quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Anotações breves sobre um conto curto

Entre os contos de Kafka consta pelo menos um que é pouco conhecido. Referimo-nos a “Pequena fábula”

Ah”, disse o rato, “o mundo torna-se a cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro.” — “Você só precisa mudar de direção”, disse o gato e devorou-o.

Trata-se de uma fábula porque nesse relato intervêm animais falantes. Mas não existe aqui — como é o caso da tradição das fábulas — uma moral explícita da história no final. A ausência dessa moral da história levou muitos intérpretes a não aceitarem que o caso é de fábula, embora o título seja esse, e sim de uma parábola, que apresenta a história como se ela estivesse ao lado de outra, com a qual estabelece relações de analogia.
Basicamente o texto é um monólogo do rato. O monólogo — sempre expressão do isolamento — começa com uma interjeição (Ah!). Essa interjeição, no entanto, é logo absorvida no relato de algo experimentado antes (o mundo era vasto, mais amplo que agora). A repetição da primeira pessoa (eu) e as expressões medo e feliz, que exprimem afetos e se contradizem mutuamente, provocam o leitor a algum tipo de participação. As experiências do rato são apresentadas como sendo ativas só uma vez: eu via. As demais são vividas passivamente: o mundo torna-se mais estreito, as paredes convergem uma para a outra, lá no canto fica a ratoeira. Tudo se passa como se o rato se visse num processo que corre com autonomia, naturalmente, sem intervenção do personagem narrador. O resto deve, assim, submeter-se à noção de que a sua situação é sem saída. O rato sempre foi movido — impulsionado — pelo medo; é isso que o faz correr para a frente, para o que é amplo e vasto e perder-se no que é necessariamente estreito.
O fecho lacônico da peça tem uma precisão lógica que não é necessariamente cínica, e aparece sob a forma de um conselho desinteressado. O verbo devorou (frass, do verbo “comer” destinado aos animais) assinala um acontecimento esperado num lugar inesperado, e assume sua força no momento em que alcança uma nova dimensão que parecia faltar ao texto.
O que Kafka diz nessa micronarrativa? Diz, entre outras coisas, que a última saída da razão leva à ruína. Ou seja: que todos os esforços para superar o medo e a derrocada significam apenas gradações da falta de liberdade objetiva do mundo. Para o rato não existe escolha, ou melhor: essa escolha só pode se dar entre as alternativas de submeter-se à violência da ratoeira ou à violência do gato.
Nas Conversações com Kafka, de Gustav Janouch, o poeta de Praga afirma, a certa altura, o seguinte: “Existe muita esperança, mas não para nós”.
Era esse o teor, a base, da sua dialética negativa — e não há como discordar da coerência do humor negro contido nessa fábula.

Modesto Carone, in Lição de Kafka

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