“Pierina
existiu mesmo?"
Uma
leitora de S. Paulo me faz essa pergunta; e eu lhe digo que se trata
de uma pergunta comovente — e comprometedora.
Comprometedora
para a idade de quem a faz: não pode ser uma senhora muito moça,
quem revela ter conhecido uma pessoa que existiu há tanto tempo —
e de quem, depois, ninguém mais se lembrou, nem falou. Comovente
para mim, que alguém se lembre de Pierina.
Foi
lá por 1934. Cheguei a São Paulo, onde não conhecia ninguém, e
comecei a fazer uma crônica no Diário de S. Paulo. Volta e meia eu
citava ali uma certa Pierina, jovem amada minha. Às vezes, quando eu
dava minha opinião sobre alguma coisa, dava também a de Pierina, em
geral diversa e surpreendente. Creio que jamais lhe descrevi o tipo,
embora fizesse às vezes alusão a seus cabelos, sua boca, sua
cintura, etc. Não cheguei assim, nem era minha intenção, a criar
uma personagem; Pierina aparecia uma vez ou outra em uma crônica
para animá-la e dar-lhe graça. Sentia-se apenas que era muito
jovem, filha de pai italiano bigodudo e mãe gorda e severa.
Sim,
amável leitora, Pierina existiu. Chamava-se Pierina mesmo, pois
escreveu esse nome em grandes letras, que me mostrou de sua janela de
sobrado para a minha janela em um terceiro ou quarto andar de um
hotelzinho que havia ali perto da Ladeira da Memória. Sua família
não tinha telefone. A gente se correspondia por meio de sinais e
gestos, de janela a janela. De vez em quando eu lhe jogava alguma
coisa — flores ou fruta — mas quase nunca acertava 0 alvo.
Mandei-lhe
uma vez um recado escrito em um aeroplano de papel que, depois de
várias voltas, embicou em direção à sua janela e lhe foi bater de
encontro aos seios. Foi um êxito tão grande da aeronáutica
internacional quanto o do foguete que chegou à Lua muitos anos
depois. Sou, na verdade, um precursor sentimental dos mísseis
teleguiados; e os seios de Pierina eram para mim remotos e divinos
como a Lua.
E
pouco mais houve, ou nada. Eu pouco parava em casa, pois trabalhava à
tarde e à noite; gastava as madrugadas nos bares, ou locais ainda
menos recomendáveis; eu era um rapaz solteiro de vinte e um anos e
tinha um namoro muito mais positivo que esse de Pierina com uma jovem
alemã de costumes muito menos austeros que os seus.
Depois
fui para o Rio, do Rio para o Recife, e até hoje ando “pela aí”,
como diz a nossa boa Araci de Almeida. Pierina entrou por uma
crônica, saiu pela outra, acabou-se a história.
Tivemos
um só encontro marcado junto à fonte da Memória; quando eu descia
as escadas ela saiu a correr. Depois me disse por sinais (fazia-se
grandes bigodes e beijava a própria mão) que naquele instante tinha
aparecido seu pai. Talvez fosse mentira.
Creio
que ela nunca soube que foi minha personagem, pois não sabia sequer
que eu era jornalista; perguntou-me uma vez, por meio de gestos, se
eu era estudante, e lhe respondi que sim; mas todas essas novas
“conversas” foram mais raras e espaçadas do que parecem,
contadas assim.
Sim,
minha leitora, Pierina existiu. Era linda, viva, ágil, engraçada e
devia ter uns dezesseis ou dezessete anos. Hoje terá,
implacavelmente, quarenta e quatro ou quarenta e cinco, talvez leia
esta crônica e se lembre de um rapaz que uma vez lhe jogou de uma
janela um avião de papel onde estava escrito “meu amor” ou coisa
parecida; talvez não.
Rubem Braga, in A traição das elegantes
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