinha. Traga essa mulher para Nyumba-Kaya. Estas paredes estão amarelecendo de saudade dessa mulher. Ela deve repertencer-nos. É nossa família. E a família não é coisa que exista em porções. Ou é toda ou não é nada.

Espreito o papel, de frente e de viés. Quem escrevia aqueles bilhetes? Seria meu pai? Mas meu pai, que eu soubesse, nunca redigira nem assinatura completa. Abstinêncio? Talvez, mas por que motivo ele recorreria àquela enigmática comunicação? Admirança era mulher de falas, rosto no rosto. Não se esconderia em caligrafia. Maiores suspeitas recaíam sobre Dito Mariano. O provável, no caso, era o impossível. Meu Avô despertava da sua sonambucIência, subia as escadas e se ocupava em escrever-me? Retiro-me do quarto, vou pelo corredor da casa, tentando encontrar sinais desse anónimo gatafunhador. Silêncio. De súbito, da sala do morto escapam ruídos. Calafriorento, sou paralisado pelo medo. Espreito entre a penumbra, ao jeito dos gatos que esgravatam sombras no meio da noite.
É então que vejo Avó Dulcineusa, toda esgueirada, avançando furtiva pelo aposento. Usa vestes antigas, cerimoniosas rendas a roçar pelo chão. E ela se exibe ante o moribundo, mãos nas ancas. De repente, começa a dançar, seu corpo gordo em contrabalanço com as saias. Me aproximo mais, a coberto do escuro. Dulcineusa pára de dançar, como se, em algum lugar, se tivesse interrompido uma imaginária música. Teria dado por mim? Mas ela, de novo, se embala e, pouco a pouco, a dança se vai convertendo em namoro. A Avó Dulcineusa se inclina sobre o corpo do falecido, passa-lhe os dedos carinhosos no rosto, puxa os seios a varandearem o decote.
Está calor aqui, meu marido.
Desaperta-lhe os botões do casaco, a mão avança pela camisa, vai descendo. O que é isto, minha Avó queria fazer amor com o morto? Sinto culpa em estar ali, espreitador de alheias intimidades. A voz de Dulcineusa me sobressalta: – Seu malandro, Mariano.
Falava para mim? Ela repete: você é muito malandro, Mariano. Meu coração se constrange, amiudado. Mas não. Dulcineusa fala com o original Mariano, seu trespassado marido. A gorda senhora se senta na borda da mesa e retira de um pequeno saco rolos de linha e uma agulha.
Ma ria no, tenha cuidado, vou coser o botão das suas calças.
As suas mãos trabalham na braguilha das calças do falecido. Dulcineusa me confessou mais tarde: era assim que o marido gostava de iniciar as intimidades. Um fazer de conta que era outra coisa, a exemplo do gato que distrai o olhar enquanto segura a presa nas patas. Esse o acordo silencioso que tinham: ele chegava a casa e se queixava que tinha um botão a cair. Calada, Dulcineusa se armava dos apetrechos da costura e se posicionava a jeito dos prazeres e dos afazeres. A agulha indo e vindo em real ameaça, o marido fechando os olhos, absorto nos prazeres que se avolumavam a cada costura.
Esse ritual ela o repetia, agora. A Avó vai passajando, imitando os profissionais gestos de costureira. No enquanto, vai amiudando conversa: – Seu neto Mariano me confessou seus segredos. Sim, que você me amava, afinal. Não se mexa que ainda o magoo. Sim, disse ele que você me amava mais que as todas. Por isso, eu desci aqui, agora que não há nem ninguém, agora que eu andava tão cheia de saudade sua.
E as confissões prosseguem, no desfile mortiço da sua voz. O desfiar desse rosário me escapa aqui e ali. Porque ela, mais e mais, se enrola no seu próprio corpo. Faz que corta a linha com os dentes, aproveita para se enroscar ainda mais sobre Mariano. Entendo apenas um missanguear de suas falas. Ainda escuto o que ela pede: uma primeira noite, a estreia da primeira nudez. Tantas vezes ela estivera despida em sua cama. Mas nua nunca.
Agora, sim, Mariano, agora estarei despida e nua, ao sabor de suas mãos.
O que ela mais lembrava de Mariano: as mãos.
Não havia nada mais tangível que essas mãos, mãos de homem em corpo de mulher. Ela sentia o seu arrepio como se mudasse de estado, em vias de ser redesenhada. As mãos dele a derretiam, fogo liquescendo o ferro. Como se o coração fosse comido pela própria concavidade do peito, noite minguando a lua.
Embalado pelas confissões de minha Avó me deixo amolecer e resvalo de encontrão ao armário onde me escondia. Dulcineusa se assusta. O xipefo dela vai rodando entre os móveis. Até que me descobre: – Você, Marianito?
Me desculpe, Avó.
Por que me está sustar? Explico-me, destabalharado. Espero dela uma vigorosa reprimenda. Mas ela acredita que maior explicação me deve ela a mim.
Quer saber o que estava fazendo? É que tenho estado a trançar uma ideia...
