Entre
os contos de Kafka consta pelo menos um que é pouco conhecido.
Referimo-nos a “Pequena fábula”
“Ah”,
disse o rato, “o mundo torna-se a cada dia mais estreito. A
princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e
me sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à
direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem
tão depressa uma para a outra que já estou no último quarto e lá
no canto fica a ratoeira para a qual eu corro.” — “Você só
precisa mudar de direção”, disse o gato e devorou-o.
Trata-se
de uma fábula porque nesse relato intervêm animais falantes.
Mas não existe aqui — como é o caso da tradição das fábulas —
uma moral explícita da história no final. A ausência dessa moral
da história levou muitos intérpretes a não aceitarem que o caso é
de fábula, embora o título seja esse, e sim de uma parábola,
que apresenta a história como se ela estivesse ao lado de outra, com
a qual estabelece relações de analogia.
Basicamente
o texto é um monólogo do rato. O monólogo — sempre expressão do
isolamento — começa com uma interjeição (Ah!). Essa interjeição,
no entanto, é logo absorvida no relato de algo experimentado antes
(o mundo era vasto, mais amplo que agora). A repetição da
primeira pessoa (eu) e as expressões medo e feliz, que
exprimem afetos e se contradizem mutuamente, provocam o leitor a
algum tipo de participação. As experiências do rato são
apresentadas como sendo ativas só uma vez: eu via. As demais
são vividas passivamente: o mundo torna-se mais estreito, as paredes
convergem uma para a outra, lá no canto fica a ratoeira. Tudo se
passa como se o rato se visse num processo que corre com autonomia,
naturalmente, sem intervenção do personagem narrador. O
resto deve, assim, submeter-se à noção de que a sua situação é
sem saída. O rato sempre foi movido — impulsionado — pelo
medo; é isso que o faz correr para a frente, para o que é amplo e
vasto e perder-se no que é necessariamente estreito.
O
fecho lacônico da peça tem uma precisão lógica que não é
necessariamente cínica, e aparece sob a forma de um conselho
desinteressado. O verbo devorou (frass, do verbo
“comer” destinado aos animais) assinala um acontecimento
esperado num lugar inesperado, e assume sua força no momento em
que alcança uma nova dimensão que parecia faltar ao texto.
O
que Kafka diz nessa micronarrativa? Diz, entre outras coisas, que a
última saída da razão leva à ruína. Ou seja: que todos os
esforços para superar o medo e a derrocada significam apenas
gradações da falta de liberdade objetiva do mundo. Para o rato não
existe escolha, ou melhor: essa escolha só pode se dar entre as
alternativas de submeter-se à violência da ratoeira ou à violência
do gato.
Nas
Conversações com Kafka, de Gustav Janouch, o poeta de Praga
afirma, a certa altura, o seguinte: “Existe muita esperança, mas
não para nós”.
Era
esse o teor, a base, da sua dialética negativa — e não há
como discordar da coerência do humor negro contido nessa fábula.
Modesto Carone, in Lição de Kafka
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