Arquitectara-se assim: para confirmar a verdadeira morte do marido, ela desceria ao salão. Provocaria Dito Mariano, o seduziria a pontos de água e boca. Envergaria os antigos e arrojados vestidos de que ele tanto se aprazia. Se perfumaria dos incensos que ele tanto sorvera. Assim se certificaria se se tratava ou não de irreversível e definitivo falecimento.
E chegou a uma conclusão?
Ainda, meu filho. Ainda.
O Avô não reagiu? Nem um bocadinho?
Nem em nenhum bocadinho.
Sacudiu a cabeça, em absoluta negação: seu homem estava totalmente falecido. Estremeci pela segurança com que ela punha pedra no assunto. A Avó não podia embarcar em tais certezas. A um mando dela tudo se desmoronaria e Dito Mariano se afundaria no escuro do chão. Fiz mão de um expediente que eu sabia sagrado.
Eu também tenho uma confissão para si. Veja esses papéis...
Retiro do bolso as cartas e lhe estendo para que as possa observar. Dulcineusa recua, amedrontada. Aquilo não são coisas de tocar, manualmente. Como negasse passar os olhos pelos papéis, acabo por lhe contar a história das folhas aparecidas e do seu mistério. Fica calada, os olhos rodando na escura face.
Mostre outra vez esses papéis...
Ela chega a lamparina mais perto. Parece, primeiro, que pretende iluminar melhor as suspeitosas cartas. Mas logo ela deixa que a labareda atinja a folha e o fogo, rápido, mastiga o papel.
Avó, queimou as cartas!
Essas cartas, meu neto, essas cartas só podem trazer desgraça.
Lhe pego nas mãos, a adocicar seu coração. Lhe afago os dedos, mesmo por cima das cicatrizes, como se estivesse corrigindo o seu passado. O suspiro dela me dá coragem: – Avó, quero pedir-lhe uma coisa.
E é o quê, meu neto?
Não deixe que enterrem o Avô já agora.
E porquê? Não podemos deixá-lo ao sabor das moscas.
Mas se ele está vivo? Já viu, se ele está vivo, que crime nós vamos cometer?
Não sei, neto. Deus nos vai dizer o que temos que fazer.
Alguns insistirão para apressar o funeral.
Não deixe que isso aconteça, Avó.
Ela fica calada, remexendo nas cinzas e nos restos do papel. Parece que está lendo, no irremediável as palavras de seu marido. Sei que não devo interromper o sagrado do momento, mas tenho receio que a Avó sofra uma dessas ausências. À queima-roupa, lhe atiro: – Quem é Miserinha, Avó? – Miserinha? Quem lhe falou nessa mulher? – Viajei com ela para cá, vínhamos no mesmo barco.
E por que desrazão você quer saber dela?
Ela esqueceu-se de um lenço, eu quero entregar-lhe.. .
Você não sabe mentir, meu neto. Me diga uma coisa: o nome dessa mulher vinha escrito nesses papéis que queimei?
Sim, Avó.
Uma vez mais, Dulcineusa suspira, corrio se receasse que algo de irreparável estivesse sucedendo. Sopra as poeiras acumuladas sobre as mãos e fica olhando o ar como se fosse o tempo polvilhado que tombasse. Por fim, murmura: – Miserinha é minha cunhada.
A gorda Miserinha fora casada com um irmão de Dulcineusa, o falecido Jorojo Filimone. Quando o marido dela morreu, vieram familiares que Miserinha nunca tinha visto. Levaram-lhe tudo, os bens, as terras. Até a casa. Ela então ressuscitou esse nome que lhe tinham dado na adolescência: Miserinha.
Tomar conta da viúva era uma missão que a si mesmo Dito Mariano se atribuíra, à maneira da tradição de Luar-do-Chão. Mas isso nunca aconteceu. A Avó se opusera, das unhas aos dentes. Transferiram-na, sim, para um pequeno casebre, de uma sódivisão. Ali se deixou ficar, em desleixo de si mesma. Miserinha perdera parcialmente a visão num acidente que ela não sabia reportar. Nem ela nunca confessara essa deficiência. No casebre acabou por esbater ainda mais a visão. Durante a viagem, no barco, ela me dissera que não via cores. Mas a única coisa que a gorda Miserinha via eram sombras. E vozes.
Você quer encontrar Miserinha? Vá ao mercado, meu neto. Ela costuma adormecer por lá, entre a conversa das vendedeiras.
Rearruma a agulha e as linhas na caixa da costura. Com um gesto mudo me faz chegar mais perto.
Essas cartas, eu também recebi uma. Resolvi logo pelo fogo. Aquilo foi um nunca mais.
Essa carta o que dizia, Avó?
Falava de minha cunhada. Que a devíamos trazer para esta casa. Isso foi assunto que o seu Avô nunca aceitou e, agora, levou com ele...
E a Avó concorda com isso?
São vontades, meu neto. Nunca na minha vida tive que concordar ou discordar. Não é agora que vou aprender.
E então, Avó, o que fazemos?
Traga essa Miserinha consigo.
Mas ela virá? Acha que ela vai aceitar?
Diga que venha ver o falecido.
Mais uma vez me despeço. Toco-lhe no ombro, em jeito de carícia. Ela prende-me o braço enquanto sussurra: – Seu Avô não está totalmente morto. Há pouco lhe menti sobre o estado que encontrei nele. Eu vi...
Viu o quê?
Enquanto cosia o botão na calça dele eu senti.
Sentiu...?
Senti que ele me sentia.

Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra

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